O júri do prémio reconheceu "a excecional qualidade da escrita" de Mia Couto, que conjuga, "subtilmente, oralidade e narração literária e epistolar, contos, fábulas, sonhos e crenças, no seio da realidade histórica de Moçambique, no final do século XIX, na luta contra a colonização portuguesa".
"Sem nenhum maniqueísmo, o autor prima pela empatia com os protagonistas, que se confrontam com a desumanidade da guerra, atribuíndo-lhes uma força épica, em concordância com a rica natureza africana", concluiu o júri, presidido por Vera Michalski e composto pelo ensaísta francês Benoît Duteurtre, as escritoras Alicia Gime´nez Bartlett, de Espanha, e Siri Hustvedt, dos Estados Unidos, o novelista ucraniano Andrei Kourkov, o poeta polaco Tomasz Rozycki, além dos autores Carsten Jesten, do Canadá, e o 'rapper' francês Jul.
A trilogia "As Areias do Imperador", composta pelos romances "Mulheres de Cinza", "A Espada e a Azagaia" e "O Bebedor de Horizontes", centra-se nos derradeiros dias do chamado Estado de Gaza, o segundo maior império de África, no final do século XIX, dirigido por um africano.
Ngungunyane (Gungunhana) foi o derradeiro de uma série de imperadores notáveis, que detinham o poder sobre quase metade do território de Moçambique.
Derrotado em 1895 pelas forças portuguesas, comandadas por Mouzinho de Albuquerque, Ngungunyane foi deportado para os Açores onde veio a morrer em 1906. Em 1985, os seus restos mortais foram trasladados para Moçambique.
Na trilogia, Mia Couto retoma os factos conhecidos e personagens reais, que combina com ficção, centrando-se na jovem moçambicana Imani Nsambe, educada por missionários, que serve de intérprete às diferentes fações em confronto, ligada por um amor impossível ao militar português Germano de Melo.
A obra tem por suporte a investigação do autor sobre extensa documentação existente em Moçambique e Portugal, assim como testemunhos recolhidos em Maputo e Inhambane.
O título, "As Areias do Imperador", remete para a lenda, segundo a qual, em vez das ossadas de Ngungunyane, foram torrões de terra, areias, que regressaram ao seu país.
A trilogia, publicada pela francesa Me´tailie´, com o título "Les sables de l'empereur", foi editada em Portugal pela Caminho, entre 2015 e 2017.
O prémio Jan Michalski de Literatura combina o valor de 50 mil francos suíços (45.687 euros) com "uma obra de arte escolhida e encomendada em homenagem" ao laureado.
Criado pela Fundação Jan Michalski, para distinguir obras da literatura mundial, publicadas em francês, o prémio é atribuído a Mia Couto, cerca de um mês após a publicação do seu novo romance, "O Mapeador de Ausências", que começou por ser uma homenagem à cidade da Beira, mas acabou por se tornar uma viagem ao passado do autor e às "ausências" que o marcaram para sempre, como disse á agência Lusa.
"O Mapeador de Ausências" tem como narrador Diogo Santiago, um prestigiado e respeitado intelectual moçambicano, que se desloca à sua cidade natal, Beira, nas vésperas do ciclone Idai que a arrasou em 2019.
Traduzido em mais de 30 línguas, vencedor do Prémio Camões em 2013, Mia Couto foi igualmente distinguido com o Prémio Vergílio Ferreira, em 1999, com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas, em 2007, e com o Prémio Eduardo Lourenço, em 2011, pelo conjunto da carreira.
"Terra Sonâmbula" foi eleito um dos doze melhores livros africanos do século XX, e "Jesusalém" esteve entre os 20 melhores livros de ficção mais publicados em França, na escolha da rádio France Culture e da revista Télérama.
Para o Prémio Jan Michalski de Literatura, além de Mia Couto eram finalistas o franco-britânico Philippe Sands, pelo livro "Retour à Lemberg", e a norte-americana Fran Ross, por "Oreo", editado em Portugal pela Antígona.
Sands tem publicado em Portugal "Estrada Leste-Oeste - As Origens do Genocídio e dos Crimes Contra a Humanidade" (Vogais).
Mia Couto sucede à autora israelita Zeruya Shalev, distinguida pelo romance "La douleur", editado em Portugal pela Elsinore.