A partir de textos da obra escrita por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, "Ainda Marianas" sobe ao palco no mês em que se completam os 50 anos da publicação das "Novas Cartas Portuguesas", feita em plena ditadura, uma primeira edição desde logo proibida pela censura, destruída pelos seus serviços, e que levou as autoras a um julgamento a que só o 25 de Abril pôs termo, confirmando o livro pelo que é, uma obra de expressão literária.
A peça põe em palco "As Três Marias", designação por que ficaram conhecidas as autoras, e o seu julgamento, com apelo a documentos históricos da época, disse à agência Leonor Buescu, uma das responsáveis pela criação e dramaturgia.
A orientação do espetáculo seguiu a matriz que as escritoras utilizaram na obra - um trabalho a seis mãos que, mais tarde, viriam a referir como o de três "aranhas astuciosas" -, comprometendo-se entre si a nunca revelarem a autoria de cada texto, o que se mantém até hoje, acrescentou.
A produção tem por objetivo "convocar uma reflexão em torno da memória coletiva de um país, da sua gente e do seu tempo", como indica a apresentação da peça, no 'site' do Teatro Nacional D. Maria II, que estreia o espetáculo em vésperas do 48.º aniversário do 25 de Abril de 1974.
As "Novas Cartas Portuguesas" desafiaram a autoridade da ditadura, pondo em causa a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência e a situação das mulheres na sociedade.
Publicadas, em primeira edição, com chancela da editorial Estúdios Cor, então sob direção literária da escritora Natália Correia, as "Novas Cartas" foram impressa na íntegra, apesar de a censura ter imposto cortes, considerando-as de conteúdo "chocante", "imoral", "insanavelmente pornográfico", "uma ofensa aos costumes e à moral vigente no país". Por isso, foi também decidida a "instituição de um processo-crime" sobre as autoras.
A proibição, a perseguição e o processo judicial subsequente levaram à indignação internacional. A obra foi de imediato editada em diferentes países europeus e nos Estados Unidos da América, encontrando-se, ainda hoje, entre os livros portugueses mais traduzidos em todo o mundo.
De imediato, houve também apoio internacional inédito, tendo os protestos e as manifestações pelas "Três Marias", mobilizado autores como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Iris Murdoch e Stephen Spender. O julgamento chegou aos principais meios internacionais de comunicação, multiplicaram-se as manifestações no estrangeiro, e a National Organization for Women declarou esta luta como a "primeira causa feminista internacional".
A paixão, a escrita, o sentimento de isolamento, de abandono e a guerra são expressos nas "Novas Cartas Portuguesas", num paralelismo evidente com a situação política e social portuguesa na época.
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa foram sujeitas, separadamente, a interrogatórios da PIDE/DGS, a polícia política da ditadura, que pretendia descobrir qual delas tinha escrito as partes consideradas de maior atentado à moral vigente.
As "Novas Cartas Portuguesas" inspiram-se na edição bilingue, editada em 1969, pela Assírio & Alvim, das "Cartas portuguesas", traduzidas por Eugénio de Andrade, a partir das "Lettres portugaises", romance epistolar publicado anonimamente por Claude Barbin, em 1669, e apresentado como uma tradução, anónima também, de cinco cartas de amor endereçadas a um oficial francês por Mariana Alcoforado, jovem freira enclausurada no convento de Beja.
Quase três séculos depois, a epígrafe da obra, jogando com títulos de livros anteriores das autoras, demonstrava o espírito da nova Mariana: "'Novas Cartas Portuguesas' (ou como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores)".
"Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível", lê-se no início da obra. "Procuramos o que não nos faria recuar; o que não nos faria destruir. Mas não deixa a paixão de ser a força e o exercício o seu sentido".
A primeira sessão do julgamento das "Três Marias" decorreu no Tribunal da Boa Hora, em julho de 1973, o início oficial do julgamento data de 25 de outubro desse ano, e o processo terminou poucos dias após o 25 de Abril de 1974, quando o o juiz Acácio Lopes Cardoso declarou: "O livro não é pornográfico, nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outros que as autoras já produziram".
É toda a memória da obra, das autoras e do processo a que foram sujeitas que atravessa "Ainda Marianas".
Na sala Estúdio do D. Maria, a peça vai estar em cena até 08 de maio, com sessões de quarta a sábado, às 19:30, e, ao domingo, às 16:30, exceto no Dia do Trabalhador. No dia 24, a sessão tem interpretação em Língua Gestual Portuguesa e, após o espetáculo, haverá uma conversa com os artistas.
A interpretar estão Ana Baptista, Rita Cabaço, Teresa Coutinho. A cenografia é de Ângela Rocha, que também assina os figurinos com Catarina Rôlo Salgueiro e Leonor Buescu.
Com desenho de luz de Manuel Abrantes e desenho de som de André Pires, "Ainda Marianas" é uma produção de Os Possessos, em conjunto com o D. Maria II, A Oficina, em Guimarães, onde a peça será representada em junho próximo, e do Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal, a cujo palco subirá em setembro de 2023.
Em dezembro deste ano, a peça estará em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, adiantou à Lusa Leonor Buescu.
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