Rui Carvalheira foi criado em Democracia, crescendo a ouvir falar de "Salazar, da ditadura e do Estado Novo, com opiniões que se dividiam entre o repúdio e o saudosismo".
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, diz que apesar ter vivido entre opiniões opostas sobre o ditador, "em concreto, pouco sabia do que Salazar tinha feito".
"Que medidas tinha tomado? Que sucessos teve? Onde fracassou? Que medidas tomou, que pacotes legislativos aprovou, como era a relação com os restantes órgãos de soberania e com os militares? E que impacto teve na vida dos portugueses, a organização e o funcionamento do regime?" Foi a busca de respostas para estas perguntas que motivou o autor a escrever 'As Duas Faces de Salazar' e são essas respostas que o leitor pode encontrar no livro que não pretende ser uma biografia.
A obra não se centra na vida de Salazar mas sim "nas políticas e ideias do Estado Novo". Para o autor, o livro pode ajudar a 'explicar' os dias de hoje " na medida em que o presente não nasce do vazio, mas sim a partir de qualquer coisa que já existe".
Mas as circunstâncias que rodearam Salazar e a ideologia que o suportou não desapareceu.
"A extrema-direita continua a existir, os regimes ditatoriais continuam bem presentes no mundo e a visão do mundo, do governo e da sociedade que Salazar tinha, encontra eco nos dias de hoje", considera ainda Rui Carvalheira, recordando que a ditadura militar impôs-se em Portugal, em grande parte, "como resposta à crise e à violência que atravessou todo o período da 1.ª República".
Ou seja, perante a crise, a violência e as dificuldades, as populações voltaram-se para regimes nacionalistas e autoritários. Pese embora o mundo de hoje seja "bastante mais integrado e global do que era no início do século XX" e que os problemas que a globalização e o internacionalismo trouxeram ao modelo democrático ocidental, sejam "diferentes dos que afetaram a Europa durante as décadas de 1920 ou 1930", a procura por "governos fortes e musculados (quando não mesmo abertamente autoritários), vistos como os únicos capazes de impor ordem, assegurar estabilidade e defender os interesses nacionais, não só continua a existir, como explica, em parte, o recrudescimento da extrema-direita no continente europeu", acredita o escritor.
Para Carvalheira, compreender como surgiram e como se implementaram as ditaduras durante essas décadas, não só nos ajuda a compreender o que vivemos hoje, como nos serve de alerta, "olhando para as consequências desastrosas que as ditaduras militares e os regimes fascistas tiveram".
Queda da cadeira e de regime
A famosa “queda da cadeira”, diz o autor, é uma boa metáfora para o que foi o regime.
O regime, tal como o ditador, caiu. Não houve transição
Marcelo Caetano sucedeu a Salazar, mas o que se seguiu à 'Primavera Marcelista' foi o "estertor final do regime". Segundo Carvalheira, para tal muito contribuiu a ação do próprio Salazar. Ao longo de quase 40 anos de poder, o ditador "pouco ou nada fez para assegurar a sua sucessão e a continuidade do regime", agarrando-se ao poder.
"Talvez porque Salazar era um homem cronicamente desconfiado, que se via a si mesmo como um líder providencial", considera.
São diferentes as versões sobre o que aconteceu naquele dia 3 de agosto de 1968 no forte de Santo António da Barra, no Estoril, mas certo é que esse foi o momento que marcou o fim de António Oliveira Salazar.
A gravidade da situação não foi entendida de imediato e só dias mais tarde o Presidente do Conselho foi visto por médicos que, alarmados, avançaram para uma cirurgia à zona do crânio - onde era bem visível um hematoma.
Salazar só foi substituído, após ter ficado física e psiquicamente incapaz. O período que vai desde a 'queda da cadeira' até à sua morte é "sintomático", afirma Carvalheira.
Mesmo estando totalmente incapacitado para manter as funções de Presidente do Conselho, o regime, na figura do Presidente da República Américo Thomaz, resistiu à troca, ao ponto de terem mantido uma farsa perante Salazar, a quem nunca ninguém disse que tinha sido substituído à frente do Governo, mesmo depois da nomeação de Marcelo Caetano. "Este incidente, com tudo o que tem de risível, revela um importante ponto político: o regime estava de tal modo associado à figura de Salazar, que dificilmente sobreviveria sem ele, como, de resto, se veio a comprovar", reflete.
Que país deixou Salazar?
Após 40 anos no poder e uma queda ainda hoje envolta em mistério, é inegável para o autor "que Salazar deixou um país estável, pacato e ordeiro", mas também profundamente atrasado, "com baixos níveis de literacia e dominado por um modelo político-económico, que limitou em muito a progressão social dos cidadãos e a capacidade do pais de competir num mercado global e aberto".
Aqui, importa ainda não esquecer a guerra do ultramar, feita em defesa de um modelo colonial, que após a II Guerra Mundial, "valeu a Portugal o opróbrio internacional".
Findada a investigação, o autor permite-se concluir que "há que reconhecer alguns sucessos a Salazar, em particular a capacidade que teve de recuperar as finanças e o prestígio internacional do país". Contudo, há que entender que tal foi conseguido "através de uma forte austeridade imposta um regime elitista, fechado e repressivo, que deu origem a uma sociedade estagnada e discriminatória, marcada por enormes desigualdades, que votaram a maioria da população a uma pobreza sistémica".
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Salazar errou, pondera o autor, por não ter compreendido, "ou ter recusado entender", as mudanças que se operaram a nível internacional após a II Guerra Mundial, às quais respondeu "mantendo o regime fechado", em contraciclo com a Europa Ocidental, onde, "à exceção da Espanha, liberdade, Democracia e Direitos Humanos se tornaram palavras de ordem".
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