Roberta Medina veio para Portugal há 19 anos com o objetivo de organizar o festival Rock in Rio, mas o encanto de Lisboa acabou por fazer com que se apaixonasse pela cidade e ficasse até hoje. Embora experiência não lhe falte, a verdade é que os últimos anos não poderiam ser mais inesperados e imprevisíveis. Nas palavras de Roberta, este ano, o festival "nunca mais chegava". Não só esta edição é marcada pela espera e ansiedade como por uma gestão distinta. A organização teve que lidar com dois adiamentos e muitos "altos e baixos".
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a empresária confessou que "brincava e dizia que cada dia em que um caía, os outros estavam em pé, então um fortalecia o outro". Esclareceu a importância de "manter a criatividade muito ativa", assim como o planeamento, para que estivessem preparados para regressar ao mercado assim que as condições fossem favoráveis. Quando começou a pandemia, a edição de 2020 estava em construção. Já em 2021, o trabalho estava "todo feito", porque se houvesse melhorias começariam a montar.
Apesar de a equipa nunca ter parado, surgiram grandes desafios, como a necessidade de intensificar o planeamento na parte de contratação de fornecedores, devido à restrição da mão-de-obra e matéria-prima. Roberta explicou que não só houve necessidade de antecipar as contratações, como contratar uma maior variedade de fornecedores, ao contrário dos outros anos em que se concentravam numa única empresa.
O Rock in Rio é um evento muito transversal, não só de idades mas também de estilos, desde a sua primeira edição em 1985
Como foi escolher o cartaz para este ano? Em que se baseou a escolha das bandas?
Temos uma equipa artística que se dedica à consulta do mercado. Antigamente eram estudos de mercado formais, hoje em dia temos uma série de plataformas de consumo de música, onde acedemos ao que as pessoas querem ver. Num evento da dimensão deste festival, temos que ir pela escolha do público, então temos a soma das pesquisas de mercado nessas várias plataformas e consultas de parceiros e também, obviamente, tem a ver com a própria organização. Saber que determinados perfis não aparecem, necessariamente, numa pesquisa de mercado atual, mas são um grande sucesso.
A escolha é feita com a própria experiência da organização. O que o Rock in Rio sempre busca, mas muitas vezes não é possível, é montar dias com perfis bastante diferentes, o que este ano conseguimos. O Rock in Rio é um evento muito transversal, não só de idades mas também de estilos, desde a sua primeira edição em 1985. Sempre foi variado, essa é a nossa proposta, vamos atrás dos tópicos do momento, do que vai mexer mais com as pessoas, através da experiência que temos, olhando para os vários perfis de público que vemos serem fãs e adeptos do Rock in Rio.
Vamos em frente, estamos muito entusiasmados com o festival
Como foi lidar com o cancelamento nos anos anteriores?
Isso foi super positivo. Tivemos apenas 9% de pedidos de reembolso [do público] ao longo dos vários momentos. Foi extremamente positivo, mostra muito a parceria e a fidelidade para com a marca. Está todo o mundo com uma sede de estar junto imensa.
Para a organização houve prejuízo? Acredita que será recuperado?
Acho que grande parte do prejuízo é, sem dúvida, dinheiro perdido. Para onde olhamos é celebrar, é uma organização forte, capaz de segurar estes dois anos de prejuízo para poder continuar a investir no mercado, a investir no projeto. Claro que uma parte do prejuízo se recupera, senão não estaríamos aqui, não teríamos adiado, teríamos cancelado. Mas há uma parte desse prejuízo que claramente ficou para trás e há que absorver.
Qual é a mensagem que se retira?
A nossa mensagem aqui sempre foi de que se temos futuro, há que celebrar. Deprime-se uma semana e 'bora em frente, porque tem muita gente que ficou pelo caminho, então quem conseguiu chegar até aqui são os privilegiados e a gente tem que honrar essa oportunidade. Acredito que será um verão diferente dos anteriores e a sede que as pessoas têm de celebrar, de estar juntas, de voltar a ver a multidão a cantar, é o que temos sentido nas várias conversas entre clientes, parceiros, fornecedores, patrocinadores… da parte de todos.
A grande mensagem que está por detrás disso tudo é que para estarmos bem o outro tem que estar bem e precisamos de cuidar do nosso entorno para preservar a nossa qualidade de vida. Então, tem muito a ver com as escolhas que fazemos e com esse olhar mais ampliado.
Quais as preocupações após dois anos de pandemia?
Depois de dois anos, uma guerra em cima, todos os desafios que a sociedade - a nível mundial -, está a viver, achar que as pessoas estão bem porque a máscara caiu é uma ilusão. Acho que não sabemos ainda as consequências da pandemia. Há algumas consequências económicas e materiais que estavam sendo vistas, mas tem as consequências emocionais, relacionais. Não sabíamos o que ia acontecer, entrou a guerra, juntou-se uma à outra e continuamos sem saber como é que as pessoas vão lidar com este processo todo, é algo que vamos perceber com o tempo.
Essas são as maiores preocupações. Acho que a pandemia, na realização do festival, já não vai ter grandes efeitos, é um espaço ao ar livre, quem quiser pode utilizar máscara... Pelo que tudo indica, os festivais em geral vão voltar à sua normalidade.
Temos que estar muito atentos à equipa para perceber se estão todos fortes para chegar lá e aos fornecedores para ter a certeza de que eles também conseguem finalizar os seus trabalhos
Acredita que os festivaleiros estarão receosos devido à Covid-19 ou acredita que a vontade de celebrar se irá sobrepor ao medo?
É o que estamos a ver, as pessoas estão super ansiosas e a remoção de obrigatoriedade do uso de máscara em locais abertos e outros fez uma grande diferença que se percebeu, inclusive, nas vendas. Temos que ter confiança de que as pessoas podem seguir a vida - e com todos os problemas que estão a acontecer a nível mundial não podemos ficar parados, senão o problema fica maior a nível local também.
Quais serão os cuidados em especial depois deste período?
Neste momento, não existe nenhuma indicação para cuidados especiais. Os espaços são todos abertos, os copos já são reutilizáveis, mas são pessoais. Não tem nada que indique mudanças efetivas. Claramente que se existir um número mais elevado de contágios ficaremos atentos, mas tudo indica que até lá continuará desse jeito, sem nenhuma exigência especial nesse sentido.
Quais as expetativas para este ano? Um festival esgotado?
Acho que vamos ter pelo menos dois dias esgotados, o primeiro e o último. Contudo, os outros dias estão muito compostos, já estão com vendas superiores a 2018 e ainda temos bastante tempo.
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Quais as novidades? O que se pode esperar de diferente nesta edição das outras?
Temos muitos espaços renovados e uma grande quantidade de talentos a apresentar-se na cidade do Rock, como na Rock Street, que tem grupos de crianças a tocar, por exemplo. Quisemos trazer diversidade em termos de gerações, não só de género e raça, que estará retratada com grandes shows de road music [música de rua], artistas portugueses, árabes, sul-coreanos, gente do mundo inteiro de alta qualidade. Teremos músicos como o Paulo Flores com o Prodígio, a Sara Correia e outras performances. Está muito interessante.
Temos a roda gigante com muitas novidades também. Cada cabine é decorada de forma especial para ser super instagramável, as pessoas vão poder escolher a música para dar a volta e tirar fotografia. Todos os que andarem na roda gigante vão estar a concorrer a prémios incríveis, inclusive um carro. Temos o Games Square que é uma área nova, dedicada a jogos. Os grandes talentos de gaming estarão a interagir com o público, numa oportunidade de estarem perto das pessoas, visto que normalmente estão sempre atrás da tela.
O Super Bock Digital Stage vai ser, novamente, mais um dos grandes fenómenos do entretenimento digital, mesmo sendo difícil separar o que é entretenimento digital do que não é. Teremos a Pipoca Mais Doce, o Toy com um concerto interativo, o João Mário e a Mariana Bossy, a fazer apresentação com outras três grandes referências do online. Este é o palco que causa histeria total ao público mais novo.
O Placo Yorn vem dar luz aos talentos dos bairros sociais. Há muitos de Chelas e outros do país todo que vêm com a intenção de aproximar a cidade. Temos ideias muito antigas do que eram os bairros sociais no início - claro que continuamos a ter pontos de desafio - mas a grande maioria dos bairros são como outros quaisquer, só que quando criamos o estigma as pessoas que vivem nele também se sentem reduzidas. Acho que podemos crescer em termos de cabeça quando olhamos pelo talento, por tudo o que os bairros têm de bom. Este é um palco que vem comandado pelo Sam The Kid, Chelas é o sítio, e tem por dia dois talentos novos, dois talentos consagrados, muito focado em cultura urbana e muita dança com o pessoal do jazz.
Além disso, temos o Continente Chef's Garden, que vem falar de alimentação sustentável. Teremos quatro chefes portugueses: Justa Nobre, Miguel Castro e Silva, Vítor Sobral e Noélia Jerónimo, cada um abraçando um ecossistema de Portugal, sendo que os pratos vêm inspirados nos ecossistemas locais e todos produzidos com produtores locais. Temos o Ljubomir assumindo o palco, em momentos específicos para transformar essa conversa em muito entretenimento. Também é um espaço que está a ser bem esperado.
Já tínhamos tido crianças e é exatamente por isso que montamos esta programação, para reforçar a mensagem de que são bem-vindas e têm entretenimento à sua medida. Este ano laçamos o Passaporte Família, que está à venda exclusivamente na Galp e no nosso site. São cinco bilhetes praticamente pelo preço de dois, sendo condicionado a dois adultos, duas crianças e um sénior e é o único bilhete do Rock in Rio que permite entrar e sair da cidade do Rock. É a novidade deste ano.
E o Palco Mundo, que vem primeiro com muito Rock e depois Pop. O último dia, que é um dos mais votados, trará Pop/Rock alternativo, o que deixa os jovens histéricos com Anitta, Post Malone, Jason Derulo.
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Qual a importância de o Rock in Rio dar palco a talentos que ainda não são conhecidos? O que isto representa?
O Palco Yorn é mais do que dar palco a talentos que não são conhecidos, é dar palco a talentos de bairro. O Rock in Rio não é um festival que trabalha novos talentos porque é muito 'mainstream', como tal tem que trabalhar com grandes nomes, mas quando trazemos talentos de bairro - e alguns são grandes nomes -, podemos mostrar e alterar a mentalidade do nosso público, abrir uma possibilidade de ver as coisas de forma diferente, de outro ângulo.
Se temos um grande artista como o Sam The Kid, que não só nasceu, mas continua a viver em Chelas, que ideia é essa de Chelas que temos congelada no tempo? Quando Chelas é 80% da maior freguesia da nossa cidade, que é Marvila, e Marvila está na moda. Então são só 20% que estão na moda? Acho que a grande provocação, e mostrando o que há de bom, é para que as pessoas consigam-se abrir para construir uma nova ideia, uma nova imagem e para a cidade crescer, se valorizar. A cidade tem que crescer para algum lado, porque não crescer para os bairros que já existem para nos concentrarmos no que pode ser feito para melhorar a condição de vida nesses lugares de forma a que as pessoas não se sintam discriminadas? Acho que isso valoriza a autoestima da cidade como um todo.
Como surgiu esta ideia tão particular de Chelas? Porquê a eleição deste local para a organização do festival?
Temos há muitos anos uma série de iniciativas que fazemos em parceria com a Câmara Municipal da região. É uma região que nos acolheu sempre lindamente, há 19 anos que circulamos por aqui e nunca tivemos nenhum desagrado. Construímos a ciclovia; um skate park; a ponte que liga os Olaias à parte Sul do parque; fizemos melhoria no próprio parque, trocamos a vedação, que eram chapas metálicas e não davam segurança às pessoas, por vedação de parque; construímos uma casa no parque para os funcionários com cozinha, balneários e garagem com os equipamentos e reformamos a Casa de Pedra, sendo que a nossa intenção não era que a operássemos, mas ter um operador de restauração para dar apoio de utilização aos utilizadores do parque.
A recuperação e a grande obra que fizemos na Casa de Pedra foi com a intenção de virar um ponto de interesse, mas quando fomos consultar empresas para vir operar disseram-nos: “O Parque da Bela Vista só existe quando tem Rock in Rio" ou "o Parque da Bela Vista é fora da cidade”. Então, com a possibilidade que a pandemia trouxe, a própria equipa do festival resolveu mergulhar no desafio. A quantidade de pessoas que vemos hoje a utilizar o parque é infinitamente maior do que se via antes, o que é a nossa intenção, integrar o parque na vida da cidade como um todo traz fluxo, turismo e consumo que pode geral impacto económico local. Todo o mundo ganha e é essa a nossa relação com Chelas há muito tempo.
Quando abrimos a Casa de Pedra foi uma feliz coincidência do movimento, Chelas é o sítio liderado pelo Sam The Kid que está-se a reestruturar, a começar a nascer, a ganhar forma. Fizemos uma parceria na programação cultural na Casa de Pedra para artistas locais se apresentaram e, dessa relação, pensamos “vamos adiante, vamos fazer mais”. Assim, entramos com o Palco Yorn no Rock in Rio.
Como vai ser este reencontro?
O Rock in Rio vai acabar sendo o ícone forte do reencontro, da vida voltar ao seu normal que é ao vivo, da celebração, da vontade das pessoas estarem junto. Queremos aproveitar muito essa oportunidade para trazer temas relevantes, para plantar 'sementinhas' na cabeça do público sobre essas várias conversas que achamos que são tão importantes para que cada um de nós assuma um pouco a responsabilidade de fazer este mundo ficar melhor e cada um poder ir pelo seu próprio caminho. A pandemia veio acelerar a abertura, acelerou uma conversa de responsabilidade social, de compromisso com a sustentabilidade, algo que já vinha crescendo
Os estudos reforçam que o consumidor valoriza ações de marcas que se comprometem com o cuidado da sociedade. Então, trabalhamos na comunicação para um mundo melhor há 20 anos e nunca houve um momento tão bom para se falar sobre isso, porque agora existe espaço de escuta, existe interesse. Como antigamente só se falava nas caraterísticas do entretenimento, não queremos perder esta oportunidade de aproveitar a abertura e o foco das grandes empresas, do Governo e da população em geral para termos conversas relevantes enquanto nos divertimos, cantamos e brincamos. Acho que tem espaço para tudo.
Este vai ser o ano em que as pessoas estarão mais atentas a estes problemas - já estão. A pandemia acelerou a perceção de que todos precisamos de nos comprometer e fazer a nossa parte neste projeto único que se chama planeta. As pessoas ficaram mais disponíveis para absorver conteúdos nessa direção, menos dispersas, digamos assim, e o momento é agora, temos que aproveitar para tentar fazer uma mudança e acho que cada vez mais as pessoas estão comprometidas com essa mudança de comportamento e de escolhas que precisam acontecer.
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