"Líder do romance social contemporâneo", foi como o jornal Le Monde a adjetivou em 2019, quando foi publicado um perfil da escritora a propósito da "descoberta" de que a sua obra estava a ser alvo no mundo anglófono, enquanto a agência francesa AFP se refere a uma "obra essencialmente autobiográfica", na qual Ernaux "produziu uma radiografia impressionante da intimidade de uma mulher que evoluiu ao longo das mudanças da sociedade francesa desde o pós-guerra".
A Academia Sueca, que atribui o Nobel da Literatura, justificou a escolha de Ernaux com "a coragem e acuidade clínica com que revela as raízes, alheamentos e restrições coletivas da memória pessoal".
Nascida em Lillebonne, em França, em 1940, a família de Ernaux mudou-se poucos anos depois para a zona operária de Yvetot, onde a escritora fez os estudos secundários e "encontrou raparigas de contextos mais classe média, experienciando a vergonha do seu meio operário pela primeira vez", como se pode ler na biografia disponível numa página sobre a autora de "Uma Mulher", criada por várias especialistas universitárias na obra da francesa.
Ernaux seguiu os estudos na Universidade de Rouen e passou a dar aulas de ensino secundário a partir da década de 1970 até 2000.
O primeiro livro de Ernaux é publicado em 1974, com o título "Les Armoires Vides" ("Os Armários Vazios", em tradução livre, inédito em Portugal), uma estreia literária feita na conceituada editora Gallimard, autobiográfica e sobre o aborto que fez dez anos antes.
O facto de Ernaux -- uma mulher - abordar a sua intimidade levou a que a crítica literária francesa fosse particularmente dura nas suas análises: "Era um 'leitmotif' quando as pessoas falavam dos meus livros. Viam indecência em todo o lado. Na realidade, era apenas dirigido a mulheres", disse Ernaux, que defendeu a sua escrita como "política", ao Financial Times, em 2020.
Nesse mesmo texto do jornal britânico é citado um editor parisiense, amigo de Ernaux, que lembrou que a escritora costumava ser "desprezada" enquanto uma "pequena professora da província" e "uma mulher que escrevia sobre si própria", para agora ver a perspetiva mudada: "Um pouco como Marguerite Duras, ela pode escrever uma lista das compras e toda a gente a acha espetacular".
Forte apoiante do movimento #MeToo e dos Coletes Amarelos, Ernaux, que já recusou fazer parte do júri do prémio Goncourt, rejeita o termo "autoficção" e esclarece que não é "uma escritora que se foque nas emoções".
"Ernaux está interessada na verdade da experiência, seja qual for a forma que possa adotar, e isto é o que distingue o seu trabalho da autobiografia ou do livro de memórias convencional", podia ler-se na Paris Review, em 2018.
Um ano depois, quando a BBC a entrevistou, na sequência da sua publicação no Reino Unido e da sua nomeação para o Booker Internacional, quis saber por que motivo Ernaux usava sempre a segunda pessoa do singular ou a primeira do plural, em vez do "eu", numa obra de raiz tão autobiográfica.
"Porque o que me interessa é a nossa relação com o mundo em volta", respondeu, uma relação que não se esgota numa só pessoa.
Vencedora do Prémio Renaudot, por "La Place" ("Um Lugar"), de 1984, ganhou maior relevo com "Os Anos", em 2008. Em 2017, conquistou o prémio Marguerite Yourcenar pela totalidade da sua obra. No ano seguinte, foi finalista do Booker Internacional com a tradução para inglês de "Os Anos".
Ernaux, de 82 anos, é a primeira mulher francesa a vencer o Nobel da Literatura.
Annie Ernaux entrou em Portugal com "O Lugar", pela editora antiga Fragmentos, em 1987, novela que voltaria a ser publicada em 2000, com "Uma Mulher", num só volume, pelos Livros do Brasil, que em 1993 já editara "Uma Paixão Simples".
Desde então, esta atual chancela da Porto Editora respondeu pela publicação em Portugal da Nobel da Literatura 2022, com "Os Anos", em 2008, que retomou já este ano, depois de ter reeditado "Uma Paixão Simples", em 2020.
"O Acontecimento" chegou ao mercado livreiro português no passado mês de setembro.
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