Na freguesia da Fajã de Baixo, Ponta Delgada, ouviu-se, na semana passada, uma imitação do cântico típico dos cagarros, as aves que pululam as costas das ilhas açorianas, entoada por crianças dos 6 aos 11 anos, que circulavam à volta de uma palmeira, erguendo cartazes com palavras de ordem.
"Não às drogas", "Não queremos mais turismo", "Felicidade e amor", "Não atirem mais lixo para a relva", eram algumas das mensagens presentes na sexta-feira, no desfile que foi o culminar de um processo de uma semana, cujo início se assemelhava a uma manifestação, organizado no âmbito da Academia Humana, o programa de formações da Candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura.
Do Centro Cultural Natália Correia, o cortejo seguiu para o largo da igreja da Fajã de Baixo. As crianças, com costumes coloridos, evocavam a poesia de Natália Correia e cantavam músicas originais, como o "Rock da Galinha Assassina" ou a paródia "Funk da Fajã de Baixo".
O desfile, pontuado por momentos coreografados e outros de liberdade, seguiu a batuta de Lívia Diniz, a artista que organiza "blocos carnavalescos" no Brasil com milhares de crianças e que esteve dez dias em São Miguel propositadamente para a iniciativa intitulada "Se estas ruas fossem nossas..."
"As crianças chegaram, criaram personagens mágicas e começaram a fazer fantasias para as personagens, construindo um universo próprio. Foi criado um conceito para cada personagem e um conceito para o 'bloco' [desfile]", explicou Lívia Diniz à agência Lusa.
Mais "importante" do que o espetáculo final foi o "processo ao longo da semana". As crianças construíram os próprios costumes e decidiram, em conjunto, o conceito do cortejo através de uma assembleia que definiu o tipo de música, os ritmos e a organização do desfile.
"Na Assembleia, umas defenderam que o desfile só devia ter rock, outras não. Após a discussão, algumas mudaram de opinião. Depois votaram para escolher os ritmos. Faz parte de um processo de experimentação da democracia participativa", salientou.
A criação do desfile procurou, portanto, apelar ao imaginário individual das crianças ao mesmo tempo que "fortaleceu" a "dimensão coletiva".
"Assim, elas [as crianças] vão treinando a postura e o discurso dos corpos políticos. Esses corpos políticos não têm de estar chateados. Fazer política, tomar decisões em coletivo, não precisa de ser chato. Pode ser divertido. É essa sementinha que tentamos plantar".
Matilde Oliveira, de 7 anos, foi uma das crianças que integraram o desfile, exibindo um cartaz que pedia a rejeição às drogas. Criou um fato de "gatoleta", uma mistura entre gato e borboleta, e revelou que gosta muito do Carnaval porque é "sinónimo de amor e alegria".
"A gente estava numa atividade que tinha de escrever uma coisa para melhorar as ruas. Como há muitos problemas de pessoas com drogas, uma forma de melhorar era as pessoas dizerem não às drogas", considerou.
Já Maria Santos, de 6 anos, vestida de borboleta azul, aproveitou a oportunidade para alertar os "outros meninos para a poluição" da ilha.
"O meu cartaz dizia que eu queria menos poluição para o mundo e menos carros na rua. Os carros poluem o ambiente e o lixo anda a incomodar-me".
São várias as mensagens presentes no desfile. Joaquim Batista, de 6 anos e vestido de "Súper Herói Joaquim", pediu "paz e amor" porque defende que as "pessoas deviam ser mais amorosas e alegres".
Já Sofia Albergaria, uma "bailarina de cabelo doirado e ruivo", apontou as críticas ao turismo: "O meu cartaz dizia que o turismo é mau porque ele polui muito a nossa cidade e a nossa ilha".
O projeto, que instiga a participação cívica das crianças, contou com a colaboração do maestro Marco Torre e da Habitat, uma plataforma de reflexão da ilha de São Miguel.
O diretor artístico da candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura em 2027 (cujo trabalho só termina em março, apesar de Évora já sido declarada vencedora), António Pedro Lopes, justificou o projeto com a necessidade de criar "ofertas capazes de empoderar as crianças".
"No fundo, é tentar perceber como os adultos podem dar apoio aos sonhos, à imaginação e contribuir para tomarmos a criança como um cidadão ativo, que tem uma voz e uma coisa a dizer, que tem imaginário e uma forma de contribuir para o mundo".
António Pedro Lopes realçou, sobretudo, o "processo de aprendizagem" das crianças ao longo das sessões, onde se procurou "desafiar a dimensão cívica" dos mais pequenos através de um contexto de festa.
"O Carnaval é também uma escola de conhecimento que traz muitos saberes e que no fim conta uma história. Junta uma comunidade em torno de uma história, com um teor social ou de crítica".
A esse propósito, Lívia Diniz acredita que se os adultos "abrissem espaço à espontaneidade e à alegria" das crianças, a transformação da sociedade "seria muito mais confortável".
"As crianças são como uma rachadura no tempo. Elas têm acesso a certas informações que não aproveitamos porque não permitimos que elas se expressem. Quando a gente abre este espaço de escuta, dando a oportunidade para as crianças ensaiarem futuros diferentes, abrem-se novos mundos".
No fundo, e como as próprias crianças cantaram, trata-se de construir um futuro com "liberdade no coração": "o que eu quero é o futuro, sem muro, nem furo, com ananás a rebentar e criaturas a inventar".
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