"Melhor definição de sempre: 'Olha a Marisa. Qual Marisa? A que é fixe'"

Estivemos à conversa com a cantora Marisa Liz, que lançou o primeiro disco a solo 'Girassóis e Tempestades'.

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© Universal Music

Inês Frade Freire
06/04/2023 10:05 ‧ 06/04/2023 por Inês Frade Freire

Cultura

Marisa Liz

Depois de um trajeto repleto de sucessos com os 'Amor Electro', Marisa Liz lançou-se pela primeira vez a solo. Na verdade, no álbum 'Girassóis e Tempestades', a cantora conta com o contributo de vários compositores, até porque, nas suas palavras, "quando há partilha de música, é um dos grandes motivos por que andamos cá nesta vida".

Nesta viagem que vivencia também com as pessoas que mais ama, Marisa canta canções que espelham momentos "sombrios" e outros "de luz",  fazendo jus a "sentimentos e emoções" que acontecem "ao longo do dia, da vida".

Considerando-se uma "revolucionária pelo amor", a artista "sentimental" e "empática" quer ser lembrada pela "Marisa que é fixe", não só pelo seu trabalho, mas por tentar ser a "melhor pessoa" que consegue.

Inspirada em Nelson Mandela, Marisa acredita que "a humanidade pode ter um caminho diferente" através de ações individuais porque há sempre um "lado bom".

Porque é que decidiu avançar com um álbum a solo (Girassóis e Tempestades) durante a pausa da banda 'Amor Electro'?

Porque a minha vida é música e visto que nós 'Amor Electro' fizemos uma pausa, embora eu também goste muito de fazer bolos (riu-se), tinha de ser mesmo por aí. Era mesmo inevitável. 

A minha vida sempre foi música e vai ser sempre. Obviamente que gosto muito de fazer outras coisas, mas a minha vida sempre foi cantar desde os 11 anos, portanto era inevitável com a pausa [dos Amor Electro].

Não foi imediato mas foi pouco tempo depois. Percebi que era mesmo isto que queria fazer e porque não consigo estar parada também.

Estar parada não é bom, mas se pudermos fazer o que gostamos, melhor. Certo?

Nós temos de fazer o que gostamos, acho mesmo que isso é importante. Obviamente que é muito difícil e é um risco toda a gente fazer o que gosta no mundo. É difícil, tens de sacrificar muita coisa, mas compensa porque estás a fazer o que tu amas. 

Apesar de isto ser um trabalho - porque é um trabalho, a música dá muito trabalho - a vida passa por etapas  diferentes e acabas por viver coisas que tu decidiste que ias viver de alguma forma.

Quando começou a pensar na possibilidade de um disco a solo, em que é que se inspirou para o concretizar?

Nas minhas influências musicais, tanto que decidi que queria ter um cunho bastante forte dos anos 80, talvez porque ouvi muita música dessa década e tinha algumas influências musicais bastante diferentes umas das outras.

Eu queria passar estes dois lados que eu tenho e toda a gente tem: ‘Girassóis e Tempestades’. Este equilíbrio que vamos fazendo ao longo do nosso dia, da nossa vida, a nossa gestão pessoal das nossas emoções e dos sentimentos.

Por um lado, das alegrias maiores que tivermos, do entusiasmo, de acreditarmos, da esperança e, por outro, de nem sempre ser fácil, de haver solidão, de haver tristeza, sofrimento. Acho que convivemos com isso lado a lado, constantemente, seja com as nossas dores ou com as dos outros, seja com as nossas alegrias ou com as dos outros.

Queria passar isso para música e então o disco é muito diferente entre si. São várias emoções postas aqui. Pelo menos eu tive diferentes emoções a fazê-lo, e acabei por passar isso para a música. 

Depois também queria ter a sonoridade dos anos 80, dos sintetizadores, da eletrónica. Quis juntar isso para não ter uma parte completamente orgânica e despida em alguns temas, por exemplo, só instrumento e voz, sem mexer praticamente na voz e sem utilizar os efeitos todos que eu uso muito (adoro efeitos). 

Considera que os efeitos musicais dão um contributo positivo ao disco?

Acho que os efeitos se usam dependendo da música, da intenção, do que se quer dizer. Não há um efeito neste disco que esteja só porque fica fixe, está porque faz sentido, porque há determinada palavra, ou porque a estética musical vai para aí.

Os efeitos são procurados com amor e tu sabes que ao serem procurados por cada um dos que trabalham contigo - o Moulinex ou o Diogo Branco - foram procurados com muito amor e dedicação.

Quando há partilha de música, isto é um dos grandes motivos por que andamos cá nesta vida

Embora seja o primeiro em nome a solo, o disco conta com a participação de vários compositores que admira. Porquê estes contributos?

Sempre quis fazer bons discos e não sou nada agarrada àquela ideia de que as músicas são todas minhas e as letras são todas minhas… e depois o disco é uma grande porcaria.

Mas eu tenho a bandeira. Não fui eu que fiz os discos todos, mas isso não me interessa minimamente porque eu gosto mesmo é de música, mesmo!

Quero cantar todas as canções que eu consiga e sabia que tinha a capacidade para fazer canções que queria cantar e que gostava daquilo que estava a fazer. Mas sabia que tinha de aprender muito mais, ou queria aprender muito mais. Foi uma decisão minha.

Queria ter um disco melhor do que aquele que eu sabia que, há um ano, tinha a capacidade de fazer. O disco que queria ter, sabia que sozinha ia fazer parte dele, mas que não ia fazer o disco todo. 

Não estou a dizer que o disco podia ser pior, mas ia ser alguma coisa que  já conheço, e gosto de arriscar, gosto de aprender e gosto de estar com pessoas que sabem mais do que eu. Foi o caso desses compositores.

Toda a malta com quem fui ter são pessoas que tinham coisas ou aprenderam competências que eu não tinha. Então, quis aprender com elas. Foram compositores muito diferentes que trabalham de forma muito diferente, que pensam de forma muito diferente. A essência é a mesma, mas que depois a fazem de forma diferente e isso enriqueceu o meu disco. 

Enriqueceu ter uma canção do Chico César que é um dos maiores compositores de sempre brasileiro, enriqueceu eu estar com a Joana Espadinha em várias canções - sendo ela uma compositora fora de série. O Márcio, que é uma pessoa com que eu já tinha trabalhado e de quem já conhecia o trabalho há muito tempo - não sei onde o homem vai buscar tanto talento, como é que faz estas músicas e escreve desta maneira. O Tatanka, que faz uma canção e me liga a dizer ‘miúda, já fiz esta música há algum tempo mas só me lembro do teu nome, acho que isto é para ti’.

Poder ter a oportunidade de ter canções de outras pessoas que tenho vontade de interpretar e, mais do que vontade, vontade de o fazer, é mágico. Quando há partilha de música, isto é um dos grandes motivos por que andamos cá nesta vida.

Foi difícil chegar até ao nome escolhido para o álbum ou já tinha essa ideia antes de começar a produzi-lo? Porquê o nome 'Girassóis e Tempestades'? 

Não, este nome já vem de há muito tempo. Sabia que queria ter uma coisa meio entre ‘dia e noite’, ‘sombra e luz’, com esta diferença.

O girassol é a minha flor preferida, penso em girassóis há muito tempo, não sei porquê, é daquelas coisas que te vêm e não sabes o porquê e depois percebes que a razão era o teu disco, pronto.

Até já tenho uma tatuagem de um girassol e uma tempestade que fiz antes de o disco sair e por causa do álbum.

Como tenho tantas ideias, ainda tive para aí mais duas opções de nome. Mas houve ali um momento em que eu senti ‘o meu disco vai-se chamar Girassóis e Tempestades’ quando o álbum ainda não estava acabado. Senti ‘vai-se chamar assim e não há mais nada a fazer, vou tatuar isto e está feito’. Senti isto.

Enquanto fazia o álbum, houve uma altura que custou mais, outra que custou menos - havia músicas que eram girassóis, havia músicas que eram tempestades. O título foi criado neste conceito, as fotografias foram criadas neste conceito, o 'look'.

A forma como tudo foi trabalhado durante meses no estúdio. Falava das músicas ao Moulinnex e ao Diogo: ‘não, não, esta é um girassol portanto neste girassol tenho de pôr não sei o quê’, ou ‘não, não, esta é tempestade’. Foi tratado assim durante meses, há quase um ano, desde que comecei a fazer o disco.

Já em 'Amor Electro' tinha muitas letras e canções que não eram revolucionárias, mas que quero acreditar que eram revolucionárias pelo amor

A música ‘Guerra Nuclear’, a primeira música a solo que lançou, é um inédito de António Variações. Qual a importância que tem para si? E porquê a escolha desta para primeiro tema? 

Quando o tema me chegou, pensei ‘como é que não podia ser este tema?’, ‘como é que tenho sequer outra canção para apresentar em primeiro?’. Porque quando ouvi esta canção, senti a necessidade e a vontade de cantar isto e de sentir dentro de mim que isto era aquilo que queria dizer em primeiro lugar.

Sempre fui uma pessoa sensível e considero-me uma pessoa empática. E tudo o que se passa no mundo e à minha volta mexe realmente comigo, mexe mesmo. Não é 'mexe comigo' e no dia a seguir esqueço. 

Tento fazer muita coisa proativamente para tentar ajudar o que consigo. Já em 'Amor Electro' tinha muitas letras e canções que não eram revolucionárias, mas que quero acreditar que eram revolucionárias pelo amor. Não de uma intervenção política, mas de intervenção emocional. Já em 'Amor Electro' eu fazia porque precisava disso para mim mesma, precisava de ouvir essas coisas para continuar a ter força, para acreditar que a humanidade pode ter um caminho diferente.

Quando recebi esta canção, foi imediato. Tinha outras canções em cima da mesa para serem o primeiro 'single' e não conseguia decidir entre elas. Geralmente, quando tenho dúvidas a decidir é porque não é para ali.

Quando sinto dentro de mim que é, olha, é como os girassóis e tempestades que fiz logo uma tatuagem - já dá para entender o nível.

Quando recebi esta canção do António, além de ter sido emocionalmente das coisas mais fortes que vivi na minha vida, ter recebido aquela maquete - ter ouvido, passado 40 anos, o António Variações a cantar sobre uma coisa que nós já não deveríamos ter de o fazer. 

Foi fortíssimo a todos os níveis: por ser o António Variações, por ouvir a voz dele a dizer aquelas palavras sobre estarmos constantemente em guerra, seja na Ucrânia ou não. Agora a empatia é maior, fica mais visível aquilo que está a acontecer.

É muito triste que, passado 40 anos, continuemos a ter de falar sobre as mesmas coisas. E, passado 40 anos, ainda não tenhamos conseguido encontrar nenhuma forma ou maneira de resolver as coisas de uma outra forma.

Este seria o meu primeiro 'single', não porque eu o fiz, não porque eu decidi, mas porque por algum motivo ele veio-me parar às mãos e depois lutei por ele, para o poder cantar.

No meu coração, esta seria a primeira mensagem que eu queria passar, uma mensagem de paz - e isso, para mim, era importante.

Tive de me reunir emocionalmente com coisas que me põem mais forte e com as pessoas que me trazem mais força

O tema ‘Contigo’ é um dueto com a sua filha e o som ‘shhhh’ no tema ‘Silêncio’ é um áudio do seu filho. Quis, de alguma forma, torná-lo ainda mais pessoal ao colocá-los diretamente neste trabalho?

Não, nem sequer pensei nisso, em ‘introduzir os meus filhos no meu trabalho’, isso até me assusta, na verdade, eles são crianças. 

Sempre vim de bandas e sempre quis ser uma cantora de bandas, revejo-me assim. O facto de ter feito um disco a solo foi uma consequência de uma decisão que foi tomada porque, emocionalmente, passámos [os 'Amor Electro'] por coisas muito pesadas e tínhamos de curar o nosso coração.

Quando faço este disco a solo, tive de me reunir emocionalmente com coisas que me põem mais forte e com as pessoas que me trazem mais força, e as duas assim no topo da lista são os meus putos.

A Beatriz canta neste disco não só porque é minha filha, mas porque canta para caraças, na minha opinião. 

Não queria ter duetos nenhuns, queria realmente expressar-me neste disco inteiro à minha maneira, sozinha, em tudo, mas queria partilhar esta minha viagem com as pessoas que eu mais amo.

O único dueto que eu sabia que queria no disco era com a Beatriz, mas só caso houvesse a música certa. Para mim, é sempre a música primeiro, depois é que vem o resto, ao nível deste tipo de decisões.

Na minha cabeça, não faria sentido nenhum ter uma canção com a Bea que não fizesse sentido nenhum. ‘Ai, vamos ter ali uma canção e cantas com a mãe e pronto, vai ser muito giro’... não, tinha de fazer sentido haver uma canção certa, tanto que a canção era para ser outra e foi mudada um dia antes de a Beatriz gravar, no último dia de estúdio.

Tenho de lhe agradecer para o resto da vida ela ter feito isto comigo porque foi uma demonstração de amor uma pela outra. É uma música verdadeira, uma música que fala não só da parte melhor da mãe e da filha - porque há coisas com que temos de lidar - e eu queria mesmo ter uma canção mais profunda com ela. E acho que foi isso que aconteceu, pelo menos para nós.

O João ainda é muito pequenino e queria cantar em várias coisas, e não é que ele não tenha vontade, mas lá está, quando fizer sentido e se fizer sentido, um dia irá fazê-lo. Quero muito que aconteça, se fizer sentido e ele quiser realmente.

Mas tinha aqui de o incluir de alguma forma porque ele é maravilhoso e eu não queria deixá-lo de forma nenhuma fora de uma das coisas mais importantes que fiz na minha vida. Aliás, era impossível deixar de fora disto as duas pessoas que eu mais amo.

Portanto, isto nada tem que ver com trabalho, esta parte específica. Tem que ver com eu levar parte dos meus girassóis para a música.

Esse ‘shhhh’ é o melhor do mundo e eu nunca na vida encontraria alguém que fizesse um ‘shhhh’ melhor do que esse.

E depois, nos 'Girassóis e Tempestades' tenho o riso dos meus filhos no início da canção, que eram gravações que eu tinha no meu telemóvel e que fomos utilizando ao longo do disco. Ao longo do disco há ainda algumas com chuva, outra com um grilo. São sons que eu fui gravando ao longo da minha vida.

Foi dos momentos mais bonitos que eu tive na minha vida

Disse que a música com a sua filha foi "uma demonstração de amor uma pela outra". Como foi o momento em que gravaram juntas? O que sentiu?

Foi dos momentos mais bonitos que tive na minha vida. Foi estar a gravar isto e a única coisa que nos separava era um vidro, portanto estivemos a gravar isto a olhar uma para a outra. 

Nem consigo bem explicar o que é começar a gravar discos aos 11 anos e chegar aos 40 e estar num dos estúdios mais brutais de sempre - que, por acaso, fica em Portugal (ou que, se calhar, não é por acaso) -, já ter tido a possibilidade de ter cantado com tanta gente e ter tido tanta sorte em todo o meu percurso, e aos 40 anos estar a cantar com a minha filha.

Foi impagável, foi emocional a todos os níveis. Este girassol tinha de estar ali e a fazer parte dos meus girassóis esta canção com ela.

A melhor definição de sempre: ‘- Olha a Marisa - qual Marisa? - aquela que é fixe’ 

Considera que, com este álbum, vai conseguir afastar a ideia pré-concebida entre os portugueses de que é ‘a cantora dos 'Amor Electro’, passando a ser ‘a cantora Marisa’?

Nem quero que isso aconteça, que as pessoas esqueçam que eu sou a cantora dos 'Amor Electro'. 'Amor Electro' faz parte da minha vida e não é uma coisa que me ofende, é uma coisa que me orgulha bastante - tenho muito orgulho em tudo o que nós fizemos e que acredito que ainda vamos fazer juntos.

Acho que não, muito sinceramente. Acho que é normal as pessoas associarem, às vezes as pessoas também dizem ‘Marisa do The Voice’. Eu sou a ‘Marisa do The Voice’, a ‘Marisa dos Amor Electro’ e sou a ‘Marisa dos Girassóis e Tempestades’. 

Não me consigo definir nesse sentido, até porque já fiz algumas coisas e isso é uma coisa boa e não tenho de me definir.

Para mim, a melhor definição é se alguém passar por mim e disser outro ‘- olha a Marisa - qual Marisa? - a que canta’. Acho que essa definição já é fixe.

Ou então a melhor definição de sempre: ‘- olha a Marisa - qual Marisa? - aquela que é fixe’ [em tom de brincadeira]. É a que eu gostava que fosse. Pelo menos tenho feito muito trabalho interior para tentar ser a melhor pessoa que consigo.

Se estás no meio da tempestade, aprendes a usar o chapéu de chuva e, para a próxima, já te sentes mais tranquila

Tendo em conta que é um álbum que foi feito, citando as suas palavras, "com tudo o que tinha", sente que assinala uma nova fase da sua vida?

Totalmente. Aliás, começou a assinalar uma nova fase da minha vida e ainda nem estava feito. 

A vida é muito curiosa e interessante. A vida muda antes de veres efetivamente mudanças a acontecer, muitas vezes.

As mudanças estão lá mas parecem mais subtis e depois tu tens a possibilidade e a oportunidade, com esses presentes que a vida te dá, de tomar decisões. ‘Para onde é que eu vou?’ às vezes pode ser assustador e, a maior parte das vezes, é assustador.

Nós temos mudanças muito grandes e o primeiro impacto é assustador. ‘Eu não conheço isto, como é que vou fazer um disco a solo?’, como exemplo em relação a mim. Mas é como em tudo na vida.

Sempre que a tua vida muda, há um lugar primeiro de ‘wooow, o que é que vai acontecer?’, de insegurança, de incerteza - porque se muda de algo que já se conhece, por isso é que é uma mudança. Primeiro vem a tempestade, mas depois vêm os girassóis, há uma mudança.

Quando se olha para isto pelo outro lado, de que se vai poder tomar decisões diferentes onde vão ser ditas coisas diferentes, sem se saber se serão melhores ou não - mas sabes que já tens aprendizagens que não tinhas antes -, ao aceitares as coisas como elas são e modificares aquilo que pode ser modificado e pode ser melhor, as decisões vão ser diferentes.

As decisões quando são sinceras, então foram tomadas o melhor possível. Sobre decisões sinceras refiro-me a quem aceita de forma profunda uma data de coisas em por si próprio e nos outros, na vida, na idade, no sítio onde está, com possibilidade de aprender muito com isso e fazer melhor em relação a tudo. Isto é sempre.

Não significa que tenhas feito alguma coisa errada, mas podes sempre fazer melhor. 

A tempestade, em primeiro lugar, abraça, e, às vezes, é bom isso acontecer e faz parte, e não há aquela coisa ‘ai tens de sair daí rapidamente…'. Não. Se saíres daí rapidamente, não sentiste aquilo que tinhas de sentir. Quando sais, é sair a aprender. Não é só lá ficares a anhar.

Se estás no meio da tempestade, aprendes a usar o chapéu de chuva e, para a próxima,  já te sentes mais tranquila. E, depois disso, às vezes, quando queres usar o chapéu e puxas o chapéu, ainda levas com a água na cara e também faz parte.

Quando estamos rodeados de coisas, não vemos os outros, vemos coisas

Disse antes, em entrevista, que acredita na possibilidade de um mundo melhor, uma "esperança" que poderá ser "uma fantasia para saber lidar com a dor". Sente desesperança, não necessariamente a nível pessoal, mas também no clima social atual?

Acredito no nosso melhor porque é visível, porque existem pessoas que fazem coisas maravilhosas, porque conheço pessoas assim e é inspirador. Aliás, o nosso lado bom está lá, mas o menos bom também.

Nós temos visto tanto o lado menos bom em tanta coisa que fica mais fácil de acreditar na capacidade que temos de fazer o contrário, por isso é que acho que devíamos ter mais notícias de coisas boas.

Sigo uma data de páginas no Instagram que são só notícias boas porque me dá uma esperança de ‘epá, tanta malta a tentar fazer o bem, há muita malta a tentar fazer coisas fixes’. Quando digo ‘cenas fixes’ não é nós levarmos as nossas ideologias a um extremo. Quando digo isto estou a tentar perceber os outros, a tentar aceitar em vez de julgar logo à partida.

Imagina, vês uma pessoa e essa pessoa tem uma ação que não é fixe, que não é humana - e há um julgamento, óbvio, logo, imediato. Fizeste aquilo e agora ou vais ser castigado, ou não vais porque há várias coisas que não funcionam… há tanta coisa para fazer.

A saúde mental é tão importante e é tão importante serem pensadas soluções para isto. Era tão importante todos nós termos um apoio emocional, psicológico. Porque acho que todos nós estamos à toa aqui. 

A maior parte de nós está numa ansiedade enorme sem saber como é que vai ser o dia de amanhã. Ela aparece mesmo quando a malta estava melhor na vida a nível monetário. 

Nós temos aquele sentimento de que o importante são as necessidades básicas, que isso é o importante para depois conseguires fazer mais alguma coisa de que tu gostas: tens de comer e convém não passares frio e convém teres dinheiro para os medicamentos que tu precisas. 

Mas, no século XXI, já deviam estar estabelecidas para todos, são coisas que já não fazem sentido não estarem.

Há tanto tempo que a humanidade existe, como é que nós ainda não conseguimos organizar as coisas de forma a que ninguém passe por isto?

Mas depois passamos para o outro lado que é ‘ok, temos as necessidades básicas e o que é que podemos fazer com isso agora?’. E a humanidade foi para um lado de consumismo extremo, onde a única coisa que nos dava conforto eram coisas. 

Mas quando o objetivo não é ter mais coisas, começa a ser ‘então o que é que nós vamos ser?’. 

É muito curioso ver muita gente feliz nos países mais pobres e nós ficamos a pensar: ‘como é que isto é possível?’, ‘como é que esta gente não tem a maior parte das coisas que nós temos e parecem mais felizes do que nós?’. Porque tiveram de se virar uns para os outros. 

É nisso que nós conseguimos fazer a mudança, é quando há ligação. Quando estamos rodeados de coisas, não vemos os outros, vemos coisas.

Não deixa de ser válido que nós querermos ter uma vida de qualidade e termos coisas fixes e bonitas à nossa volta, o que não faz sentido é que sejam muito poucos a poder fazê-lo. Isso é que é triste.

Quero acreditar que nós temos a capacidade de dar a volta a isto mas que, para isso acontecer, há sítios profundos nossos que não estão a ser explorados.

É de um trabalho emocional e mental superior ter a capacidade de aceitar os erros dos outros

Quais são esses ‘sítios profundos’ a que se refere e como podiam ser explorados?

Tu tens a escola. Os miúdos vão para a escola e aprendem português, aprendem matemática e aprendem ciências - tudo fixe - mas não aprendem o que são. Não aprendem a lidar com as relações com os colegas, não aprendem a brincar. 

Muitos deles vêm de situações difíceis, e cada vez mais, onde os pais também não estão bem. Mais uma vez, nós vamos fingindo que está tudo mais ou menos.

Há malta que está efetivamente fixe e que fez um trabalho emocional já há muito tempo para conseguir ter uma perspectiva diferente. Mas depois há pessoas que nem sequer têm a oportunidade nem tempo para o fazer.

Inspiro-me sempre numa frase do Nelson Mandela: “Quando saí em direção ao portão que me levaria à liberdade, eu sabia que, se eu não deixasse a minha amargura e o meu ódio para trás, eu ainda estaria na prisão”. Isto é de um trabalho emocional e mental superior - ter a capacidade de aceitar os erros dos outros.

Nelson Mandela não sai com rancor, depois de ter estado tanto tempo preso, ou com vontade de violência, vingança - que é o normal que o ser humano faz: ‘ai tu fizeste-me, agora vou-te fazer’. 

E nós andamos nisto, parecem brincadeiras de putos. Porque ninguém te ensinou em putos: 'não, não é por aí e está tudo bem'.

[Conversa que deveria acontecer entre duas crianças] ‘'Bora', já ficas tu com a bola também, está tudo bem. Agora 'bora' jogar juntos. Fazemos agora primeiro este jogo e depois fazemos o outro, com outras regras tuas que eu vou ouvir com atenção. Se fizer sentido para mim, também jogo contigo e está tudo bem. E se não me identificar está tudo bem também’.

Obviamente tem de haver regras sociais que nos protejam a todos. A partir daí, é a decisão de cada um daquilo que faz da vida.

O importante é a capacidade que tu tens, depois de te fazerem tanto mal, de saíres com a vontade de querer dar o melhor contributo que consegues, mesmo assim.

É uma qualidade que se trabalha como o português e como a matemática. Isto dá para ser trabalhado, isto dá para ser aprendido.

Tu tens exemplos no mundo como o Mandela. Imagina que o Mandela era nosso professor, a quantas crianças é que o Mandela tinha mudado a cabeça tipo ‘wooow’? Se calhar iam ter uma perspectiva super diferente de uma data de coisas.

Os livros que se dão, as coisas que se podem estudar, efetivamente, as coisas que se podem fazer. E isto muda muita coisa. E uma das coisas que temos de realmente fazer é dar atenção às crianças, porque vão ser o nosso futuro.

O problema é que quem ensina são uma datas de adultos, muitas vezes doentes, que estão a tratar das nossas crianças, eu inclusive. E quando digo doentes tem que ver com o facto de o mundo estar nesta situação em que acontece tudo o que acontece - onde há violência extrema, onde fazem mal a crianças, onde fazem mal a idosos, onde é corrupção por todo o lado. Como é que as pessoas podem estar saudáveis?

Imagina que o nosso corpo é o mundo. Está tudo infetado e estamos cheios de porcarias, mas nós não sentimos porque por fora estamos super bem, mas estamos doentes. Porque é impossível não estar. É impossível todos nós estarmos tranquilos com isto tudo, penso eu.

Há muita coisa para mudar e as pessoas têm falado sobre isso, as pessoas têm-se manifestado. Em relação à educação, em relação à saúde mental, em relação à vida. E acho que o caminho também vai ser para aí - vai ser nós chegarmos a um ponto em vamos olhar e pensar ‘malta, isso assim não dá’.

O plano individual que cada um pode fazer é este: tentar fazer o melhor que consegue, todos os dias, para quem está à sua volta e para si próprio. Porque se tu deres o melhor, também vais querer dar o melhor aos outros.

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