"Os meus discos são todos diferentes. Sempre fugi da normalização"

Um dos entrevistados desta sexta-feira do Vozes ao Minuto é Vitorino Salomé, que lança hoje mais um álbum, intitulado 'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo'.

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© José RC

Natacha Nunes Costa
19/04/2024 11:00 ‧ 19/04/2024 por Natacha Nunes Costa

Cultura

Vitorino Salomé

Vitorino Salomé, nome incontornável da música portuguesa, com cinco décadas de carreira e mais de 20 discos editados, lança esta sexta-feira, 19 de abril, mais um álbum aos 81 anos.

O título 'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo' tem por trás uma história de "irreverência" e de "insubmissão", que aconteceu no Redondo, no Alentejo, de onde Vitorino é natural. Apesar de ter já vários anos, o significado desta frase continua atual, uma vez que, na opinião do artista, esta é "a maneira mais fantástica de contestar" e uma demonstração de grande liberdade.

Não é assim por acaso que Vitorino já tenha utilizado a mesma expressão, anteriormente, para dar nome a um espetáculo no Teatro São Luiz, em Lisboa, e para um documentário sobre a sua vida e obra, realizado por Jorge Paixão da Costa.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, no âmbito do lançamento deste novo álbum, Vitorino revelou ter uma "briga" com uma editora e alguma mágoa em relação às rádios e televisões portuguesas a quem responsabiliza pela diminuição do impacto da "chamada música de intervenção".

Apesar disso, realça a qualidade dos novos projetos que têm surgido no âmbito deste género musical, como A Garota Não, a quem teceu grandes elogios.

Como não poderia deixar de ser, uma vez que Vitorino é também um nome que marca a música portuguesa dos dias de liberdade, este é também um disco de Abril.

Lança hoje, dia 19 de abril, o álbum 'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo'. Título que já tinha dado a um concerto no São Luiz etambém do documentário sobre a sua vida e obra, realizado por Jorge Paixão da Costa. Qual a verdadeira origem desta frase?

Uma história muito interessante, a que eu assisti. Assisti à criação dessa frase. Há um parente meu que era carpinteiro, lembro-me de que ele andava sempre de fato de macaco para trabalhar e de boina. Era um homem muito interessante, muito inteligente, da vila do Redondo, onde há um clube de futebol que é o Redondense Futebol Clube, desde os anos 30. Tal como noutros clubes, havia na altura e continua a haver assembleias-gerais para decidirem questões do clube. E, nessa altura, acontecendo uma assembleia-geral, o meu parente José Embirra – não é o nome dele mas nas terras do Interior português a maioria dos nomes de família a gente não os sabe – estava lá. Num certo dia, o José Embirra, que era conhecidíssimo, entrou na sala, já decorria a assembleia-geral, e pediu a palavra. O senhor José Maria Barrancos deu-lhe a palavra e ele levantou-se e disse: 'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo' [risos]. Claro que foi logo expulso. E foi embora para a tasca do clube. Foi para lá beber copos de vinho. E eu fixei essa frase que é fantástica. Toda a gente lá no Redondo se lembra que o José Embirra não concordou sem saber do que se tratava. Por isso, acho que é um título extraordinário para um disco, para um documentário, para concertos.

'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo' é a maneira mais fantástica de contestar e perceber o que se está a passar ou não. E também tem a ver com a irreverência e com a insubmissão. Esta frase é muito, muito sábia

E a canção que dá título ao disco fala-nos disso mesmo, tal como o José Embirra, é sobre o encontro da vida com a liberdade, que nos lembra o privilégio de podermos escolher o nosso caminho, pensando e opinando em liberdade…

Liberdade total, anarquista.

Já a capa do disco ''Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo' remete-nos para a censura e o lápis azul. Acha que nos tempos que correm é cada vez mais necessário lembrar o que acontecia antes da Revolução dos Cravos?

Acho que esta frase está adequadíssima aos tempos que estão a decorrer, em termos universais do homem, da humanidade. 'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo' é a maneira mais fantástica de contestar e perceber o que se está a passar ou não. E também tem a ver com a irreverência e com a insubmissão. Esta frase é muito, muito sábia.

Os seus 50 anos de carreira estão de certa forma fundidos com a história da nossa democracia, que festeja no dia 25 de Abril meio século de existência. Podemos considerar que este é também um disco de Abril? Que celebra a liberdade?

Sim, sim. Rigorosamente porque é um disco de grande liberdade e, se calhar, até de algum risco. As canções são bastante suaves mas tem lá uma que é menos suave. É quase panfletária, mas não chega a ser, que se chama 'Moda Revolta'. Antes do 25 de Abril, a agitprop - chamava-se na gíria estudantil académica, é agitação e propaganda - era precisa. A agitprop usava-se muito nas reuniões das associações de estudantes, muitas vezes em Coimbra, em Lisboa ou no Porto, que eram proibidas. Por exemplo, na minha escola, a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, a associação de estudantes foi extinta pelo Ministério da Educação. A determinada altura, o Ministério da Educação mandou fechar a associação e nós tínhamos de ir à cantina de Ciência ou de Letras e não tínhamos nenhuma organização social na escola. Era muito reprimida mas, de qualquer maneira, fazíamos parte das reuniões das associações. E esta frase ['Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo'] não sei se alguma vez a utilizei lá mas era muito adequada também a estas reuniões porque aquilo era uma grande confusão alegre, interessantíssima porque passava-se tudo num tempo repressor, devido à PIDE, e tínhamos de ter cuidado com o que dizíamos, com o que fazíamos. E essas reuniões eram muito vigiadas e originaram algumas crises estudantis. Às vezes havia consequências, outras vezes não.

A história repete-se sempre, mesmo que seja de outra maneira, e é provável que esteja a começar a repetir porque há muita apreensão com o momento que estamos a viver 

Nessa altura já escrevia canções?

Há 50 anos, cantava-as. Já escrevia mas eram assim muito inocentes e pueris. Gostava muito de ouvir Caetano Veloso, Chico Buarque, inspirava-me muito nas canções deles. Fazia, junto com um amigo, umas canções muito inocentes. Mas ouvíamos muito música francesa e, quase clandestinamente, ouvíamos Zeca Afonso, José Oliveira, Fanhais. Esses discos eram quase vendidos por baixo do balcão, mas vendiam-se aqui na Rua do Carmo. Agora... se o vendedor desconfiasse de um homem austero, de gravata, dizia: 'Eu nunca tive isso' [risos].

Agora há miúdos fantásticos, com uma formação musical extraordinária aplicada à prática, com imaginação de composição também de alta qualidade, e eles estão a aparecer aí mas continuam a não ser os mais passados

A música de intervenção e até o cante alentejano voltaram em força nos últimos anos. Além do crescimento do número de fãs, há novos projetos que apostam neste género musical. Por que razão acha que isto está a acontecer agora? Acha que está relacionado com o medo de perder a liberdade conquistada em 74?

Trata-se de insubmissão, de contestação ou revolta. A história repete-se sempre, mesmo que seja de outra maneira, e é provável que esteja a começar a repetir porque há muita apreensão com o momento que estamos a viver e uma das reações é esta. Em determinada altura, a chamada música de intervenção baixou de impacto porque foi muito, muito atacada pelas rádios e até pela televisão, onde entrou para sempre e a partir de 75 a música anglo-saxónica em força com as ‘majors’ a editar cá todos os seus artistas e com uma capacidade de ‘showbiz’ e de promoção que uma editora portuguesa não tem. E houve um tempo em que isso invadiu de tal maneira o espaço mediático português que houve necessidade, nos anos 90, de exigirmos que houvesse quotas na rádio para passar música portuguesa. Houve uma resistência muito grande de muitas rádios. Contestaram, diziam que não havia música de qualidade e quantidade suficiente de língua portuguesa, o que é absolutamente mentira. Agora então há cada vez mais. Mas, se repararem, há muitos cantores e compositores jovens que compõem e cantam em inglês, cujo imaginário não pertence ao nosso imaginário poético e às vezes fica estranho. Um português ou uma portuguesa a cantar em inglês soa estranho e, além disso, nunca, mas nunca vão entrar no mercado anglo-saxónico porque estão em competição com a origem, de maneira que perdem muita energia e é muito pena.

Em Portugal, existe uma música a que se pode chamar popular que é muito, muito interessante e agora há miúdos fantásticos, com uma formação musical extraordinária aplicada à prática, com imaginação de composição também de alta qualidade, e eles estão a aparecer aí mas continuam a não ser os mais passados. Repare que os programas de televisão dão ainda privilégio – aqueles 'The Voice' e outros assim parecidos – ao cantar em inglês ou então são descuidados [risos].

A Garota Não é de uma qualidade altíssima e é a mais próxima talvez da música de intervenção do antes e após 25 de Abril 

E o que anda o Vitorino a ouvir neste momento dentro deste leque de artistas que surgiram mais recentemente e que acha que têm "alta qualidade"?

Ouço muitos. Marôco, os Ganso são de alta qualidade. Os D.A.M.A. eles agora verteram para o cante alentejano, os Capitão Fausto… muito bons. Os Quatro e Meia também muito bons. Todos de alta qualidade. E depois há a Garota Não que é de uma qualidade altíssima e é a mais próxima talvez da música de intervenção do antes e após 25 de Abril. Essa arrisca mesmo esse risco porque é um risco.

O Zeca Afonso ensinou-me muita coisa. Como estar no palco. Muito traquejo de estúdio

Conheceu o Zeca Afonso e o José Mário Branco, acha que eles ficariam orgulhosos dos jovens que abraçam a música de intervenção?

Ui… muito! Aprendi com eles muita coisa. O Zeca Afonso ensinou-me muita coisa. Como estar no palco. Muito traquejo de estúdio. Éramos muito poucos a gravar discos. Eu comecei em 74 a organizar o meu disco mas estava a gravá-lo em Paris, entretanto, aconteceu o 25 de Abril e vim para Lisboa gravá-lo aqui e o Zeca, assim ao grupo que era próximo dele, aparecia em muitas sessões e dizia: 'Olha que…' [risos]. Eu andei cerca de 10 anos a cantar com ele e o meu irmão Janita entrou também a partir de certa altura a acompanhá-lo pro bono. Não ganhávamos dinheiro. Eram sacos de arroz integral, cenouras, lençóis, colchas com a coroa de Portugal [risos].

Os meus discos são todos diferentes uns dos outros. Com pontos de vista diferentes tanto na edição como na capa. Sempre tentei fugir da normalização das coisas

De volta ao 'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo'. Neste disco optou por uma paleta sonora diferente da existente em trabalhos anteriores, explorando novos caminhos estéticos. Porquê?

Tenho muitos discos, produzia muito. A pandemia interrompeu-me muito e também algumas brigas com editoras. Eu tenho uma briga com a Warner Music, por exemplo, que não me paga 'royalties' há cinco anos e há 20 e tal discos meus. Mas os meus discos são todos diferentes uns dos outros. Com pontos de vista diferentes tanto na edição como na capa. Sempre tentei fugir da normalização das coisas. Agora tem aqui [no'Não Sei do Que É Que Se Trata, Mas Não Concordo'] alguns ambientes neo-românticos e tem uma orquestra. Aquilo não é nada japonês é tudo verdadeiro, quarteto, coros. Tudo. Mas confunde [risos]. Agora já se pode fazer aquilo com um teclado, importar sons verdadeiros. E com a Inteligência Artificial até podem meter lá a minha voz.

A canção 'Para Quando Eu Te Encontrar' conta com a participação da cantora Cuca Roseta. Como é que surgiu este dueto?

Por amizade. Estivemos juntos num palco. Ela canta muito bem, tem uma voz lindíssima e é toda musical. É uma personagem discreta, ninguém sabe as coisas fantásticas que faz. Mas eu também não conto nada [risos]. A certa altura propus-lhe: 'Vamos fazer um concerto juntos'. E um ano depois ela respondeu-me: 'Está bem'. E vamos organizar um ou dois concertos juntos. Daí tê-la convidado para esta canção que é composta pelo meu pianista e que é o Sérgio Costa, que é fantástico. Um quarentão que é maravilhoso. A música e letra são dele. Ele também já tem prática porque pertencia aos Belle Chase Hotel, que era uma banda de Coimbra, do início dos anos 2000, que contava também com o JP Simões, que é fantástico. Ele é um homem de uma imaginação delirante e tem um discurso fantástico, escreve muito bem.

Para terminar, que concertos se seguem?

Começo no dia 19 de abril em Setúbal, depois vou para Porto de Mós, Sertã, Aveiro, Leiria, depois descanso um dia e vou para Castelo de Paiva e Elvas, com o Rui Veloso e os Monda. E continua por aí...

Leia Também: "O que ouço sempre em José Mário Branco é o coração da utopia a falar"

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