É o atual líder do World Endurance Championship (WEC), que é como quem diz o Campeonato do Mundo de Resistência. No European Le Mans Series, que estaria prestes a começar, a expectativa era apenas a de ganhar. É justo afirmar que Filipe Albuquerque atravessa um dos melhores momentos da sua carreira e esta pausa devido à pandemia do novo coronavírus veio apenas atrasar aquilo que se espera ser uma temporada de grandes conquistas.
Em entrevista ao Desporto ao Minuto, um dos mais reputados pilotos portugueses recordou connosco alguns dos episódios mais marcantes de uma carreira já longa.
Entre vários êxitos e conquistas, Filipe Albuquerque destacou a vitória nas 24 Horas de Daytona como um dos seus pontos mais altos enquanto profissional, mas há ainda "muita coisa por conquistar" como o próprio indica.
Natural de Coimbra, Filipe Albuquerque, de 34 anos, contou-nos também como a chegada à Formula 1 lhe foi negada... "pelas jogadas políticas".
O kartódromo da Batalha faz parte da tua história. Conta-nos porquê...
Na altura, em 1993, foi lá que comecei a dar as minhas primeiras voltas. Como eu sou de Coimbra, era o kartódromo mais próximo e foi lá que o meu pai me levou, a mim e ao meu irmão. Tinha sete anos, mas foi no ano em que fiz oito. Foi lá o meu primeiro contacto com os karts.
Quando é que tudo passou de uma brincadeira para ser realmente a ‘sério’?
Quando tentei que começasse a ser a sério foi ainda na altura dos karts, quando tive uma proposta para ir para fora correr na CRG, em Itália. Tinha 17 anos. Foi nesse ano que tive a proposta para correr sem pagar e ser profissional. Foi uma altura crucial, fui para Itália e fui tentar a minha sorte.
Mas tiveste antes aquele clique: ‘É mesmo isto que quero fazer’?
O meu pai, a minha mãe, a minha família sempre investiu na minha carreira, mas as corridas eram secundárias porque a escola estava em primeiro lugar. Quando tive essa proposta de ir para fora, os meus pais já não iriam conseguir suportar as despesas e, com a ajuda do Nuno Couceiro, as coisas começaram a ficar mais sérias. A minha mãe disse-me: ‘Vais tentar o teu sonho, porque eu sei que queres muito isto. E se não conseguires, eu estou aqui e regressas aos estudos’.
Com apenas 13 anos ingressaste na equipa junior dos irmãos Couceiro. Que importância teve esse passo na tua carreira?
Foi uma peça essencial naquilo que foi depois a minha carreira. Eles tinham a experiência e sabiam o caminho. Em Portugal foram as pessoas certas para me aconselhar e guiar na minha carreira.
Sabia que tinha capacidades de ir para a Formula 1 e não fui. Não por não ter talento, mas por causa das políticasEm 2005 entraste para a Red Bull Junior Team, no ano seguinte venceste o Campeonato Europeu de Formula Renault, depois pudeste conduzir um carro de Formula 1… Chegaste a pensar que o sonho estava perto de se concretizar?
Muito, muito… Na carreira de um piloto há vários momentos cruciais. No meu caso, primeiro, foi aquele momento nos karts, depois foi quando dei o salto para os Fórmulas pela mão da Red Bull. E isso foi o trabalho do Nuno e do Pedro Couceiro, que conseguiram que fosse integrado na equipa. Assinei contrato e aí já havia referência à equipa de Formula 1. Senti mesmo: ‘Isto pode ser real’. Foi um momento muito importante e fiquei super contente, entusiasmado e motivado porque sabia que dependia de mim chegar lá. O que eu queria era uma oportunidade e foi espetacular entrar na Red Bull. Sabia que dependia só de mim, das minhas capacidades e dos meus resultados. Foi um momento muito feliz na minha carreira.
Sentiste, como disseste, que tudo dependia de ti. Olhando para trás, para esses momentos, ainda tens a ideia de que dependia apenas de ti chegar à Formula 1?
Eu sonhei com esse momento, mas na verdade percebi que não dependia só de mim. Mais tarde percebi que haviam jogadas políticas, que eu às vezes nem sequer sabia. Acho que o principal foi quando passei para a World Series, logo depois de ter ganho a Formula Renault 2.0, quando eu devia ter passado para a GP2. Não percebi… Tinha sido uma mega-jogada política da Red Bull que envolvia pilotos de Formula 1, a equipa de F1, e eu fui uma moeda de troca. Esse foi o começo das políticas a funcionarem. Foi um momento difícil da minha carreira. Eu sabia que tinha capacidades de ir para a Formula 1 e não fui. Não por não ter talento, mas por causa das políticas.
Testaste pela primeira vez um monolugar de Formula 1 no dia 13 de junho de 2007. Teve um sabor especial para ti, correto?
Lembro-me perfeitamente desse dia. Nunca mais me esqueço que eles [Red Bull] tiveram um grande cuidado ao falar no rádio e ao dizer: ‘Filipe, parabéns’. Eu nem percebi, estava completamente focado na condução do carro, e pedi para repetirem. ‘Parabéns, hoje é o teu dia de anos. Parabéns… Podes entrar na box’. Achei aquele momento engraçado e nunca mais me vou esquecer que me deram os parabéns dentro do carro quando eu estava a testar. Foi espetacular.
Filipe Albuquerque ao volante de um Formula 1 da Red Bull num evento na Colômbia© Reuters
E como foi essa sensação de conduzires um carro de Formula 1?
É o sonho a começar a tornar-se realidade. Falar com as pessoas, com os engenheiros, entrar no carro, ver toda a potência do carro… É um sonho. Eu acordava, dormia, vivia todo o dia a pensar em rodas, travagens, como é que poderia ser um milésimo de segundo mais rápido. Era tudo para mim… Continuo com a mesma paixão, mas fui crescendo e hoje sei gerir melhor essa felicidade.
Em 2010 participaste numa corrida chamada Race of Champions, onde bateste o tetracampeão mundial de Formula 1, o Sebastian Vettel, e o heptacampeão do mundo de ralis, o Sebastian Loeb. Poucos pilotos podem dizer que o fizeram…
Esse foi também um bom momento da minha carreira porque já tinha estado lá em cima, perto de entrar na Formula 1. E foi aí que voltei a estar numa competição com todos esses campeões, o Schumacher, o Loeb. Grandes nomes que intimidavam, mas na altura o grande campeão era o Vettel. Um piloto que eu já conhecia da altura da Red Bull Junior Team. Portanto, ele era campeão do mundo, eu não era ninguém, sabia que não tinha lá chegado devido à política, mas ele não me intimidava nada. A perspetiva que eu tinha dele não era a mesma das outras pessoas.
No primeiro dia, as coisas não nos saíram bem, mas no segundo dia, frente àquelas estrelas todas, eu e o Álvaro Parente éramos uns zé-ninguém e quis divertir-me, dar o meu melhor e vamos ver onde é que vou chegar. O que é certo é que naquele dia estava completamente imbatível. O Nuno Couceiro já me tinha dito isso uma vez, há dias que sou quase imbatível. Perdi uma final frente ao Loeb, fiquei muito frustrado, mas como a final era à melhor de três pensei: Vamos já à próxima, vamos lá. Tinha 99% de certeza que ia ganhar ao Loeb, porque com aquele carro estava a sentir-me mesmo muito bem e no limite. E assim foi, ganhei. Sei que quando estou lento há algo de errado. Sei que em condições idênticas, sou um piloto difícil de bater. Não sou imbatível, claro, mas sei que sou muito difícil de bater. Esse momento deu-me uma enorme confiança e mostrou-me que podia fazer muitas coisas boas.
Filipe Albuquerque na Race of Champions© Reuters
DTM, WEC, ELMS e podia estar aqui a enumerar outras tantas provas em que já participaste. O que te quero perguntar é em qual de todas elas te deu ou dá mais gosto participar?
Eu gosto muito da resistência porque é um trabalho de equipa. Temos de saber colocar os egos de lado, porque o sucesso do teu companheiro de equipa é o teu sucesso. Há muitos pilotos que não conseguem perceber isso. Às vezes podem ter sorte, mas nunca conseguirão ter uma carreira muito longa na resistência, porque nós temos de nos apoiar uns nos outros para ultrapassar os obstáculos. Há que saber lidar com as pessoas. Gostei também muito dos tempos em que estive na Audi, onde corria à geral em Le Mans, adorei. Estou a gostar também muito do momento que estou a viver na United Autosports, o meu colega de equipa [Phil Hanson] é uma pessoa muito simpática, estamos a ganhar corridas no ELMS, no WEC, isso faz com que cresça a motivação. Gostei também muito do A1GP, um campeonato espetacular que adorei.
Neste momento estás na liderança do WEC [Campeonato do Mundo de Resistência] em LMP2. Sentes que esta paragem na competição devido à Covid-19 pode ser prejudicial na luta pelo título?
É claro que este tempo em casa dá que pensar. É prejudicial porque estava exatamente no momento em que ia ter as condições ideais para ganhar as 24 horas de Le Mans, começar o ELMS e ganhar o campeonato porque o meu colega de equipa está no pico da sua performance. Por isso está a prejudicar-me bastante não correr agora. Ninguém tem culpa, mas se calhar para o ano seguinte as coisas já vão ser diferentes. Por outro lado, estou em casa, com a minha família, estamos todos bem e felizes. Temos de ver o copo meio cheio e ver ainda outra coisa: é que a vida é muito mais complicada para as equipas que fizeram investimentos de camiões, oficinas, que têm contratos a pagar, os salários dos funcionários. São inúmeras famílias que estão dependentes e é uma bola de neve. E a minha bola de neve não me dá o direito de lamentar, porque há pessoas em situações muito piores e com dificuldades.
Sei que tenho uma oportunidade de ouro para vencer as 24 Horas de Le MansEste ano está a ser atípico pelos motivos já conhecidos. E quais são as tuas expectativas para o ELMS que deveria estar a começar?
As minhas expectativas são tão altas para este ano, que me arrisco a dizer que no último ano em que podíamos depender só de nós foi 2006, talvez. Porque neste momento, eu teria o carro, o meu colega de equipa e a equipa no melhor nível. O objetivo era ganhar todas as corridas em que íamos entrar. Nos últimos anos em que participei, sabia que não ia ganhar corridas. Era preciso muita sorte, a minha probabilidade era de 10%. Mas este ano tínhamos todas as condições reunidas para ter uma excelente Le Mans, que é a corrida que quero ganhar em qualquer classe ou categoria. Não vou ter essa oportunidade para já, adiaram Le Mans para setembro, e espero que consiga correr com a United Autosports porque sei que tenho uma oportunidade de ouro para vencer.
Como todos sabemos a vida de um piloto é feita, além de muitas corridas, também de muitas viagens. Como têm sido agora estes dias em que, tal como todos os portugueses, tens de estar em quarentena?
Tenho andado a treinar fisicamente e entre pilotos temos uma comunidade de amigos, em que vamos fazendo algumas corridas online. Acho que estou a andar mais de carro do que alguma vez andei (risos). Mas é no simulador. A minha mulher até já me disse: ‘Normalmente estás fora porque estás a trabalhar, agora estás em casa e não te vejo muito tempo porque estás sempre agarrado ao computador’. Mas eu tenho corridas! (risos). Tenho sempre muita coisa para fazer, estou também a ensinar uma das minhas filhas a andar de bicicleta sem rodinhas, naquela hora que tiramos para dar uma voltinha ao pé da garagem. Tenho ocupado muito bem o meu tempo.
Acabas por sentir falta das provas, daquela adrenalina em pista?
Sinto muita falta das provas porque eu aqui não estou a conseguir ser tão rápido como na vida real (risos). Não é a mesma coisa, mas acaba por matar o bichinho. Andamos ali todos colados, eu, o António Félix da Costa, o Lando Norris, o Max Verstappen, o Dani Juncadella, enfim… uma série de pilotos que correm por este mundo fora. No primeiro dia, quando começámos, éramos seis pilotos. No quarto dia já éramos uns 45, uma loucura. Às 9h da manhã já estou a receber mensagens no WhatsApp, por causa dos diferentes fuso-horários, para ir correr. No outro dia falei com o António [Félix da Costa] e ele até me disse que tem jantado muitos dias à meia-noite, porque estas corridas começam por volta das 20h00 (risos).
Recentemente foste piloto de testes da DS Techeetah, equipa campeã do mundo de Formula E, onde está o António Félix da Costa. Era uma competição onde te vias inserido?
Aceitei esse teste de muito bom grado porque é a equipa campeã em título, uma das melhores do momento. Foi também através do António que integrei estes testes. Sabia que o ia ajudar a desenvolver algumas partes em que os pilotos oficiais não poderiam andar. Neste momento estou muito concentrado em ganhar Le Mans e nas corridas de resistência, agora se os regulamentos de Le Mans, o regulamento entre o IMSA e o WEC não forem para a frente e começarem a não correr bem, e se surgir a oportunidade… a equipa certa, na hora certa, não vejo por que não aceitar. Acaba por ser interessante a tecnologia que estão a desenvolver. Como é que com a mesma bateria e potência elétrica conseguem ser mais rápidos ano após ano.
Por falar no Félix da Costa, no passado mês de novembro, ele venceu as 4H de Xangai, onde tu subiste ao pódio. Depois, no Bahrain, venceste tu e ele ficou em segundo lugar. Sendo bons amigos, como é a vossa rivalidade nas pistas?
É boa, é boa. Só nos cruzámos em pista em Austin e ele até me passou. Eu sabia que ele não estava em condições de ganhar a corrida. Entrou, ultrapassou-me, arriscou um bocadinho mais, mas não perdi nada com isso, porque passando três curvas ele entrou para a box. Aquilo foi um bocado mais ego, mas não há problema nenhum, foi para nos divertirmos. Mas estava com a cabeça na estratégia e não quis correr riscos. O que é certo é que ganhei a corrida e ele ficou em terceiro. Depois é isso que têm as corridas de resistência, não é só andar rápido, há que saber que guerras se podem comprar durante a corrida. O António também nunca se iria colocar numa posição que me pudesse comprometer a corrida, tenho a certeza disso. Não nos temos cruzado muitas vezes em pista, mas esta última foi engraçada.
Fazendo uma revisão a toda a tua carreira, qual foi para ti o ponto mais alto até agora?
O ponto mais alto acho que acaba por ser a vitória nas 24 Horas de Daytona [2018]. É das maiores corridas mundiais, acho que foi o ponto mais alto. E até me arrisco dizer que foi um dos anos mais competitivos, porque havia lá muitos carros e grandes pilotos. O Alonso estava lá a correr, o Lando Norris, e eu ganhei nesse ano. Tivemos alguns problemas, mas nas últimas três horas conseguimos poupar o motor. Mas a carreira de um piloto não é feita de uma só corrida, é feita de consistência e de vários anos no topo. Corri na Formula Renault, no A1GP, depois entrei na Audi e estive três anos no DTM, depois mais dois anos no LMP1 e fui escolhido por eles para correr em Le Mans à geral. E agora, já nos últimos anos, estou nas melhores equipas das competições em que participo. Até nos testes da Formula E fui convidado para a melhor equipa. É impossível pedir mais, estou em muitas frentes nas melhores equipas. Estou a passar um momento muito bom.
João Barbosa, Christian Fittipaldi e Filipe Albuquerque a festejar o triunfo nas 24 Horas de Daytona© Getty Images
São vários os troféus que tens aí em casa, mas qual era aquele que te faria pensar: ‘Bem, já me posso reformar depois disto’?
Ainda me falta muita coisa antes de me reformar, muita coisa! Tenho de ganhar Le Mans, tenho de ganhar em Sebring, também Petit Le Mans, que é uma corrida de 10 horas em Road Atlanta. É das corridas que mais gosto. Tenho liderado as últimas partes da corrida nos últimos três anos seguidos e nunca ganhei. É uma corrida que quero muito ganhar. O ELMS também quero ganhar, e este ano estou numa situação para ganhar o WEC. Enfim, tenho muita coisa para vencer. Tenho andado muito, muito próximo. Só preciso de não ter azar.
Para finalizar. Se tivesses a oportunidade de voltar àquele kartódromo da Batalha, o que dirias àquele menino de sete anos que estava cheio de sonhos na altura?
Diverte-te a andar de kart, nunca deixes a escola porque é lá que vais criar as tuas bases e os teus amigos. Tenta dar o melhor para conciliar as duas coisas. Se gostas de uma coisa, vai atrás dela e não percas a ambição. Era isso que diria e foi isso que os meus pais me disseram também e que eu aprendi ao longo da minha vida. Temos de ter noção da realidade, os pés na terra, mas essa ambição dá-nos vontade e energia para conciliar as duas coisas.