Seis países, 10 clubes, 11 troféus, 27 anos. Em números, resumir-se-ia assim a carreira de Manuel Fernandes. Contudo, o percurso do jogador é muito mais que isso.
Começando desde cedo nas ruas da Amadora, foi parar ao Sporting pela mão do pai de um colega. Mudou-se para o Benfica de forma parecida e foi por aí que ficou vários anos até se destacar na equipa principal.
Tornou-se benfiquista, mas os olhos brilharam quando pisou os palcos de Inglaterra. Foi por causa disso que teve zangas com os encarnados, saindo da Luz de forma infeliz. Conheceu vários países, vários colegas, várias culturas e várias realidades. Sente-se estrangeiro, mas sempre com vontade de voltar a Portugal.
Com 36 anos e outros tantos para viver a 'vida real', Manuel Fernandes abriu as portas ao Desporto ao Minuto e contou o que tem vivido na aventura pelo futebol.
Não tinha ideia de ser jogador de futebol. Só pensei nisso mais tardeDe onde veio aquele Manuel Fernandes que começou desde pequeno a jogar futebol e que, aos 36 anos, ainda não se cansou disso?
Eu comecei a jogar no meu bairro, na Amadora. Jogava com os rapazes na rua, todos mais velhos. Quando andava no terceiro ano, o pai de uma rapaz com quem eu jogava na rua viu-me a jogar, era adepto do Sporting e levou-me aos treinos do Sporting nessa altura. Era muito novo, tinha uns seis anos, ia fazer sete.
Aconteceu porque sim.
Aconteceu, não foi nada planeado. Entretanto, fui fazer treinos de captação ao antigo estádio de Alvalade, com o senhor César Nascimento [antigo treinador dos escalões de formação]. Éramos uns 50 miúdos, tivemos um primeiro treino no pavilhão de futsal, depois houve uma seleção dos melhores e só aí é que começamos a treinar nos relvados à volta do estádio.
Iniciar a carreira no Sporting foi fácil?
Não foi difícil. Era fazer o que gostava de fazer, mas num contexto diferente, já sem os meus amigos. A parte mais difícil foi começar a jogar com rapazes da minha idade que eu não conhecia, foi talvez o mais estranho. Fora isso, não achei difícil.
Manuel Fernandes chegou à formação do Sporting em 1995© Getty Images
Era o futebol que queria como profissão?
Eu levava-o como um 'hobbie'. Tinha a escola e estava mais focado nisso, o futebol era para entreter. Só mais para a frente é que comecei a perceber que podia fazer do futebol uma profissão.
Passado pouco tempo, o Manuel trocou o Sporting pelo Benfica. Como aconteceu essa mudança?
Foi dois ou três meses depois. Nessa altura, havia o bilhete de identidade amarelo e o azul, eu tinha o azul, que era dado aos filhos de pais estrangeiros. Os meus pais são de Cabo Verde, portanto, fiquei com a nacionalidade deles e com o BI azul. Nessa fase, o Sporting tinha outro rapaz nessa situação e só podia jogar um. Ele era mais velho que eu e, nessa altura, o Osvaldo Silva [antigo jogador e treinador dos escalões de formação] veio explicar-me a situação. Eu, como ia jogar pouco, decidi ir embora. Nessa altura, voltei a ter ajuda da família do outro rapaz que já me tinha ajudado.
Como foi então?
O pai era adepto ferrenho do Sporting, a mãe era do Benfica. O rapaz, que é um ano mais novo que eu, jogava nos escolinhas do Benfica e a mãe dele levou-me aos treinos. Nessa altura, estavam lá o mister José Morais [treinador do Al-Hilal] e o Rui Rodrigues [antigo jogador e treinador dos escalões de formação] nos treinos de captação, no antigo pelado virado para a Avenida Lusíadas [junto ao Estádio da Luz]. Passei nessa captação e acabei por lá ficar até me tornar profissional.
Saber que não podia ficar no Sporting por uma questão tão 'pequenina' foi fácil de ultrapassar naquela altura?
Foi. Eu mudei mesmo pela questão do poder competir. Com sete anos, não estava com o foco na ideia de ser jogador, então foi tranquilo. Só comecei a pensar nisso mais tarde. Como vi que ali não teria oportunidade, procurei um clube e acabei por ir aos treinos do Benfica. As coisas foram acontecendo, não foi premeditado.
Hoje sou adepto do Benfica, mas na altura não o eraTrocar entre Sporting e Benfica é igual enquanto jovem e enquanto sénior?
Eu não senti tanto porque nessa altura não tinha clube, digamos. Não era adepto de nenhum dos dois. Hoje sou adepto do Benfica, mas na altura não o era. Então, para mim era mais o pensar em onde podia jogar.
Afinal, quando é que começou a pensar ser jogador profissional de futebol?
A partir dos 15 anos, por volta dessa idade. Nessa altura, comecei a pensar que poderia fazer uma boa carreira. Como juvenil de segundo ano, comecei a treinar com a equipa B e dei conta que, ao estar a treinar com jogadores seniores, ao saltar dois escalões da formação, podia ter oportunidade de singrar. Fui colocando metas a curto prazo. Enquanto juvenil de segundo ano, procurei ser campeão nacional, nos juniores já jogava na equipa B e queria procurar ter tempo de jogo na equipa principal. Foi mais passo a passo, as coisas aconteceram muito depressa, mas na cabeça tinha o pensamento de fazer tudo de cada vez.
Manuel Fernandes ao serviço do Benfica© Getty Images
Essa subida de escalões abrupta podia ter sido um risco para o desenvolvimento enquanto jogador?
Por vezes é demasiado peso para um jogador jovem que tem de lidar com essa pressão desde cedo. Felizmente, não tive muitas dificuldades, tinha uma certa maturidade que me ajudou, tanto na equipa B como na equipa A, a manter os pés firmes na terra.
No ano em que se estreia na equipa principal do Benfica, jogou também nos juniores.
Comecei a treinar com os seniores em janeiro [de 2003]. Nessa altura, tinha um torneio com a seleção, mas faleceu um colega nosso, o Bruno Baião. O nosso diretor pediu-me para não ir com a seleção para poder jogar a fase final com os juniores. Acabámos por ganhar o campeonato.
Estreia? Foi um bocado como quando se aprende a conduzirE como aconteceu essa estreia na equipa sénior do Benfica?
Nessa altura, o Tiago Mendes andava com problemas físicos e o Anders Andersson tinha saído para o Belenenses. Na realidade, o Camacho só tinha o Petit e o Fernando Aguiar. Foi aí que subi e as oportunidades vieram muito porque o Tiago não podia jogar.
Ainda se lembra do primeiro jogo?
Lembro. Foi no Estádio do Restelo, devo ter jogado uns três ou quatro minutos.
Foi pouco tempo, mas deve ter sabido a muito. Era uma estreia...
Foi um bocado como quando se aprende a conduzir. É o retrovisor, a embraiagem. É muita informação para ser consumida... Foi pouco tempo, mas foi bom porque ajudou a derrotar aquele nervosismo inicial. Depois, só volto a jogar contra o Gil Vicente, se não me engano.
Sentia-se à altura do desafio?
Sentia-me bem nos treinos. Senti que era um ritmo diferente daquele a que estava habituado na equipa B. Quis treinar bem e adaptar-me ao ritmo.
O Manuel passou três anos na equipa principal do Benfica e conquistou um título de campeão nacional. Como se sentiu ao ser campeão um ano depois de subir à equipa?
O Benfica já não ganhava há 11 anos, teve uma fase conturbada de presidências e estádio novo, andar com casa às costas, sem centro de estágios... Ainda não existia o Seixal, tínhamos de treinar no Jamor. Foi bom para alegrar essa fase, porque havia um grande ansiedade dos adeptos há anos. Também ajudou na toma de decisões mais acertadas e corretas, que foram a base do sucesso de Jorge Jesus, de Rui Vitória, de Bruno Lage, e por aí adiante.
Esse título terá dado estabilidade, mas, olhando para esses três anos, o Manuel teve três treinadores diferentes [Camacho, Trapattoni e Koeman]. No meio desses três, um foi campeão. Podemos dizer que esse momento continuou a ser meio tremido para o Benfica?
Trapattoni foi campeão, mas não queria continuar. Ganhámos, mas foi um ano difícil, fez um trabalho bastante bom. Fomos à final da Taça e penso que não a ganhámos porque se celebrou demasiado o título, acabámos por perder contra o Vitória FC. Com respeito por eles, mas nós tínhamos de ter ganho a Taça. Ainda perdemos com o CSKA Moscovo na Taça UEFA, eles que, depois, ganharam ao Sporting na final. Parecia que tinha sido uma temporada positiva, porque é sempre positivo quando se ganha títulos. Ele sentiu que não estava bem e apareceu a oportunidade de ir treinar o Estugarda. Nessa altura, era uma equipa bastante competitiva e tomou a decisão de ir embora.
Manuel Fernandes foi campeão em 2004/05 com Giovanni Trapattoni como treinador
© Getty Images
Cruzou-se com todos numa fase de aprendizagem. Dos três, qual lhe ensinou mais?
Trabalhei mais tempo com o Camacho e com o Trapattoni. O Camacho era bom pela forma como lidava com os atletas. Não vale a pena falar de tática porque cada um tem a sua forma de ver as coisas, mas a forma como ele lidava com o grupo, que tinha internacionais, jogadores de peso, era preciso uma pessoa com uma personalidade muito forte para o gerir. O Trapattoni também foi importante porque deu seguimento à oportunidade que recebi com o Camacho. Ele tinha paciência, um futebol muito mais pragmático, sabia o que pretendia de cada jogador, explicava a posição do jogador para aquele momento, não dizia que o jogador ia ser suplente toda a temporada e pronto.
A Premier League é a Liga mais atrativa
Jogava com alguma regularidade no Benfica antes de ir para Inglaterra. Essa mudança era algo que ambicionava?
Não no momento. No último ano de Benfica, quando chegou Fernando Santos, estava com uma pubalgia e não estava a recuperar em condições. Foi mais para mudar de ares do que de outra coisa.
Aos 19 anos, estava preparado para mudar drasticamente de sítio, de costumes, de língua?
Foi estranho. Foi a primeira vez que saí do país para viver fora. De certa forma, adaptei-me bem. A partir dessa altura, joguei sempre fora, posso dizer que tenho um pouco de espírito de emigrante, adapto-me bem ao que é a cultura e ao futebol. Penso que, nesse aspeto, foi bem conseguido.
Por experiência própria, como é o futebol inglês?
Nunca joguei na Bundesliga, e acho-a interessante, mas, na totalidade, penso que a Premier League é a Liga mais atrativa. O melhor futebol jogado é o espanhol.
Foi nessa altura que encontrou uma das 'paixões' do futebol, o Everton. Por que é que ficou com tal ligação ao clube?
Quando lá estive, tivemos boas prestações, estive muito próximo de assinar pelo Everton antes de ir para o Valencia [em 2007]. Realmente, a passagem por lá correu bastante bem. Mas foram duas passagens curtas [2006/07 e 2007/08], ambas de seis meses. Não consigo explicar o porquê de ter esse carinho pelo clube. Senti-me em casa lá, desde a relação com jogadores, staff técnico, roupeiros, massagistas, todas as pessoas envolvidas no clube. Só tenho coisas boas a dizer deles. Não joguei lá cinco, seis, sete anos, não sei mesmo explicar o porquê disso.
Isso mostra a força que o futebol inglês tem.
Eu nem sei como descrever. A forma como os adeptos vivem o futebol também é importante para o jogador. Eu lembro-me de ver o Portsmouth levar cinco ou seis do Arsenal, uma equipa muito poderosa, e, no final do jogo, os adeptos aplaudiram a equipa, algo que não é tão normal de se ver noutros campeonatos. É algo muito específico do campeonato inglês.
Manuel Fernandes vestiu a camisola do Everton em 2006/07 e 2007/08© Getty Images
Foi por causa do Everton que entrou em conflito com o Benfica. Disse em 'off' que são águas passadas, mas hoje, com outra maturidade, como é que olha para esse momento?
As coisas podiam ter sido feitas de melhor forma, quer da minha parte, quer da parte do clube, neste caso, de quem estava no comando do clube nessa altura. Sabiam bem das minhas intenções, antes até de começar a pré-época tinha sido muito claro em relação a isso. Na altura, a mudança de 'mister' não ajudou, não tinha feito um bom Europeu de sub-21 nos Países Baixos [2007], as coisas não estavam a correr bem na pré-época. Com isso tudo junto, não ficou difícil para eles terem vontade de se livrarem de mim. Mas tudo já tinha sido definido, mesmo antes de integrar a pré-época. Olhando para trás, há sempre coisas que podiam ter sido feitas de melhor forma.
When a Fernandes stunned Man Utd #GoalOfTheDay x @Everton pic.twitter.com/WbDkKO5dYQ
— Premier League (@premierleague) July 27, 2021
A intenção era voltar para Inglaterra?
Era. Infelizmente, as coisas não correram como estavam previstas e acabei a assinar pelo Valencia.
Como é que o jogador fica numa situação destas?
É uma desilusão. Pelo facto de sair da forma como saí, o regresso ao Benfica não seria bom. Não custei nada ao Benfica e saí por 18 milhões, mas é diferente quando há uma boa relação. Mesmo que o clube não queira, a quantia é boa e o clube aceita e pensa no futuro, mas a minha saída não foi assim. Foi tudo muito à bruta e acabam as duas partes por saírem danificadas. O jogador fica com a imagem de ter querido fazer as coisas à sua maneira, o clube passa a imagem que permite que os atletas façam o que querem. O jogador fica marcado, mas o clube também, porque parece que cedeu a pressões do atleta. O clube está sempre acima do jogador.
Numa outra entrevista, o Manuel contou que recebeu um telefone de Sven-Göran Eriksson para jogar no Manchester City. Como aconteceu?
Estava a estagiar antes da final contra o Sporting no Torneio do Guadiana [2007]. Estava no quarto, ele ligou-me para falar sobre isso, mas fui sincero com ele na altura. Disse que tinha tudo mais ou menos acordado com outro clube, que já tinha dado a minha palavra ao David Moyes [treinador do Everton]. Rejeitei porque já tinha outros planos.
Leia aqui a segunda parte da entrevista de Manuel Fernandes ao Desporto ao Minuto.