15 anos são uma vida. E foi este tempo que Pedro Soares Gonçalves esteve ligado ao Sporting. Do cargo de observador ao de treinador foi um curto salto, e é já dentro das quatro linhas que o técnico dá de caras com um dos mais proeminentes filões de ouro da formação leonina.
Eric Dier, Daniel Podence, João Mário, Ricardo Esgaio ou Rafael Leão foram apenas alguns dos nomes que passaram pelas mãos do técnico, que, depois de muitos anos na formação do Sporting, aterrou no 1º de Agosto, para trabalhar com os mais jovens talentos angolanos.
Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, o atual selecionador angolano não deixa por contar nada em relação à sua passagem por Alcochete e até recorda quando se cruzou com Cristiano Ronaldo na Academia.
Sobre o futuro, Pedro Soares Gonçalves garante que está satisfeito com o cargo que tem nos Palancas Negras, mas não descarta uma mudança para uma posição de treinador de equipa, no futuro.
João Mário? Às vezes até era difícil de lidar e de ele perceber as ideias que lhe queríamos transmitir.
Olhemos para o tempo em que o Pedro esteve em Alcochete. Treinou o João Mário na formação do Sporting. Como era ele nesses tempos?
Apanhei-o diretamente nos 13/14 anos e chegámos a trabalhar quando ele já tinha 15 anos. Já conhecia o João Mário, porque ele chegou a ser meu adversário nas escolinhas. Ele jogava no FC Porto e só depois é que ele veio para o Sporting. O João é uma personalidade muito escrutinada e conhecida do futebol português. Desde cedo aquilo que mais chamou a atenção, e isto é unânime entre todos os que trabalharam com ele, é que sempre foi um jovem com uma personalidade extremamente forte e vincada. Às vezes, até era difícil de lidar e de ele perceber as ideias que lhe queríamos transmitir. Tinha uma personalidade muito consistente naquilo que acredita. Mas faz parte. Isso torna o João Mário numa força mental inolvidável. Às vezes, poderia, com um pouco mais de flexibilidade, não ter passado alguns períodos na carreira como passou. Uma coisa é certa, acredito que o João Mário seja aquilo que se sente bem em ser.
E o que tem a dizer desta época positiva dele? Ele já mostrava ter muito potencial em período de juvenil?
Teve um crescimento que não surpreende, porque ele sempre foi um dos jogadores que se distinguiu com mais capacidade na Academia e na sua geração. Houve alguns jogadores da geração dele, que se destacou no Sporting, que tiveram mais relevo mais cedo, e outros vão tendo, uns atingiram um patamar superior e outros vão acabando em mais intermédios. O João Mário sempre teve essa personalidade de líder, no fundo, às vezes contestatário, mas isso permite-lhe ter sempre um espírito de autocrítica para evoluir. Estou muito satisfeito. Está a fazer uma excelente época, como já fez outras no passado. E acredito que seja uma mais valia para a seleção portuguesa. É um jogador muito cerebral e com uma capacidade técnica invulgar.
Pena é não ser opção para Angola, como é Wilson Eduardo, o irmão dele…
(Risos). Certamente que sim. O Wilson Eduardo… falo com ele lamentando um pouco a situação. Ele chegou a estar aqui comigo num dos primeiros jogos. Infelizmente, perdemos esse jogo, mas ele teve uma boa exibição e até marcou o primeiro golo, um bom remate. Isto teve aqui um conjunto de vicissitudes… O Wilson esteve presente no CAN'2019, do qual não posso falar muito, porque não estive presente e não me ficaria bem, e houve situações muito delicadas nessa prova. Senti sempre que lhe deixou uma certa mágoa. E depois, há situações pessoais dele, atravessámos uma pandemia que nos criou entraves, sobretudo a nós, que tínhamos dificuldades e limitações financeiras severas, especialmente nessa altura. Houve também várias deslocações e momentos da carreira dele em que teve alguma inconstância, o que acabou por levar à perda desta ligação com a seleção angolana. Ele acabou por preterir estar presente em alguma ocasiões e acabámos por seguir outro rumo. Mas faço-o lamentando um pouco, até porque já lhe transmiti que gostaria que ele pudesse, na altura, ter assumido um protagonismo mais relevante. Mas falamos sem mágoa, respeitando o percurso dele. O João Mário nunca se colocou essa situação (risos), mas um jogador de valia como ele, para nós, seria sempre fantástico.
Quando houve toda essa chuva de críticas em relação ao Ricardo Esgaio, foi completamente injustoO Pedro também treinou o Ricardo Esgaio no Sporting, que passou por alguns momentos difíceis esta época, mas parece agora estar a conquistar mais protagonismo com a saída do Pedro Porro...
Curiosamente, o Esgaio e o João Mário jogaram juntos. São jogadores com personalidades completamente diferentes, com um percurso em que se cruzaram no clube. O Ricardo Esgaio é uma jóia de pessoa. Aquilo que criaram em redor dele é completamente injusto. O Ricardo sempre foi de uma entrega e dedicação ao clube inolvidável. Teve sempre uma disponibilidade e uma capacidade de superar as dificuldades como poucos. Muitos duvidavam daquilo que podia ser o percurso dele dentro da Academia do Sporting. O Ricardo foi um daqueles jovens que, no processo maturacional, se desenvolveu mais cedo e, portanto, nas etapas iniciais, podia fazer uso desse vigor físico de forma mais pronunciada. Muitos previam que, pela tendência, ele ia ser um jovem que acabaria por desaparecer, mas o Ricardo contrariou essa lógica e manteve sempre uma grande dedicação, uma capacidade de trabalho incrível. Não vou dizer que é um fenómeno da natureza a nível da capacidade e competência desportiva, mas é-o ao nível da dedicação, empenho e postura.
Como avalia o que se passou com ele no início da temporada?
Quando houve toda essa chuva de críticas em relação ao Ricardo Esgaio, foi completamente injusto. Louvo a atitude do seu treinador, o Rúben Amorim, porque defendeu-o muito bem sempre. Óbvio que houve jogos que não correram tão bem, mas são etapas que todos os jogadores atravessam na carreira. Sinceramente, e até por aquilo que o Esgaio já produziu na equipa principal do Sporting, nunca compreendi essas críticas. Não é comum dos próprios adeptos isso… Quem gosta da sua equipa só tem é que puxar por ele e ajudar um jogador numa fase menos positiva que ele atravessa, e não tentar menorizá-lo. Nunca compreendi essa atitude e também não entendi porque é que o Ricardo Esgaaio acabou por sair do Sporting, mas temos de respeitar isso. À distância, e na minha opinião, dava para perceber que ele era uma das unidades mais preciosas dentro do balneário, sempre pronto e disponível. Jogasse mais ou menos, ele tinha a mesma atitude. Acho que o Rúben Amorim fez um trabalho excelente com o Ricardo Esgaio e absolutamente merecedor que ele faça parte da equipa do Sporting. É uma unidade que deve ser sempre tida em consideração porque é de um perfil e de uma postura inolvidáveis. Sempre achei de uma injustiça completa aquilo que estava a ser feito com ele e fico satisfeito que, finalmente, ele esteja a ultrapassar essa fase e a reproduzir aquilo que é. Se não faz mais não é porque não quer, é porque, momentaneamente, poderá não o conseguir.
Ricardo Esgaio deixou o Sporting em 2017 e voltou a Alvalade em 2021© Getty Images
O Rafael Leão esteve para ser dispensado do Sporting nos sub-15. Pouco ou nada jogou na equipa principal de iniciados.
O Rafael Leão foi outro dos talentos que passou pelas suas mãos. Ele chegou a estrear-se pela equipa principal do Sporting, mas tem pena de não o ter visto concretizar todo o seu potencial em Alvalade?
O Rafael Leão foi, sem dúvida, um dos maiores talentos que eu apanhei na formação do Sporting. Era de uma capacidade absolutamente invulgar, mas tinha uma personalidade… Quando o apanhei aos 15/16 anos foi num período de grande irreverência. Às vezes, esta até é a idade mais difícil de se lidar com os jovens, nomeadamente aqueles que jogam em clubes grandes. Nessa idade, há transformações corporais, há mentalidades que se começam a formar, com alguns distúrbios no que toca à auto perceção. Mas faz parte do crescimento de todos nós. Na altura, o Rafael esteve quase para ser dispensado do Sporting, pouco ou nada jogou na equipa principal de iniciados sub-15. Jogava quase sempre numa equipa B, que misturava sub-14 e sub-15. Aquilo que eu e o coordenador da altura preconizámos foi que jamais poderíamos desperdiçar um talento destes e que teríamos de lutar por ele, fazendo-o perceber que poderia potenciar muito aquilo que tinha. Apraz-me registar que, passados três meses, o Rafael Leão estava a ser convocado para a seleção nacional de sub-16.
Esse acabou por ser o ponto de viragem?
Foi uma transformação fantástica nessa época desportiva. Foi preciso muita paciência com ele. Tratou-se de um processo de encaminhamento comportamental para que ele começasse a encarar a perspetiva de ser um futebolista profissional e perceber aquilo tudo que poderia ter para rentabilizar. Foi a minha última época no Sporting e o Rafael exteriorizou tudo aquilo que tinha. A partir daí, começou a ser, de forma consistente, uma referência na formação do Sporting. Com naturalidade integrou a equipa principal, mas, infelizmente, numa altura de grandes convulsões, e é isso que depois o leva a sair. Gostaria de o ver singrar no Sporting e ter cimentado ainda mais o seu espaço no clube. Mas são decisões que se tomam, por vezes com determinadas influências. Agora é que encarar o futuro e o Rafael Leão é, sem dúvida, um dos principais ativos do futebol português. Curiosamente, e agora posso dizer isto porque já não tem hipóteses de jogar por Angola, ele já estava no AC Milan, e ainda sem se estrear pela seleção nacional de Portugal, quando o tentei convencer a jogar por Angola. Mas respeitei o percurso dele e as ideias dele. Agora, é desejar-lhe tudo de bom e acredito que vá ter uma carreira ao mais alto nível. É um grande ativo do futebol português.
O Eric Dier chegou ao Sporting com 8 anos. Não dizia nada em português e quase nem falava tal era a vergonha que tinha.Foi ainda treinador de jogadores como Eric Dier, Bruma, Carlos Mané, o Daniel Podence…
Um jogador que começou comigo e que me regozijo muito pelo percurso que tem, o nível que atingiu, mas sobretudo a personalidade que tem hoje em dia é o Eric Dier. Fui treinador dele durante muitos anos. Lembro-me muito bem do primeiro treino dele. Na altura, o Sporting tinha o polo de Pina Manique, e o Eric Dier, com oito anos, apareceu lá pela mão dos pais, dos irmãos… Chegaram lá com um rapaz loirinho, branco como tudo e maior que todos os outros e pediram para treinar. Ele não dizia nada em português e quase nem falava tal era a vergonha que tinha. Depois, foi uma referência da formação do Sporting e que marca os tempos áureos dos leões na área formativa. Já foi capitão da seleção inglesa, é uma das referências do Tottenham. Mas poderíamos falar aqui de outros nomes. Estou a recordar-me do Matheus Pereira, uma das crianças mais irreverentes que apanhei, do Bruma, do Edgar Ié, o Daniel Podence… Foram vários e posso estar a esquecer-me de algum. Atravessei muitas gerações na Academia do Sporting e isso também faz parte do meu percurso profissional. É um privilégio ter aprendido com os próprios jogadores. É o meu capital de crescimento profissional e pessoal.
Eric Dier deixou o Sporting em 2014 para rumar ao Tottenham© Getty Images
E tem pena por não ter visto alguns destes jovens vingar na equipa principal do Sporting?
Estou a lembrar-me agora do Thierry Correia, do Miguel Luís, que está numa fase mais apagada… Vários deles chegaram à equipa principal do Sporting, é verdade. A questão, a meu ver, passa por dois fatores. O Sporting é um clube, como todos em Portugal, com necessidade de capitalizar os seus talentos e depois daí retirar retorno financeiro para o clube. Aqueles que são as grandes valias acabam por sair e já deram muito dinheiro ao clube. Por vezes, alguns acabam por não cimentar a sua presença na equipa principal por via disso. O Cristiano Ronaldo, com quem me cheguei a cruzar na Academia, é exemplo disso. Ele não jogou muito tempo na equipa principal do Sporting, assim como o Nani, que esteve uma época e pouco em Alvalade. Isso mostra que os que mais se evidenciam acabam por sair. O Sporting continua a ser esse capital, sobretudo de confiança na Academia. Os pais continuam a acreditar que os seus filhos estão a entrar para uma Academia de referência desportiva que vai potenciar aquilo que são as qualidades e depois rentabilizar os jovens. Se o clube não tivesse passado por um período de algumas convulsões, como aconteceu, se calhar, teria condições para reter esses talentos mais tempo e alguns deles poderiam ter tido carreiras mais consistentes na equipa principal. Acabou por não acontecer isso. Há que encarar as coisas como elas são. O Sporting é uma linha contínua e uma evidência disso são os talentos que estão a aparecer na equipa principal. Há aí alguns a bater à porta para entrar também.
O que mais me realiza é o trabalho diário de criar soluções, cenários, exercícios, ver os jogadores evoluir, chegar ao jogo.
Para terminarmos, se não atingir o objetivo que já enunciou de se qualificar para o CAN 2023, qual vai ser o seu futuro? Continuar em Angola ou vai procurar assumir uma equipa principal?
Aqui o trabalho é exaustivo e diário porque há sempre muita coisa por fazer. Eu já levo aqui um trajeto com as seleções de Angola de cinco anos. Se me perguntassem há cinco anos, em março de 2018, se me passava pela cabeça ser selecionador, eu diria que não (risos). O que é certo é que a vida, por vezes, nos leva por determinados caminhos. O que inicialmente começou por ser uma oportunidade de enriquecimento profissional, em que não se antevia uma continuidade tão longa, culminou no que temos hoje. Isto acaba por ser absorvente. Felizmente houve sucessos em várias etapas, houve reconhecimento do mesmo e, volvidos cinco anos, aqui estou eu com um longo percurso na seleção principal de Angola. Noutro dia verifiquei os registos e deparo-me com o facto de ser o segundo selecionador com mais jogos pelos Palancas Negras e com melhor percentual de vitórias com esta equipa. Isso dá-me alento, mas também à minha equipa técnica. Muito honestamente, o meu objetivo é chegar ao CAN 2023 e ainda não pensei no que vou fazer a seguir a isso. Agora é só mesmo nortear todos os esforços para alcançarmos este objetivo porque é muito importante consolidar este crescimento dos Palancas Negras.
Mas esse desejo de treinar uma equipa principal está aí?
Eu estou a completar 27 anos de carreira e é óbvio que me apaixona o trabalho diário. Eu tenho um trabalho que me ocupa o dia a dia, mas é mais de observação, preparação e de criação de estruturas. Mas o que mais me realiza é o trabalho diário de criar soluções, cenários, exercícios, ver os jogadores evoluir, chegar ao jogo… No fundo, fazer o processo de auto renovação e auto correção constante, que é o que acontece numa equipa de clube e que nas seleções temos muita dificuldade. Temos dois jogos e passados três/quatro meses é que voltamos a ter um período em que estamos concentrados para treinar e jogar. Aqueles momentos de correção e melhoria daquilo que é o processo de jogo são muito mais limitados, o foco é noutros componentes. Sem dúvida que essa é a parte que me seduz mais e se houverem essas condições no futuro hei-de pensar e ponderar nelas da melhor forma. Mas estou muito satisfeito com o desafio que tenho entre mãos neste momento. O foco é o CAN 2023 e depois veremos o que o futuro nos aguarda.
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