Filipa Cavalleri: A mulher que 'reinou' no judo português antes de Telma

Chama-se Filipa Cavalleri e talvez para alguns o seu nome seja desconhecido. Mas na história do desporto português foi pioneira em trazer uma medalha não só europeia como mundial para Portugal. Pelas suas mãos já passaram nomes como o de Telma Monteiro e hoje, passados mais de vinte anos desde que iniciou o seu percurso, o judo continua a ser uma parte de si.

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© Facebook Filipa Cavalleri

Inês Esparteiro Araújo
03/12/2016 09:04 ‧ 03/12/2016 por Inês Esparteiro Araújo

Desporto

Judo

Tinha apenas dez anos quando se iniciou no judo. Na altura, o talento pela modalidade ainda não tinha despertado por completo, mas depois de “muitas sovas” e treinos brutais, fez-se o "clique" para Filipa Cavalleri. Em 1991 – desde 1967 que o judo não ganhava uma medalha – conquistou a medalha de prata no Campeonato Europeu de Juniores, mas, em 1995, fez história e trouxe consigo para Portugal, do Campeonato do Mundo de Seniores, uma medalha de bronze. Até à data, ninguém tinha conseguido uma medalha mundial.

Depois de os focos da ribalta terem estado sobre si, Filipa aponta agora o foco a futuros campeões, continuando ao mesmo tempo a lutar pela modalidade.

De onde veio a paixão pelo judo?

A paixão não nasceu logo de imediato. Foi uma coisa que foi acontecendo, foi um amor que se foi desenvolvendo e se tornou numa paixão. Fui das últimas entre os meus irmãos a começar a fazer judo, porque achava que tinha mais jeito para a dança. Quando experimentei as aulas de judo, foi algo de que gostei muito, diferente do que fazia. Hoje em dia, identifico esse tempo como muito alegre, divertido e com muita cor.

Quando é que começou a mostrar o seu verdadeiro valor no judo?

A partir dos 15 anos, quando passei para o escalão de júnior. Naquela altura a minha geração foi um bocadinho atirada aos bichos, porque era uma disparidade enorme não só de idades, mas também no que diz respeito ao nível de experiência e prática. Com essa idade sobressaí num campeonato nacional e, na altura, a minha treinadora achou que me devia convocar a mim e a mais duas ou três atletas da minha idade (...) para irmos a um estágio em França. Esse estágio teve a duração de 15 dias e eu tinha três treinos por dia. Os três treinos eram brutais e eu só conseguia ter sucesso num treino, que era o da corrida. No treino do judo eu levava ‘sovas e sovas e sovas’, era só sofrer. Lembro-me de, no fim da primeira semana, ligar para casa dos meus pais e dizer: “Pai eu quero ir-me embora, não aguento mais. Estou toda partida”.  O meu pai desatou-se a rir e disse-me: “Oh Filipa, o que não nos mata torna-nos mais fortes”. E isso deu-me um grande clique, não havia nada a fazer. Certo é que depois, quando vim para cá, houve mais uma série de estágios e comecei a sentir-me cada vez melhor. Esse foi o meu clique.

Na altura em que começou a praticar havia poucas mulheres no judo.

Sim… A nível mundial depende de país para país. Mesmo a história do judo feminino não anda lado a lado com a do judo masculino. Na Europa o feminino aparece 25 anos depois. O primeiro campeonato europeu de judo feminino apareceu em 1975, quando o primeiro campeonato europeu para os homens surgiu em 1951. Há uma décalage de quase 25 anos da história do desenvolvimento de um e do outro.

Do que é que teve de abdicar para atingir o patamar que atingiu?

Abdicar não… Tive de fazer uma reorientação daquilo que eram realmente as minhas prioridades. Portanto, obviamente, fiquei com muito pouco tempo disponível. Se me perguntarem se eu saía muito, não saía. Os anos das minhas amigas, se eu olhar para trás, a maioria eu passava fora de Portugal. Até os meus. Ou as festas de família. Esses momentos, de alguma forma, deixaram de acontecer, mas foi em prol de qualquer coisa que eu queria muito. Portanto, não era abdicar. Nunca me custou deixar de fazer nada, porque eu tinha como o grande objetivo de vida evoluir o máximo possível naquilo que eu gostava de fazer. Tive que fazer uma reorientação daquilo que eram realmente as minhas prioridades. Portanto, obviamente, fiquei com muito pouco tempo disponível. 

Quando é que foi o seu primeiro grande campeonato?

O primeiro campeonato do mundo, em 1989, foi para mim o grande primeiro campeonato em que participei. Mas não tive sucesso, ainda era tudo muito novo. Onde tive sucesso, e esse momento foi depois um marco histórico para o judo em Portugal, foi em 1991, quando conquistei a medalha de prata no Campeonato Europeu de Juniores. Em 1992, foram os Jogos Olímpicos e aí fiquei em 9.º lugar. Mas houve atletas portugueses que ficaram melhor, como a Paula Salgueiro que ficou em sétimo.

Foi a primeira mulher a conquistar uma medalha pelo judo?

Sim, em 1991. No geral, dentro do judo, fui a segunda, porque Portugal conquistou uma primeira medalha em 1967, nos campeonatos do mundo universitários, com um atleta chamado Fernando Almada. Depois de 1967, até 1991, ninguém conquistou qualquer medalha em europeus, mundiais ou outros.

Quando conquistou essa primeira medalha foi como se tivesse Portugal aos ombros?

Foi um feito. Foi um marco histórico que na altura nós nem sabíamos bem lidar, porque uma coisa é já haver uma tradição e história para trás, outra coisa é sermos nós a marcar a história.

No treino do judo eu levava ‘sovas e sovas e sovas’, era só sofrer. Lembro-me de, no fim da primeira semana, ligar para casa dos meus pais e dizer: 'Pai eu quero ir-me embora'

Também devido à juventude, acho que a forma de olharmos para essas coisas era um bocadinho ingénua. Lembro-me de que mudámos de casa e os meus pais ainda não tinham telefone e tive de ligar para um café ao pé de casa deles. Estavam todos à minha espera: O meu professor, o meu treinador, um jornalista de Sintra, imensa gente. Quando telefonei, aquilo parecia uma taberna, toda a gente a festejar.

Sentiu que foi reconhecida por isso em Portugal?

Sim, acho que durante uma série de anos fui sempre reconhecida pela comunicação social, fui a muitos programas e acho que o judo começou a ser muito bem falado. A imagem foi melhorada a partir desse meu feito. Obviamente, atrás de mim vieram outros, felizmente, e o judo assume assim uma imagem também boa para os espetadores e para o público em geral.

É um desporto de homens, o judo?

Ainda continua a ser [um desporto de homens]. Não é fácil ser-se mulher.

Apesar de fazerem o mesmo, é dado um diferente reconhecimento a uma mulher e a um homem que pratica judo?

Acho que ainda há muita gente que olha para o judo como uma coisa que é tipicamente masculina e considera o judo como uma modalidade máscula. Mas pronto, cá estamos nós para contrariar também essa tendência.

Foi um feito. Foi um marco histórico que na altura nós nem sabíamos bem lidarÉ uma modalidade pouco apoiada em Portugal?

Até ao momento tem sido apoiada única e exclusivamente pelos subsídios do Estado e eu penso que a modalidade ganhava muito se conseguisse haver um incremento de patrocinadores que pudessem criar outras possibilidades e recursos.

As modalidades acabam por ser um pouco menosprezadas em Portugal.

Mas é preciso fazer a distinção entre as modalidades profissionais e as não profissionais. Porque, quer queiramos quer não, o judo acaba por ser sempre uma modalidade amadora. Não há profissionalismo no judo. Há de corpo e alma, mas o judo não é uma modalidade profissional. Temos muitos judocas atletas que atingem patamares muito bons e que ou são médicos ou advogados.

E noutros países?

Noutros países também não é profissionalizado. Obviamente que existem certas potências, como a Rússia ou França, que podem ter o próprio clube a dar um vencimento ou um subsídio ao seu próprio atleta. Em Portugal não, não existem clubes a pagar, tirando agora o Benfica e isso foi uma inovação de há poucos anos. Mas eu, por exemplo, sempre paguei para praticar judo, para representar o meu clube.

Qual é a importância do judo a nível da função humana?

Existem muitas funções, mas o judo é dotado de um alto valor educativo. E esses valores são transmitidos nas próprias aulas e nos próprios treinos, até mesmo ao nível da competição. Portanto, em termos humanos, o judo acaba por implicitamente ajudar e contribuir na formação do jovem praticante. E isto depois prolonga-se para o resto da vida. O respeito que nós temos de ter pelo nosso adversário, quer ganhamos ou percamos, a saudação ou mesmo quando estamos chateados não podemos virar as costas. Existe um conjunto de regras que obrigam os atletas a obedecer a um código de conduta e isso, depois, vai-se assimilando e vai trazendo os atletas para uma determinada forma de estar.

Agora também já é professora de judo. Essa passagem para o ensino foi muito difícil?

Foi uma passagem ponderada, porque não é fácil nós fazermos algo durante 15 anos de uma determinada coisa e depois fazer exatamente o contrário. Deixarmos de estar centrados em nós e na nossa bolha e passarmos a sermos os menos importantes e tentarmos ir ao encontro dos nossos atletas (...). Já estava perto dos 30 anos e foi uma decisão ponderada e bem resolvida da minha parte. O facto de ter aceitado estar na Federação Portuguesa de Judo permitiu-me dar continuidade de outra forma, ensinado, ao trabalho todo que tinha aprendido. Fácil não é. Às vezes temos nostalgia ou temos um atleta que está a ganhar nos últimos dez segundos e acaba por perder e só nos apetece chegar lá e abaná-lo, mas não, temos de ficar contidos, porque nós não somos a outra pessoa.  

Há muita gente que olha para o judo como uma coisa que é tipicamente masculina E receber o 6º Dan, qual foi a sensação?

Foi uma coisa inesperada. A minha Associação pediu-me para eu colaborar na organização de um treino feminino e eu estive um mês a contactar todos e consegui colocar em cima do tapete 150 mulheres. Desde pequeninas, até grandes. Estava na preparação desse encontro e não fazia a mínima ideia de que a Associação me iria fazer esta homenagem. Fui completamente surpreendia no final desse encontro com a oferta do 6º Dan, porque eu fiz exame de 4º e 5º Dan e já há 20 anos que era 5º Dan. Mas eu sempre disse que quando chegasse aos 45 anos iria fazer o exame. Fiquei muito agradecida, feliz e sensibilizada por ter passado para 6º Dan e acabei por, mais uma vez, conquistar um marco histórico na modalidade do judo feminino.

Sobre a Telma, concorda que ela tenha rejeitado o 5º Dan?

Isso é uma decisão que depende dela, única e exclusivamente. Se calhar, se eu estivesse no lugar dela, podia ter feito de outra maneira. Ela assim o entendeu.

Mas, na sua opinião, ela estaria perfeitamente apta para o receber?

Acho que tem de haver uma evolução das coisas e… claro que ninguém retira o 5º ou o 6º, retira-se é o facto da forma como foi dado o 5º Dan e de como ela o rejeitou, porque achava que merecia melhor. Eu acho que nós na nossa vida, e é uma das coisas que o judo nos ensina, devemos aceitar humildemente o que nos oferecem.

Foi professora dela. Como foi o percurso da Telma? Em 2000 fez a passagem nos Jogos Olímpicos para a Telma.

Ela começou desde muito cedo a dar provas de que era de facto uma atleta excecional. Eu fui em 2000 aos Jogos e ela em 2004. O treinador de seniores percebeu que ela tinha um grande potencial e é no próprio ano dos Jogos Olímpicos, em 2004, que a Telma dá um salto brutal e consegue qualificar-se em muito pouco tempo para os Jogos Olímpicos. Portanto, nesse ano, sendo ela ainda júnior e não tendo feito nenhuma preparação especial para o escalão dela, de juniores, acabou por participar nos Olímpicos, ficou em 9.º lugar e depois participou num Campeonato Europeu de Juniores e num Campeonato Mundial de Juniores e foi campeã da Europa e medalha de bronze no Mundial. 

E a Filipa também.

É diferente, porque a evolução era diferente, os tempos eram outros, o investimento que se fazia era diferente e acho que são coisas que não devemos comparar. Cada geração tem a sua 'estrela'. Uma coisa é seres tu a trilhar um caminho, outra coisa é dares seguimento a um caminho já trilhado. Eu não tinha referências de atletas portuguesas, tinha de ir buscar a internacionais. A minha era a campeã olímpica Miriam Bolasko, a campeã olímpica da minha categoria. Treinava com ela e ficava extasiada a observá-la. Hoje em dia, uma Telma Monteiro treina em cima do tapete, com outras atletas portuguesas, pois a Telma é a fonte de inspiração de todas elas. Não precisam de ir lá fora, é a Telma.

Se calhar, se estivesse no lugar da Telma, podia ter feito de outra maneira. Ela assim o entendeuSente que muitas vezes os ex-medalhados ficam esquecidos no tempo?

Acho que sim. É uma coisa que acontece, eu própria sinto isso. Acho que as pessoas vivem muito o momento. Mesmo da parte das organizações, existe uma memória a curto prazo relativamente ao desporto.Tu és muito boa durante um período, mas, de repente, passaram 10 anos e como fazes outra coisa, ou como existem outras pessoas, já não há espaço para ti. Cá em Portugal, falando no judo, acho que há pouco carinho. Acho que existe uma competição um bocadinho desleal e então mais vale afastar as pessoas do que aproximar e acho que a Federação também tem esse dever. Não só a Federação, mas também o Comité Olímpico de Portugal tem o dever de acolher e trazer as pessoas que deram a cara pelo país para o espaço público.

Conte-nos mais sobre o projeto da Federação em que surge como mandatária.

Tem como base uma reestruturação em diferentes áreas, tanto a nível administrativo, como a nível organizacional, em termos internacionais. E, acima de tudo, passa por uma aposta muito grande e muito forte ao nível dos escalões de formação, que são a base. Se nós conseguirmos trabalhar mais e melhor ao nível das regiões, conseguimos ter a médio prazo - e isto não será num ciclo de quatro anos – uma boa base, e conseguimos trazer mais atletas para dentro da nossa modalidade. Isso faz com que haja não só um maior número de praticantes, mas que também exista possibilidade de eles depois permanecerem no judo e conseguirem chegar às etapas mais avançadas, do alto rendimento.

És muito boa durante um período, mas, de repente, passaram 10 anos e como fazes outra coisa, ou como existem outras pessoas, já não há espaço para tiComo nasceu a Turma dos Judokinhas? O projeto que iniciou.

Nasceu porque eu dava aulas por mim e tinha dois ou três colégios e o Renato Kobayashi era responsável por dois ou três também. E nós juntámo-nos e percebemos que os dois, em conjunto, eu aliada mais à parte técnica e ele ligado a uma visão mais empresarial, conseguiríamos construir algo muito interessante, juntar estas sinergias todas e, em vez de estar a Filipa a trabalhar ali e ali, seria interessante uniformizarmos o nosso ensino e aquilo que nós queríamos para a nossa escola - que assumimos como uma de formação e não de competição.

Nós damos as bases e quando os atletas atingem um determinado patamar, eles têm de ser integrados nos clubes. Neste momento, a Turma dos Judokinhas está com um número interessante de praticantes, entre 600 a 700 atletas. Temos federados cerca de 500 e poucos, temos 11 escolas e cinco professores a trabalhar.

Já existem futuros campeões na Turma?

 A médio e a longo prazo, sim.

E quer passar o testemunho para os seus filhos?

Os meus filhos praticam judo porque querem e porque acho importante que conheçam a modalidade. E é também uma maneira de passarem um bocadinho mais de tempo comigo, porque eu dou muitas aulas [risos]. Acima de tudo, eles desenvolveram gosto pelo judo. Se eles serão futuros campeões, não sei. A vida hoje é diferente daquela que eu tive e eu percebo bem quais são as exigências do alto rendimento e as coisas que tive não de abdicar mas de direcionar. Mas tive que deixar muitas coisas para trás. A faculdade não a consegui fazer em cinco anos, tive de a fazer em oito. Eu percebo que existam muitas dificuldades e digo, mesmo sinceramente, que não sei se quero que os meus filhos passem por isso, porque existem outras coisas.

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