Em 2016, só em Portugal, morreu uma pessoa a cada 50 minutos por doenças atribuíveis ao tabaco, uma estimativa que aponta um total de mais de 11.800 mortes por causas associadas ao tabagismo. Este foi um dos dados apresentados o ano passado, pelo relatório ‘Portugal – Prevenção e Controlo do Tabagismo 2017’.
Embora se note uma ligeira redução dos consumidores diários de tabaco, entre 2012 e 2017, a população fumadora ainda é muito considerável e muitos são os que tentam deixar de fumar sem sucesso. Segundo o referido relatório, mais de metade da população fumadora inquirida em Portugal já o tentou, pelo menos, uma vez.
À falta de sucesso, procuram-se alternativas e a própria Tabaqueira, empresa líder na produção de cigarros, tem vindo a investigar uma solução desde 2008, que agora chega ao mercado com a promessa de ser bastante menos prejudicial para a saúde de quem fuma: o tabaco aquecido.
“O nosso objetivo é aproximarmo-nos de uma solução livre de risco”, refere Mário Barreto. O responsável por Assuntos Corporativos da Tabaqueira, ou Manager Corporate Affairs daquela empresa, reconhece que a melhor solução seria deixar de fumar por completo, mas também admite que há quem procure outras alternativas, uma realidade que se prova pela taxa de prevalência – em Portugal e no mundo - de 19% no consumo de tabaco.
Ao Notícias ao Minuto, não nega que há interesse comercial na criação deste novo produto, que começou a ser vendido em 2014 no Japão e no ano seguinte em Portugal. A empresa assume, assim, que quer apostar num produto menos prejudicial – o tabaco aquecido, que dá pelo nome de IQOS.
Com um investimento de cerca de 4 mil milhões de dólares em investigações e verificações científicas e em mais de 400 mil cientistas, que se focam na nova descoberta, o tabaco aquecido é uma das quatro plataformas de produto PPR (Potencial Risco Reduzido) desenvolvidas pela Philip Morris International. Apresenta-se como um produto de aquecimento sem combustão, ou seja, que conta com nicotina mas que não chega a ser queimada. Tal investimento é justificado por Mário Barreto por a Tabaqueira trabalhar de forma cautelosa: “Não nos queremos sobrepor aos tempos da ciência”, faz sobressair.
Contudo, aos olhos de Carlos Robalo, pneumologista no Hospital Universitário de Coimbra e Secretário Geral da Sociedade Europeia Respiratória com quem o Notícias ao Minuto também falou sobre o tema, a solução não passa, de todo, por aí.
Queremos agora retroceder no tempo e assumir esta responsabilidade para com as gerações futuras?“O aparelho respiratório existe para receber apenas ar, de preferência ar puro e quaisquer substâncias inaladas repetidamente são potencialmente lesivas. Levou-se décadas a perceber os efeitos devastadores dos hábitos tabágicos. Queremos agora retroceder no tempo e assumir esta responsabilidade para com as gerações futuras, a propósito dos novos produtos derivados do tabaco?”, questiona o médico especializado em pneumologia.
Sobre esta visão, a Tabaqueira defende que os seus maiores consumidores e aqueles que pretendem ser o seu público, não são os jovens, mas fumadores adultos que procurem investir e não comprar por impulso, além de serem consumidores conscientes.
Num estudo de comparação entre fumadores de tabaco convencional, fumadores que passaram para tabaco aquecido, e recentes não fumadores, mediu-se a presença de 16 dos componentes nocivos ou potencialmente nocivos habitualmente mais comuns em fumadores, concluindo que, em cinco dias, a presença de certos componentes nocivos no sangue ou urina baixou significativamente tanto nos indivíduos que deixaram de fumar como nos que passaram para o tabaco aquecido.
Por tais características, o tabaco sem combustão tem vindo a ser reconhecido como instrumento que reduz os constituintes nocivos do cigarro sem eliminar a satisfação do fumador adulto.
Apesar disso, a própria Tabaqueira confirma que o tabaco aquecido não é aconselhado por especialistas como meio para deixar de fumar, ainda que nos Estados Unidos seja apontado por vários médicos como método de redução do risco associado ao tabaco.
Segundo o médico Carlos Robalo, de resto, nunca o poderia ser, “porque estes dispositivos não estão regulados e contêm uma multiplicidade de substâncias. Apenas substâncias regulamentadas e cujos efeitos secundários estão descritos e são conhecidos devem ser usadas nos programas de desabituação tabágica”, alerta.
Riscar a possibilidade de deixar de fumar da lista de vantagens a que se associa o tabaco aquecido é, para a empresa de produção de tabaco, de relevante peso no processo de comercialização e apresentação do produto. “O nosso maior desafio é chegar aos clientes sem passar a mensagem de que o produto é inócuo”, frisa Mário Barreto.
Como vantagens, a Tabaqueira aponta o facto de este ser um produto sem cheiro, que diminui o risco de problemas a nível cardiovascular e não amarela os dentes. A saúde dentária foi de facto um dos aspetos menos prejudicados por este tipo de cigarros, como provam estudos feitos pelo próprio PMI Science.
Já no caso de investigações externas à referida organização, ainda não são em número muito relevante. Em abril deste ano, foi publicado um estudo pelo centro de epidemiologia e saúde pública de Marselha, por via do qual os especialistas começam por esclarecer que os resultados do seu estudo não sustentam a ideia de que o cigarro sem combustão é uma forma de se acabar com o hábito de consumo de tabaco. Pelo contrário, o debate sobre tal questão deve “focar-se primeiramente no seu potencial enquanto diminuidor do risco do tabaco, sem esquecer a abstenção de conhecimento acerca dos seus efeitos a longo termo".
Um estudo provou que o cigarro sem combustão oferece a mesma sensação e próprio gesto de se fumar, mas a amostra não foi suficientemente significativaNo referido estudo de caso, feito por Mayet e Layagna, os resultados apresentam-se como positivos, já que o cigarro sem combustão oferece a mesma sensação e próprio gesto de se fumar, contudo, o tamanho da amostra – a um grupo populacional francês – não é significativo para concluir tal ideia.
“Já há verificação externa que começa a procurar verificar os dados da nossa investigação e dos resultados que alcançámos levada a cabo por mais de 20 entidades públicas e independentes em todo o mundo e que chegam aos mesmos valores de redução de exposição ao risco, ou de toxicidade a que nós chegamos", garante Mário Barreto.
Mas a falta de estudos é ainda um dos aspetos negativos mais apontados por alguns cientistas como Kenneth Warner e David Mendez, da Escola Pública de Saúde da Universidade de Michigan, que embora refiram que os benefícios do tabaco aquecido superem os riscos do mesmo, apontam que os efeitos a longo prazo ainda não são conhecidos, o que torna a ‘comparação’ entre cigarros convencionais e aquecidos, “injusta”.
Ainda assim, defensores do produto fazem por passar informação através dos atuais dados – cuja investigação tem cerca de uma década no máximo – alegando que, até então, não são encontrados quaisquer aspetos que apresentem o tabaco aquecido como pior que o convencional.
Se este é um argumento válido por parte da Tabaqueira, que considera que “o legislador e os serviços de saúde deveriam ser mais abertos à inovação e ciência, como já o são inúmeros outros”, segundo as palavras de Mário Barreto, do outro lado a medicina ainda se mantém ‘de pé atrás’ quanto ao tema.
"É inquestionável que o tabaco é nocivo para a saúde e que a nicotina é uma droga aditiva. Por isso dizer que os cigarros IQOS são uma forma mais saudável de consumir nicotina é uma falácia, sendo claro que estes novos dispositivos são uma nova maneira de as pessoas se tornarem viciadas em nicotina”, contrapõe o pneumologista Carlos Robalo.
A ciência mantém-se nos factos e retrai-se até que estudos suficientes provem o contrário do que é, até agora, possível concluir-se. E o marketing?
Há poucos anos, os produtos de tabaco passaram a contar com frases, e posteriormente imagens, que alertam de forma chocante para os riscos e consequências associados ao consumo de tabaco. Tal medida, segundo Carlos Robalo, deveria ser mantida para com o tabaco aquecido, já que “os legisladores deverão encarar o tabaco convencional e os novos dispositivos da mesma forma, implementando e aumentando o seu controlo nas vendas e no respectivo marketing.
Contudo, no tabaco vendido para o IQOS, não são apresentadas imagens e as próprias frases de alerta são menos ‘fortes’ do que as primeiras. Explica Mário Barreto que, de facto, que “já há uma mínima diferença na lei quanto ao marketing”. Um ‘progresso’ para a Tabaqueira que a empresa justifica como um reconhecimento por parte da lei para com a importância da redução de risco. Uma intenção que tem conquistado alguns adeptos, mas por que muitos outros não se deixam seduzir.
Saliente-se, por fim, que o Notícias ao Minuto tentou ainda contactar a Direção Geral da Saúde, e conhecer a opinião da diretora do Programa Nacional para Prevenção e Controlo do Tabagismo, mas não nos chegou, em tempo útil, qualquer resposta à solicitação feita.