"Lido muito mal com a ditadura das redes sociais, mas é o 'novo mundo'"

Gonçalo Cadilhe terminou o ano de 2021 com o lançamento de uma nova obra, 'Sinal de GPS Perdido', e esteve à conversa com o Notícias ao Minuto.

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Marina Gonçalves
06/01/2022 09:22 ‧ 06/01/2022 por Marina Gonçalves

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Gonçalo Cadilhe

Levar o leitor a "viajar para destinos que só eu conheço a localização, e que faço por não divulgar as suas coordenadas. Sou eu que deixo perder o sinal de GPS". Palavras presentes na mais recente obra de Gonçalo Cadilhe, onde partilha vários textos sobre algumas das inúmeras viagens que fez até aos dias de hoje. 

O viajante e escritor português esteve à conversa com o Notícias ao Minuto para falar do novo livro, 'Sinal de GPS Perdido', partilhando ainda alguns pensamentos após todos estes anos com a mochila às costas a conhecer o mundo. 

A pandemia, diz, veio dar-lhe mais descanso em casa, em família, oportunidade "de levar uma vida mais regrada". Uma fase que também o colocou a "pensar com calma em futuros projetos". 

É certo que não foi com este intuito que deu o nome ao livro, mas qual o momento mais desafiador que já viveu com o ‘sinal de GPS perdido’?

Todo o livro é atravessado por este desafio literário, mas também existencial, de tentar encontrar uma ideia salvífica e uma perspetiva original que mantenham intactos o mistério e a sedução e a alegria da viagem. Explico melhor: nesta época dominada pelo turismo massificado e pela exaustão da beleza, o livro tenta recuperar o entusiasmo pelo privilégio de viajar, mesmo quando abordo destinos tão óbvios e acessíveis como Veneza, o Taj Mahal, Ceuta ou o sudoeste da França. 

Como refere nesta obra, na época em que vivemos, "viajar está ao alcance de todos". E nem sempre o mais caro é sinónimo de maior surpresa… Qual a viagem mais barata e que mais o tenha surpreendido?

Bom, quando era jovem e o corpo aguentava tudo, dormia muitas vezes nos comboios e nos autocarros para poupar a noite num hotel, andava à boleia, comia todo o tipo de porcarias, eram viagens baratas. Hoje não teria estofo para fazer essas maratonas de 'endurance'. Mas há outro tipo de contas a fazer, mais sensatas do que o preço absoluto, que são as contas do preço relativo, do 'value for money', a relação entre o custo da viagem versus qualidade da experiência.

Por exemplo, no livro falo na capacidade da Madeira de renovar o meu sentimento do assombro, que é uma emoção que anda muito desvalorizada nas posturas atuais de viajante. Chego à Madeira e sinto-me insignificante, frágil, esmagado pela imensidão da natureza. Aí está: um destino aqui tão perto, com preços acessíveis, e que me dá tantas emoções: "value for money".

De todos os textos presentes no livro, qual o que considera como o mais especial e porquê?

Talvez o derradeiro, aquele que encerra o livro e que fala dessa outra grande viagem que é a vida, e da sua conclusão. Chama-se 'Promontório'. 

Viajar ensina-nos o quanto somos auto-referenciáveis e como é importante relativizar essa auto-referenciação

E de todos os locais que já conheceu, qual o que nunca se imaginaria a viver lá e qual aquele onde sempre quis voltar?

A resposta é a mesma para ambas as perguntas. Mas antes disso, recordo que a nossa perceção dos lugares muda muito com a idade que temos e a nossa maturidade; e por outro lado estamos numa fase extraordinária da história da humanidade de grandes alterações muito rápidas dos costumes, das mentalidades e da geopolítica. Veja a Arábia Saudita, até há poucos anos não queria lá ninguém e agora está a promover o turismo. Portanto, dizer de um lugar que eu não queria lá viver ou que quero sempre regressar, temos de pensar que os lugares mudam, nós mudamos, e uma decisão ou uma opinião tomada há trinta anos atrás sobre um país, hoje pode estar completamente desatualizada.

Dito isto, a resposta é a mesma para ambas as perguntas: o Afeganistão. Sempre quis lá voltar pois achei que tinha apenas tocado a superfície daquela realidade troglodita e surreal quando lá passei um mês, mas certamente que não me imaginaria jamais a viver lá. 

Um destino que amava visitar mas ainda não teve oportunidade? E o que o faz querer conhecê-lo?

O Alaska no outono. Assistir a essa mudança rápida do breve verão onde floresce toda a vida, para um dos invernos mais rigorosos do planeta. O outono com as suas cores e a sua melancolia, aliado à paisagem dramática das montanhas e dos lagos.

Que objeto(s) é que nunca podem faltar nas suas viagens? E Porquê?

O bilhete de regresso (risos). A sério. Não sou um nómada, sem raízes nem razões. Cada viagem só termina com o regresso, não apenas em sentido literal mas sobretudo no próprio fundamento de uma viagem: comparar a diferença entre o que visitamos com o que somos e com o que temos na nossa pátria. Contactar o outro para nos percebermos a nós. Viajar ensina-nos o quanto somos auto-referenciáveis e como é importante relativizar essa auto-referenciação.

Está ainda por explorar o setor do outdoors que move milhões de viajantes por todo o mundo mas que por cá ainda é visto como uma excentricidade

Vi algumas entrevistas anteriores e numa delas falou do carinho especial por Itália, um sítio onde se sente bem e que está "de acordo com os seus interesses culturais". Mas se tivesse de escolher apenas uma cidade italiana, qual seria e porquê?

Bom, provavelmente Génova, onde vivi durante os anos 90. Génova era a bela adormecida do turismo italiano. Andou décadas a fazer negócios com a indústria pesada, com o porto, com a finança e deixou passar ao lado o setor do turismo. A partir da viragem do século XXI começou a arrumar a casa e hoje é um dos grandes destinos culturais da Europa, mas sempre com um certo pudor em mostrar-se ao estrangeiro. 

Daquilo que Portugal tem para oferecer aos viajantes, o que mais destaca de bom e de mau?

Certamente é um povo que se mostra simpático e disponível para acolher o turista; mas também com uma certa predisposição para o burlar, se puder. A nível de atrações turísticas, está ainda por explorar o setor do 'outdoors' (surf, trekking, bike tours, etc..) que move milhões de viajantes por todo o mundo mas que por cá ainda é visto como uma excentricidade.

Lido muito mal com a ditadura das redes sociais, mas é o "novo mundo" que quisemos construir e não há forma de o ignorar

Hoje em dia há vários viajantes mas que optam pela nova era digital e documentam/partilham tudo nas redes sociais. Como foi a sua adaptação a este ‘novo mundo’? E no seu caso, em termos de trabalho, prejudicou-o ou foi uma fácil adaptação?

Eu lido muito mal com a ditadura das redes sociais, mas é o "novo mundo" que quisemos construir e não há forma de o ignorar. Para mim, que me exprimo através das palavras e necessito de desenvolver reflexões densas, longas e sensíveis, sinto-me acossado pela frivolidade dos instantâneos das redes sociais. Vou gerindo as minhas contas com o sacrifício equivalente ao do empregado que tem um dia mau no escritório: sempre a olhar para o relógio e nunca mais chegam as seis da tarde (risos). Não é uma questão apenas pessoal, no entanto, pois todo o mercado livreiro foi prejudicado com o tempo que as redes sociais roubam à leitura. Mas quero acreditar que os leitores da literatura de viagens continuarão a preferir um bom livro a um post ou um tweet.

No início da sua profissão tinha mais liberdade. Não existia, por exemplo, o medo de ser roubado porque não tinha nada. Hoje em dia é diferente, já tem outras preocupações como proteger os seus bens. Apesar de agora também, acredito, ter mais conforto, sente falta dessa liberdade?

Não é verdade que tinha mais liberdade ou menos medo de ser roubado no início. Mesmo quando dormia nos bancos dos jardins e levava uma mochila maltratada às costas e parecia um maltrapilho aos olhos do preconceito burguês da nossa perceção ocidental, na realidade era sempre um privilegiado que chegava do lado rico do mundo aos olhos dos destituídos da face da Terra. E tinham razão: só o meu passaporte ou as minhas sandálias já representavam mais valor do que eles jamais conseguiriam trazer para casa. Ainda hoje é assim. Se calhar hoje tendo mais meios económicos para controlar as situações, para escolher os hotéis em que fico, para organizara os serviços que contrato, portanto consigo viajar em maior segurança. Por fim, sobre a liberdade, é uma questão mental, somos tão livres quanto decidimos mentalmente sê-lo.

Neste momento estaria bastante disponível para abandonar esta profissão se ganhasse o Euromilhões

E como foi - ou tem sido - viajar após a chegada da pandemia?

Estava a dar uma volta ao mundo celebrando a circum-navegação de Magalhães quando a pandemia chegou. As fronteiras iam-se fechando atrás de mim sem eu ter a noção do que estava realmente a acontecer. Regressei a Portugal poucos dias antes do 'lockdown' global, no fim de fevereiro de 2020. Entrei em casa, caí no sofá e exclamei: "depois de trinta anos a viajar sem pausa, estou mesmo a precisar de parar e descansar"… e pumba, parei eu e parou o mundo todo (risos).

A pandemia tem sido para mim uma boa oportunidade, precisamente, de descansar um pouco em casa, em família, de levar uma vida mais regrada, ter uma alimentação mais saudável, e de arrumar tralha no meu escritório. E também de pensar com calma em futuros projetos.

Um bom exemplo do que mudou em mim foi a capacidade de colocar em perspetiva os nossos problemazinhos quotidianos, as nossas necessidades materiais

Tem formação em Gestão de Empresas, mas a sua vida é dedicada às viagens e documentação das mesmas.… Imagina-se, neste momento, a ter outra profissão?

A vida é feita de mudança. O importante é termos flexibilidade mental para acolher a mudança quando ela surge e mantermos o prazer nas coisas que fazemos. Neste momento estaria bastante disponível para abandonar esta profissão se ganhasse o Euromilhões (risos).

A sua perceção/conceito de vida e objetivos mudaram ao conhecer outras culturas? De que forma?

Podes dar dez voltas ao mundo e mesmo assim continuar a acreditar nos mesmos dogmas que te enfiaram na cabeça quando eras criança; e podes nem sair do teu quarto e refletir com espírito crítico em tudo o que tem sido a tua vida e a de toda a humanidade. Depende da tua índole, da fibra de que és feito. A viajar e a confrontar os nossos dogmas com os dogmas dos outros, aprendi a relativizar ambos e a alargar os meus horizontes mentais. Mas se não trazemos já em nós a predisposição para acrescentar valor ao pensamento, viajar não serve para nada.

Um bom exemplo do que mudou em mim foi a capacidade de colocar em perspetiva os nossos problemazinhos quotidianos, as nossas necessidades materiais. Por outro lado, fiquei muito mais ciente da necessidade de aproveitar da melhor maneira o pouco tempo que temos à nossa disposição nessa breve viagem que é a vida. 

São já 15 livros… O que lhe trouxeram todas estas obras?

A possibilidade de partilhar com os meus leitores uma ideia do mundo que contraria o terror quotidiano infundido pelos noticiário.

Leia Também: "O amor é o melhor método de educação. Consegue-se criar boas pessoas"

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