"Veja-se o caso que aconteceu há pouco tempo (2020) e ninguém se queixou e que foi o caso do Nagorno-Karabakh, em que esteve envolvido diretamente um país da Aliança Atlântica - a Turquia - que apoiou o Azerbaijão e em que a Arménia foi nitidamente atacada, e onde a Rússia teve um papel um bocado mais reservado. Alguém se preocupou em relação aquela população?" questiona.
Para o major-general Raul Cunha, neste momento, todos os "conflitos congelados" (designação militar sobre conflitos internacionais não resolvidos) e que estavam latentes: Abecásia, Ossétia do Sul, Nagorno-Karabakh ou mesmo na Transnístria (região entre a Moldava e a Ucrânia) voltam a afirmar-se, abrindo-se uma 'Caixa de Pandora'.
Raul Cunha é autor, entre outros estudos, do livro 'Kosovo - A Incoerência de uma Independência Inédita', em que considera que o processo de independência do território (2008) fica marcado pelos interesses e parcialidade da "comunidade internacional".
Neste momento, o major-general Raul Cunha nota que a reação à invasão da Ucrânia "é muito emotiva" entre as populações do ocidente, mas critica o facto de as sociedades só se lembrarem "dos problemas quando eles" estão perto do "quintal e dependendo do lado".
"Quando foi o bombardeamento da Sérvia (1999), os media ocidentais estiveram nitidamente do lado da NATO e sem crítica nenhuma sobre o que estava a ser feito", afirmou, sublinhando que a reação contra a invasão da Ucrânia pode ser útil para que as mesmas situações não se venham a repetir.
"Ainda bem que assim é. Para que isto não volte a acontecer: que os países só por serem grandes não possam impunemente atacar os outros. Mas, quando somos nós a fazer isto já achamos muito bem. Esta dualidade de critérios aflige-me, mas fico confortável com a minha própria consciência", disse, referindo-se diretamente aos Estados Unidos.
Na opinião do oficial na reserva, os Estados Unidos "também" têm grandes responsabilidades em relação ao que se passa na Ucrânia porque, disse, fizeram os possíveis para derrubar um chefe de Estado, em 2014, que não fazia aquilo que Washington queria.
"Estas coisas têm repercussões de longo prazo", afirmou, frisando que é preciso encarar o "plano geral" da questão.
Raul Cunha diz que não há dúvidas de que Rússia invadiu um Estado soberano no dia 24 de fevereiro, mas considera que "o grande problema" está nas origens que conduziram à situação - que não estão a ser devidamente analisadas - verificando-se uma tendência para se esconder "a realidade dos factos".
"Faz-me confusão. Na realidade houve uma agressão, mas durante oito anos, face à realidade que se vivia ali, não se tentou resolver o problema da melhor maneira", diz, mencionando os acordos que "deveriam" ter sido respeitados.
"Sempre apresentei a situação da Crimeia (2014) como referência e escrevi sobre ela. Por um lado, a Rússia tinha violado uma série de acordos que tinha assinado, mas, por outro lado, era preciso pensar o que tinha acontecido noutras situações e se esses condicionalismos tivessem sido tomados em conta talvez o que está a acontecer pudesse ter sido evitado", disse.
O major-general Cunha refere-se aos acordos de Minsk, entre o Governo da Ucrânia e os separatistas do leste ucraniano e que foram "testemunhados" por três chefes de Estado e de governo: Rússia, França e Alemanha.
Em relação à campanha militar em curso da Rússia na Ucrânia, Raul Cunha diz que é difícil saber o que vai acontecer, mas refere que o objetivo de Moscovo é cercar a capital e exigir a rendição do Governo ucraniano.
Por um lado, diz, as coisas podem decorrer de uma forma "menos violenta" se Kyiv aceitar a deposição do Governo e promover um executivo "fantoche" favorável às intenções da Rússia.
"Em termos militares, e tendo em conta a doutrina de Moscovo, eles [Rússia] vão cercar e se não houver rendição destroem e isso é muito preocupante", referiu, considerando que do ponto de vista da Aliança Atlântica é preciso cautela.
"Se quisermos que isto não se agrave ainda mais, o melhor que a NATO tem a fazer é não se envolver mais no assunto porque correm-se riscos grandes. É preciso cuidado", disse, referindo que Portugal como membro da NATO tem de respeitar os tratados, apesar de criticar a supressão da transmissão dos meios de comunicação social russos na Europa.
"Só porque em Bruxelas decidem que a Rússia tem uma máquina de propaganda não se permite a informação? Porquê? A minha Constituição diz que tenho liberdade de informação e que deve existir liberdade de imprensa", criticou.
O major-general Raul Cunha é doutorado em História, Estudos de Segurança e Defesa; como militar prestou serviço na European Comunity Monitoring Mission (Jugoslávia) no início dos anos 1990, esteve no Quartel-General da KFOR e, mais tarde, foi chefe da Componente Militar da UNMIK (Missão das Nações Unidas no Kosovo) e conselheiro militar do representante especial do secretário-geral das Nações Unidas no Kosovo.
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