China? Ascensão de Wang Huning na hierarquia sinaliza triunfo antiliberal

A elevação de Wang Huning na hierarquia do poder na China sugere o triunfo de um ideólogo que recusa reformas liberais e que analistas consideram ter moldado várias das campanhas do líder chinês, Xi Jinping.

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© Lintao Zhang / Getty Images

Lusa
23/10/2022 09:26 ‧ 23/10/2022 por Lusa

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Wang, que foi hoje promovido a quarta figura do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês (PCC), assumindo a chefia da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, uma espécie de senado, é visto como o mais influente ideólogo do regime.

Outrora um prolifero autor e proeminente académico, Wang Huning parou de falar publicamente desde que se converteu num quadro do PCC, em 1995. Entre 2002 e 2020, Wang dirigiu o Escritório Central de Pesquisa Política do Comité Central do PCC, responsável por fornecer recomendações em questões de governação.

"Tal figura é facilmente reconhecível no Ocidente como uma 'eminência parda', na tradição de Tremblay, Talleyrand, Metternich, Kissinger ou Vladislav Surkov, conselheiro de Vladimir Putin", escreveu N. S. Lyons, analista e escritor sediado em Washington, num ensaio sobre Wang.

Várias das reformas económicas lançadas pelo PCC, nos últimos meses, no âmbito da Campanha de Prosperidade Comum, reverteram décadas de liberalização económica, visando recuperar o que Xi designou como a "missão original" do Partido.

"Alcançar a prosperidade comum não é apenas uma questão económica, mas também uma questão política importante vinculada à fundação do Partido Comunista", frisou o líder chinês.

A campanha resultou já no desaparecimento de celebridades, consideradas "vulgares" e que promovem estilos de vida "lascivos", e em pesadas multas contra as maiores firmas tecnológicas da China, incluindo Alibaba, Tencent ou Didi.

No setor imobiliário, medidas para reduzir os níveis de alavancagem resultaram numa queda no preço dos imóveis -- o principal veículo de investimento das classes abastadas do país.

As mudanças ocorrem num período em que, "quando olham para os Estados Unidos, os chineses, que outrora viam ali o símbolo de um futuro melhor, veem agora um país arrasado pela desindustrialização, decadência rural, uma elite que se autoperpetua, caos cultural, niilismo histórico, desagregação da família e perda da unidade nacional e propósito", observou N.S. Lyons.

Quando, em janeiro de 2021, uma multidão invadiu o edifício do Capitólio, em Washington, as cópias esgotadas do mais célebre livro de Wang Huning, America Against America ("A América contra a América"), foram vendidas pelo equivalente a até 2.200 euros nos portais de comércio eletrónico da China.

Wang nasceu em 1955, na província de Shandong. Durante a caótica década da Revolução Cultural (1966-1976), quando milhões de adolescentes chineses foram enviados para o interior do país, para aprender com os camponeses, ele prosseguiu os estudos num liceu francês.

Em 1978, quando as universidades chinesas reabriram, Wang foi admitido num mestrado em política internacional, na Universidade de Fudan, em Xangai, apesar de nunca ter concluído uma licenciatura.

Foi aí que começou a definir as noções do seu pensamento político - a necessária centralidade da cultura, tradição e valores para alcançar estabilidade política.

Em 1988, adquiriu uma bolsa de estudo para passar seis meses nos EUA como académico visitante, período durante o qual visitou mais de 30 cidades norte-americanas.

As suas observações ficaram registadas no referido livro "A América contra a América", na qual Wang expressa choque com os acampamentos de sem-abrigo, o crime violento ou as mortes por consumo excessivo de droga.

A América enfrenta uma "profunda crise imparável", fruto das suas contradições, incluindo o fosso entre ricos e pobres, brancos e negros, o poder democrático e oligárquico, os direitos individuais e as responsabilidades coletivas, as tradições culturais e a modernidade, concluiu.

A raiz do problema, aponta, é o individualismo radical e niilista no núcleo do liberalismo americano moderno, e a mercantilização "abundante" de todas as esferas da vida humana.

No regresso à China, Wang assumiu-se como um dos principais oponentes do liberalismo, defendendo que o país tinha que resistir à influência liberal global e tornar-se uma nação culturalmente unificada e autoconfiante, governada por um Partido forte e centralizado.

A base para a estabilidade e crescimento de longo prazo, imune ao liberalismo ocidental, devia assentar numa mistura do marxismo com valores tradicionais chineses confucionistas, pensamento político legalista e as ideias ocidentais de soberania e poder do Estado.

Esta "profunda crise imparável" que Wang identificou nos EUA é, no entanto, também observável na China atual, após as profundas transformações ocorridas desde que, há quarenta anos, o país aderiu à iniciativa privada e rompeu com a ortodoxia maoista.

Segundo a sua Constituição, a China continua a ser um Estado socialista, mas, na prática, o país carece de uma rede efetiva de segurança social ou direitos laborais, e tornou-se numa das sociedades mais desiguais do mundo.

Milhões de funcionários enfrentam um horário designado como "996" (9h00 às 21h00, 6 dias por semana). Centenas de milhões de trabalhadores prestam serviços com contratos de curto prazo ou a avulso.

Séculos de vida social organizada em torno da família foram também interrompidos pela migração dos trabalhadores rurais para as prósperas cidades costeiras, deixando filhos e pais para trás.

Dezenas de milhões de jovens chineses descrevem hoje a sua existência como 'neijuan' ("involução") - a sensação de estar preso numa corrida onde todos perdem.

"A sociedade chinesa começa a parecer-se com o pesadelo de Wang [Huning], de uma cultura liberal, consumida pelo individualismo niilista e pela mercantilização", assinalou N. S. Lyons.

"A era de tolerância com o liberalismo económico e cultural na China acabou", notou o analista. "No final, as campanhas [de Xi Jinping] representam o triunfo e o terror de Wang Huning. São trinta anos do seu pensamento manifestados na política".

Leia Também: Sem sucessor óbvio, Xi Jinping eleva aliados na hierarquia chinesa

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