Macron e Scholz tiveram esta semana um almoço de três horas - "construtivo", segundo o Eliseu - para tentar dirimir alguns dos recentes desentendimentos entre Paris e Berlim, cuja dinâmica de relações se alterou desde o início da guerra na Ucrânia, em fevereiro.
Delphine Deschaux-Dutard, professora de Ciência Política na Universidade de Grenoble-Alpes, salientou à Lusa que "até à guerra na Ucrânia, a Alemanha não tinha consciência do quanto a questão da sua segurança era importante e como precisava de investir mais e isso fez-se de uma forma muito dolorosa, porque a classe política alemã apercebeu-se que a guerra era de novo possível no território europeu e que ia durar".
Segundo esta investigadora das relações franco-alemãs, o anúncio por Berlim de um financiamento extraordinário de 100 mil milhões de euros em armamento levou Paris a pensar que esse seria o momento de selar a tão desejada união da Defesa pretendida por Macron desde 2017.
"A França esperava que a Alemanha fosse gastar os seus fundos recorrendo a fornecedores europeus, mas a Alemanha acabou por comprar no estrangeiro, nomeadamente nos Estados Unidos. A razão para isso é que a Alemanha é obcecado pela proteção da NATO e, ao comprar os F-35 norte-americanos, ela fica nesta bolha protetora da NATO e alinha com os Estados Unidos", descreveu Deschaux-Dutard.
Também na defesa aérea antimíssil, a Alemanha está a considerar alinhar com Washington, não integrando os sistemas já implementados por França e outros países europeus.
"O que é difícil para Emmanuel Macron e para a diplomacia francesa é ver que a Alemanha dá um passo em frente e depois recua. O que pode explicar esta discordância entre os discursos e os atos do lado alemão é o facto que o Governo na Alemanha é uma coligação e o chanceler não pode decidir tudo sozinho, deve falar com os seus parceiros", indicou a investigadora.
Esta dificuldade é agravada pela falta de consulta entre os dois países, que desde o 'Brexit' têm liderado a iniciativa europeia, com muitos jornais franceses a avançarem que a França não sabia do estímulo que o Governo alemão apresentou em setembro às empresas e às famílias, no valor de 200 mil milhões de euros.
Scholz entrou em funções em dezembro de 2021, poucos meses depois deu-se a invasão russa da Ucrânia, e mais tarde a França entrou num período eleitoral intenso, entre abril e julho de 2022.
Também fonte de tensões foi o alinhamento da Alemanha com a Espanha e Portugal nas questões energéticas, com uma pressão pública contra a França que dificultava há vários anos as interconexões entre a Península Ibérica e o resto da Europa.
A falta de consulta e coordenação entre franceses e alemães advém também das dificuldades pessoais entre Macron e Scholz, segundo Delphine Deschaux-Dutard.
"Há um fator pessoal entre Emmanuel Macron e o chanceler Scholz. O Presidente francês entendia-se muito bem com Angela Merkel, falando quase todos os dias com ela, e, neste caso, o que sei é que não é de todo essa situação que temos agora. É uma relação mais complicada", declarou.
Se a visita desta semana foi descrita de forma positiva pelo Eliseu e pela chancelaria alemã, há pormenores que mostram um claro afastamento entre Paris e Berlim. Desde logo, o Conselho de Ministros conjunto que acontece periodicamente entre os governantes dos dois países não aconteceu em Fontainebleau, como estava marcado.
E do encontro entre Macron e Scholz não saiu nenhuma declaração conjunta, não havendo mesmo a tradicional conferência de imprensa.
"O que me chocou é que não houve uma declaração conjunta como é habitual. O princípio destes encontros é esta declaração, então parece-me que a discussão foi tensa e que não houve propostas bilaterais para o Conselho Europeu, uma coisa que depois do 'Brexit' se tornou muito habitual entre os dois países", disse a investigadora francesa.
O enfraquecimento do eixo franco-alemão pode afetar toda a União Europeia, com os países de Leste a ressentirem-se face à inação das duas capitais desde o início da guerra da Ucrânia, não julgando desde o início a ameaça como suficientemente perigosa e arrastando as conversas com o Presidente russo, Vladimir Putin.
"Com a guerra na Ucrânia descobrimos que esta dupla franco-alemã, que dava um sentido à Europa desde o Brexit, foi fortemente criticada por todos os países de Leste, que estimam que a ameaça da Rússia foi subestimada e que era preciso parar de falar com Putin. Estes países querem agora ter uma palavra a dizer na Europa", concluiu a cientista política francesa.
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