Na passada segunda-feira, e numa decisão sem precedentes nos últimos anos, o exército sérvio foi colocado em estado de alerta reforçado após o recente aumento das tensões no Kosovo, com disparos para o ar, explosões de granadas atordoantes e barricadas, que não provocaram feridos.
A ordem foi emitida na noite de domingo pelo presidente sérvio, após uma ordem de "alto nível de preparação para o combate" e com o chefe de estado-maior, general Milan Mojsilovic, a ser enviado para a fronteira com o Kosovo.
Ainda hoje, Vucic qualificou de "difíceis e dinâmicos" os contactos com os representantes internacionais para tentar promover uma desescalada, e de "histéricas" as pressões para que os sérvios kosovares levantem o bloqueio das estradas.
O presidente sérvio acusou Pristina de restringir os direitos da população sérvia kosovar, de violar os acordos obtidos e de pretender que a população sérvia abandone o Kosovo em definitivo, uma alegação que também tem justificado a crescente militarização da região pelas duas forças em presença.
Os protagonistas externos, em particular os EUA e a UE, também foram acusados por Vucic de tolerar e apoiar Pristina nesse comportamento, apesar das ameaças de uma ação de força para terminar com as barricadas sérvias erguidas desde 10 de dezembro.
Mas o recente agravamento da situação tem antecedentes. Em novembro passado, 600 membros sérvios kosovares integrados nas forças policiais e na administração demitiram-se em protesto pelos planos de Pristina para proibir a circulação das matrículas provenientes da Sérvia, provocando um vazio de poder na região, e com Belgrado a acusar a liderança albanesas kosovar de contínuas provocações.
Em Belgrado, reuniu-se o Conselho de Segurança Nacional e o Presidente Aleksandar Vucic exigiu a libertação de todos os sérvios detidos "arbitrariamente" pela polícia kosovar, outro motivo dos protestos. Em simultâneo, exortou a população a evitar confrontos com o contingente da NATO estacionada no Kosovo (Kfor, cerca de 4.000 efetivos, ou com as forças policiais inseridas na missão da União Europeia (Eulex).
Assim, o que parecia ser um conflito sobre placas de matrículas -- provisoriamente solucionado, ou adiado -- acabou por escalar, numa comprovação de que o Kosovo permanece uma potencial fonte de conflito nos Balcãs.
Belgrado nunca reconheceu a secessão unilateral da sua ex-província do sul, autoproclamada em 2008 na sequência de uma guerra iniciada por uma rebelião armada albanesa em 1997 que provocou 13.000 mortos, na maioria albaneses, e motivou uma intervenção militar da NATO contra a Sérvia em 1999, à revelia da ONU.
Desde então, a região tem registado conflitos esporádicos entre as duas principais comunidades locais, num país com um terço da superfície do Alentejo e cerca de 1,8 milhões de habitantes, na larga maioria de etnia albanesa e religião muçulmana.
O Kosovo independente, cujo Governo pretende impor a sua autoridade em todo o território, foi reconhecido por cerca de 100 países, incluindo os Estados Unidos, que mantêm forte influência sobre a liderança kosovar, e a maioria dos Estados-membros da UE, à exceção da Espanha, Roménia, Grécia, Eslováquia e Chipre.
Em 14 de dezembro as autoridades albanesas kosovares anunciaram ter assinado um pedido oficial de obtenção do estatuto de candidato à adesão à UE, um processo árduo e complicado, e agora mais complicado devido às exacerbadas relações entre Pristina e Belgrado.
Mas quase de imediato, o Governo espanhol assegurou que o país não apoiará a candidatura do Kosovo de adesão à UE, pelo facto de não ter legitimado a secessão da ex-província sérvia, em mais uma comprovação dos grandes obstáculos que se deparam a Pristina neste processo.
A Sérvia continua a considerar o Kosovo como parte integrante do seu território e Belgrado beneficia do apoio da Rússia e da China, que à semelhança de dezenas de outros países (incluindo Índia, Brasil África do Sul ou Indonésia) também não reconheceram a independência do Kosovo.
Belgrado e os sérvios kosovares também acusam Pristina de bloquear sistematicamente a formação Associação de municípios sérvios prevista nos acordos entre as duas partes assinados em 2013, uma reivindicação central e que permitiria um assinalável grau de autonomia a esta comunidade.
Por sua vez, o primeiro-ministro nacionalista do Kosovo, Albin Kurti, apelou à NATO para garantir a "liberdade de circulação" no território e acusou "bandos criminais" de estarem a promover os protestos e os bloqueios.
O seu triunfo nas legislativas de 2021 à frente do seu partido Vetëvendosje (VV, Autodeterminação) suscitou uma grande esperança entre os albaneses locais. Pela primeira vez desde a autoproclamada independência o país ia ser dirigido por um político não proveniente dos setores envolvidos na rebelião armada contra Belgrado no final da década de 1990, com muitos deles assediados por caso de corrupção ou suspeitas de crimes de guerra.
No seu programa de Governo, Kurti privilegiou as questões internas, em particular a situação económica num país muito pobre e com elevada taxa de imigração entre os jovens.
Desde 2011 que a questão do diálogo com a Sérvia sob a égide da UE era uma questão decisiva para cada governo do Kosovo. Um diálogo que decorre a dois níveis, técnico e político, com o objetivo de abordar questões bilaterais não resolvidas. Foram assinados mais de 35 acordos, mas a maioria nunca foi concretizado.
No Kosovo nunca existiu um consenso interno sobre o diálogo, e o VV de Albin Kurti sempre foi muito crítico face a este dialogo com Belgrado. Este movimento soberanista insistia que o Kosovo fosse tratado em igualdade com a Sérvia, e que se promovesse um diálogo separado com os sérvios do Kosovo. Mas quando chegou ao poder, o primeiro-ministro continuou a sublinhar que o diálogo não era uma prioridade face às prometidas reformas internas. Até ao regresso das tensões.
Na perspetiva de diversos observadores ocidentais, em particular os associados a Washington, a Sérvia está a atuar como um representante da Rússia na região, num complexo contexto geopolítico agravado pela guerra na Ucrânia. Assim, Moscovo pretenderia uma nova frente no confronto com a NATO e a região dividida de Mitrovica (norte, onde se concentram parte considerável dos sérvios locais) seria conveniente para despoletar esse objetivo.
Outros analistas consideram que a profunda influencia dos Estados Unidos sob a liderança albanesa kosovar é um fator desestabilizador, e impeditivo de um acordo global sobre a normalização das relações, condição essencial para que a UE acelere o ambicionado processo de integração.
As negociações mediadas pela União Europeia iniciaram-se em 2013, mas com poucos resultados. Para os sérvios do Kosovo e o seu principal partido Lista Sérvia (SL, próxima de Belgrado), a questão central reside na recusa de Pristina em aplicar o acordo de 2015, mediado por Bruxelas, sobre Associação de municípios sérvios com considerável grau de autonomia.
Esta questão, que irá permanecer no centro das reivindicações, apesar de a nova liderança de Pristina argumentar que essa concessão -- aprovada pelos anteriores líderes albaneses locais -- "contraria" a Constituição. A perspetiva de um Kosovo "etnicamente puro" parece permanecer na agenda de Pristina, mas implicaria uma solução negociada que passasse por trocas territoriais (no sul da Sérvia a região do vale de Presevo tem maioria de população albanesa). Mas Kurti tem assinalado que rejeita liminarmente essa perspetiva.
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