Rebelião ameaça estatuto do Wagner enquanto braço armado de Moscovo
O Grupo Wagner (GW) desempenha desde há anos, de forma ambígua e informal, as funções de braço armado de Moscovo no estrangeiro, um estatuto posto em causa pela rebelião liderada pelo seu chefe, Yevgeni Progozhin.
© Lusa
Mundo Yevgeny Prigozhin
O GW, criado por um antigo tenente-coronel das forças especiais russas, Dmitry Utkin, na primavera de 2014, aquando da anexação russa da Crimeia, e liderado pelo oligarca Yevgeny Prigozhin -- que apenas assumiu esta liderança em janeiro deste ano - é o mais proeminente exército privado russo controlado pelo Kremlin, mas não o único.
Mais de uma dezena de empresas militares privadas russas estão presentes em África, Médio Oriente, Ásia e América Latina, incluindo unidades equipadas com equipamento militar na Ucrânia, República Centro-Africana (RCA), Líbia, Mali, Sudão, Síria e Venezuela, de acordo com um estudo do European Union Institute for Security Studies (EUISS) divulgado há menos de duas semanas.
O GW opera sob a égide do GRU -- sigla de Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravlenie, a estrutura de inteligência militar russa), que o equipa, treina e dirige, não obstante "disputas constantes" com o Ministério russo da Defesa relativamente a estratégias, fornecimento de armamento pesado, munições e apoio logístico, ainda segundo o documento do EUISS, publicado antes da marcha dos homens liderados por Prigozhin sobre Moscovo no passado fim-de-semana, e que deixava já entender os desacordos e rivalidades entre o líder do GW e o ministro russo da Defesa, Sergei Shoigu.
Desde a sua criação, O GW tem sido essencial na estratégia de Moscovo no combate às "esferas de influência" ocidentais e na retoma e alargamento da sua influência política, económica e securitária em vários continentes, com especial destaque - para além do papel desde sempre desempenhado na Ucrânia desde a criação - na Síria, Líbia, República Centro-Africana (RCA), Mali, Sudão, Sudão do Sul, ou Moçambique.
Para além destes, de acordo com o instituto de análise europeu, a presença do exército de mercenários liderado por Prigozhin foi ainda assinalada em Madagáscar, Botswana, Burundi, Chade, República Democrática do Congo, Congo-Brazzaville, Guiné, Guiné-Bissau, Nigéria, Zimbabué e Ilhas Comores.
No início de 2016, o GW contava com cerca de 1.000 operacionais no total. Em agosto de 2017, este número teria aumentado para 5.000 e, em dezembro de 2017, para cerca de 6.000, segundo o EUISS. Em janeiro de 2023, uma agência noticiosa ucraniana, citando fontes britânicas, estimou o número de combatentes do GW na Ucrânia em 50.000 homens.
O Die Welt publicou há cerca de duas semanas um dossier a que chamou "WagnerLeaks", com base numa fuga de informação -- relatos, folhas de cálculo, etc. -- sobre as atividades desenvolvidas pelo GW na RCA, onde o grupo mantém quase 1.500 operacionais.
Os documentos contam a história dos bastidores da presença da Rússia no país da África central, que contrasta com o discurso oficial de Moscovo.
Entre 2017 e 2021, os mercenários russos, oficialmente destacados como "instrutores" das forças armadas e de segurança do país, expandiram constantemente a sua presença militar, em total violação do embargo imposto à República Centro-Africana desde 2013 pela ONU.
Os relatos escritos pelos próprios mercenários, e corroborados por várias fontes, revelam ainda como o GW saqueou e, por vezes, torturou a população local.
O papel desempenhado pelo Grupo Wagner tem oferecido ao Kremlin dois benefícios cruciais - as suas baixas são invisíveis a nível interno e os défices do seu exército regular são largamente compensados.
Por outro lado, o GW não existe formalmente em letra de lei, pelo que tem até agora sido inimputável, tanto à luz das jurisdições nacionais dos países onde opera quanto à luz do direito internacional, não obstante as atrocidades de que os seus mercenários têm sido acusados, cometidas em vários teatros de operação.
Nos últimos dias, depois da rebelião de Prigozhin, o véu sobre a natureza do grupo foi finalmente levantado, primeiro pelo ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que afirmou que o mercenários continuarão a desempenhar as funções de "instrutores" militares e a proteger as lideranças na RCA e no Mali, e na passada terça feira pelo próprio Presidente russo.
"Financiámos totalmente este grupo a partir do orçamento federal. Só entre maio de 2022 e maio de 2023, o Estado [russo] pagou às empresas Wagner 86.262.000.000 rublos [cerca de mil milhões de dólares] em apoio em dinheiro e pagamentos de incentivos", anunciou Vladimir Putin.
Enrica Picco, diretora do programa para África do Internacional Crisis Group (ICG), e ex-membro do Painel de Peritos da ONU sobre a República Centro-Africana, explicou em declarações à Lusa a natureza difusa do GW com o exemplo da contraofensiva vitoriosa, lançada pelas forças da RCA e dos mercenários russos em julho de 2021 contra os grupos rebeldes.
"A vitória foi reivindicada pelo então embaixador russo em Bangui, que argumentou que foram as tropas russas -- as forças do Kremlin -- que apoiaram o exército centro-africano, quando na verdade foram os mercenários do Grupo Wagner", sublinhou Picco.
"O que sempre foi verdade foi que o GW teve sempre operações na RCA, e que os seus mercenários não respondiam aos responsáveis diplomáticos russos no país, a ninguém da embaixada da Rússia em Bangui, ou ao seu adido militar", acrescentou à Lusa uma fonte diplomática ocidental, sob condição de anonimato.
De acordo com a investigadora do ICG, "esta ambiguidade pode agora ser favorável ao Kremlin e permitir que um oficial russo ou representantes oficiais russos substituam os dirigentes do Grupo Wagner no terreno ou que pessoas de confiança no Kremlin assumam o controlo sobre os mercenários no terreno", mantendo o essencial da estrutura e num cenário de afastamento de Yevgeni Progozhin da liderança do grupo.
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