Num ano que se está a revelar o mais mortífero desde 2017 nas águas do Mediterrâneo Central, reconhecido pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) como a rota migratória mais perigosa do mundo na atualidade, as ONG debatem-se com as dificuldades acrescidas impostas pela legislação adotada no início do ano pelo Governo de extrema-direita liderado por Giorgia Meloni, que restringe as atividades das organizações humanitárias e já levou à detenção de vários navios de busca e salvamento.
A mais recente organização a ver um navio apreendido foi a SOS Méditerranée, cuja embarcação "Ocean Viking" se encontra retida no porto de Civitavecchia, perto de Roma, desde 11 de julho, por alegadas "questões técnicas" a nível de segurança do navio, nunca antes detetadas nos sete anteriores controlos de que a embarcação foi alvo ao longo dos últimos quatro anos.
Já depois da conversa da ONG com a agência Lusa, a SOS Méditerranée anunciou na sexta-feira à noite que o navio "Ocean Viking" tinha sido autorizado pelas autoridades italianas a zarpar e a prosseguir viagem, após ter estado retido durante 10 dias. No entanto, o regresso às operações de salvamento ainda não está definido.
Ao contrário de cinco outras embarcações já detidas e retidas temporariamente este ano por desrespeito da nova legislação italiana -- que impede mais do que um salvamento de cada vez e dita que os navios das ONG devem desembarcar os migrantes nos portos determinados pelas autoridades italianas, muitas vezes bastante distantes do local do resgate -, o "Ocean Viking" ficou bloqueado na sequência de (mais) uma inspeção levada a cabo pelas autoridades portuárias italianas, quando desembarcou 57 migrantes em Civitavecchia.
Antes da decisão de sexta-feira das autoridades italianas, e em entrevista telefónica à Lusa, a diretora-adjunta de operações da SOS Méditerranée, organização com sede na cidade francesa de Marselha, explicou que em causa na situação do "Ocean Viking" estava uma "interpretação restritiva" das normas de segurança dos navios, relativa ao número de tripulantes certificados para operar os botes salva-vidas.
Carla Melki disse à Lusa que, efetivamente, "está a haver mais controlos [técnicos] do que é habitual" e, quando questionada sobre a razão para tal, responde simplesmente que "a motivação é questionável".
Certo, na sua opinião, é que estão a verificar-se "restrições a nível do acesso humanitário" nas águas do Mediterrâneo Central, e logo quando o trabalho das organizações humanitárias é vital, face ao grande fluxo de travessias irregulares registado este ano, em embarcações precárias que partem desde o norte de África rumo à Europa, e que resultou já em perto de 2 mil mortes.
"Há uma crise humanitária em curso no Mediterrâneo Central. Há uma necessidade imensa de operações de busca e salvamento. Não há operações suficientes, por isso nós, como atores humanitários, estamos a providenciar essa assistência, até que haja operações internacionais em larga escala levada a cabo pelos Estados para cobrir todas as necessidades. Quando tal suceder, ficaremos contentes por partir", afirmou à Lusa a responsável da SOS Méditerranée.
Além dos crescentes controlos técnicos aos navios humanitários, que várias ONG denunciam como "assédio", a nova prática das autoridades italianas de atribuição de portos distantes das áreas onde são realizados os resgates para o desembarque dos migrantes recolhidos é particularmente criticada, tendo mesmo cinco ONG denunciado na semana passada junto da Comissão Europeia a nova lei italiana.
Em declarações à Lusa, um porta-voz da ONG alemã Sea-Watch, que também já teve este ano navios retidos pelas autoridades italianas, argumentou que "obrigar os navios a entrar no porto depois de um primeiro salvamento viola o dever de salvamento no caso de haver mais pessoas em perigo no mar".
Para Oliver Kulikowski, não restam dúvidas quanto às motivações por detrás do decreto adotado em janeiro de 2023 e que se tornou lei em março.
"O novo decreto do Governo italiano não é mais do que um apelo para que as pessoas se deixem afogar. É mais uma tentativa de dificultar o salvamento marítimo civil, ao mesmo tempo que a taxa de mortalidade no Mediterrâneo é a mais elevada desde 2017", disse.
Apontando que a afetação de portos distantes para o desembarque das pessoas resgatadas "aumenta ainda mais o défice gritante de salvamento no mar Mediterrâneo", o porta-voz da Sea-Watch afirmou que "a atribuição politicamente motivada de portos distantes põe em perigo a saúde das pessoas resgatadas e tem por objetivo manter os navios de salvamento fora do Mediterrâneo durante o máximo de tempo possível".
"O Governo italiano torna-se assim diretamente responsável pelas consequências para a saúde a bordo dos navios de salvamento. Iremos contestar este decreto legal e operacionalmente, seguindo o quadro jurídico internacional e cumprindo o nosso dever de salvamento", garantiu.
Várias organizações salientam, no entanto, o trabalho incansável da guarda-costeira italiana, em águas territoriais italianas, apontando que o grande problema é a ausência de uma operação em grande escala nas águas internacionais, sobretudo face à inação das autoridades de Malta e à postura -- intimidatória, argumentam - da guarda-costeira líbia.
Segundo a SOS Méditerranée, o grande problema é que "o Mediterrâneo Central ficou completamente vazio de meios marítimos liderados por Estados europeus" desde o fim da operação militar e humanitária europeia conduzida pela Itália, denominada "Mare Nostrum", entre outubro de 2013 e outubro de 2014, durante a qual mais de 150 mil pessoas foram resgatadas em menos de um ano pela guarda costeira italiana.
A operação naval e aérea "Mare Nostrum" foi, contudo, concluída ao fim de um ano, com as autoridades italianas a alegarem que a mesma, muito onerosa face aos meios envolvidos, era insustentável também à luz da falta de solidariedade dos parceiros europeus, e porque muitos entendiam que a mesma era um incentivo para as travessias irregulares.
A operação foi substituída por uma outra da agência europeia da guarda de fronteiras e costeira (Frontex), denominada "Triton", mas que, ao contrário da "Mare Nostrum", operava mais perto da costa italiana e focava-se mais na proteção das fronteiras do que em operações de busca e salvamento no alto mar, desde então sobretudo nas mãos das ONG, que agora enfrentam também as 'ondas' levantadas por um Governo de coligação declaradamente anti-migração, que inclui os Irmãos de Itália (Fratelli d'Italia) de Meloni e a Liga de Matteo Salvini.
O mesmo Salvini, ex-ministro do Interior, que foi o promotor de uma política de portos encerrados entre 2018 e 2019, bloqueando o desembarque de muitos migrantes. O político foi alvo de processos judiciais por causa da aplicação de tal política.
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