O controverso acordo de "deslocalização" entre Itália e Albânia

Itália e Albânia assinaram um controverso acordo que prevê a instalação de dois centros de acolhimento de migrantes em território albanês, sob jurisdição italiana, para onde serão levados os migrantes resgatados no Mediterrâneo.

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© Ximena Borrazas/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

Lusa
17/11/2023 08:33 ‧ 17/11/2023 por Lusa

Mundo

Pontos Essenciais

Esta "deslocalização" para um país terceiro, que não faz parte da União Europeia (UE), dos procedimentos de acolhimento dos migrantes resgatados e de análise dos seus pedidos de asilo, e eventuais repatriamentos, é alvo de muitas críticas, designadamente por parte de organizações de defesa dos direitos humanos, mas Bruxelas adiantou esta semana que, segundo uma avaliação preliminar do serviço jurídico da Comissão Europeia, o protocolo não viola o direito comunitário.

O objetivo do governo italiano de direita e extrema-direita liderado por Giorgia Meloni com esta "externalização da gestão migratória" é aliviar o fardo que o país, e designadamente a ilha de Lampedusa, sentiram muito em particular este ano, com a chegada de muitos migrantes irregulares desde o norte de África, e que colocaram o sistema de acolhimento à beira da rutura: desde o início do ano, desembarcaram em Itália 145 mil migrantes, contra 88 mil no mesmo período em 2022.

Eis alguns pontos essenciais do acordo firmado entre Roma e Tirana -- semelhante ao estabelecido pelo Reino Unido com o Ruanda e esta semana considerado ilegal pelo Tribunal Supremo britânico - para a criação de dois centros de migrantes na Albânia:

O que vai ser "deslocalizado" de Itália para Albânia

O compromisso acordado em Roma a 06 de novembro prevê a criação de "duas instalações para a entrada e o acolhimento temporário de imigrantes resgatados no mar, que poderão acolher até três mil pessoas, entre 36 e 39 mil num ano, para concluir rapidamente os procedimentos de tratamento dos pedidos de asilo ou de um eventual repatriamento".

Para a Albânia serão levados diretamente, sem passagem por território italiano, migrantes resgatados no Mediterrâneo pela Marinha e guarda-costeira italiana -- mas não por navios de ONG (organizações não-governamentais) -, e ficam excluídos desta operação todos os menores, mulheres grávidas e "pessoas vulneráveis", bem como quem quer que tenha conseguido alcançar território italiano.

No porto albanês de Shengjin será construído um 'hotspot', para tratar dos desembarques, da identificação e dos primeiros socorros, enquanto na zona de Gjader, a cerca de 20 quilómetros do porto, será construído um "centro de acolhimento temporário", segundo o modelo dos centros de repatriamento existentes em Itália.

A estimativa, por parte das autoridades italianas, de que os centros poderão gerir anualmente até 39 mil migrantes é o cenário mais otimista, que apenas será cumprido se não houver falhas nos chamados "processos acelerados" de avaliação dos pedidos de asilo, que Roma pretende levar a cabo no prazo de 28 dias, já que ambos os centros terão uma capacidade máxima para acolher ao mesmo tempo 3.000 migrantes.

O alcance do cenário mais otimista do ponto de vista do governo de Meloni depende da rapidez com que a Itália pode processar os pedidos de asilo e, apesar dos esforços do governo para os simplificar, os procedimentos envolvem pesada burocracia.

Por outro lado, especialistas também observam que é difícil repatriar os requerentes de asilo cujos pedidos são indeferidos, dada a falta de acordos de regresso com os países de origem dos migrantes. Até à data, no ano em curso a Itália repatriou pouco menos de 4 mil pessoas.

Aos migrantes aos quais for recusado asilo, mantém-se o prazo máximo de 18 meses de detenção até ao seu repatriamento, o mesmo sistema atualmente aplicado em Itália.

Centros sob jurisdição italiana e operacionais a partir da primavera

De acordo com o compromisso celebrado entre Roma e Tirana, os centros que vão ser construídos em território albanês deverão estar operacionais já na primavera de 2024 e, embora fisicamente na Albânia, ficarão sob jurisdição italiana.

Em Shengjin, a Itália encarregar-se-á dos procedimentos de desembarque e de identificação e criará um primeiro centro de receção e de rastreio, enquanto em Gjader criará uma estrutura do tipo de centro de acolhimento temporário para os procedimentos subsequentes.

As duas instalações são geridas pela Itália, "em conformidade com os regulamentos italianos e europeus aplicáveis, e quaisquer litígios com os migrantes estão exclusivamente sujeitos à jurisdição italiana", de acordo com o protocolo, acrescentando que, quando o direito de permanecer nas instalações cessa "por qualquer razão", a Itália transfere imediatamente os migrantes para fora do território albanês.

O protocolo especifica que, em caso de nascimento ou de morte, os imigrantes estão sujeitos à legislação italiana.

A Albânia colaborará com as suas forças policiais para a segurança e a vigilância. "A Albânia conta já com uma presença importante das forças policiais e dos magistrados italianos", sublinha o governo italiano.

Nos centros de migrantes abrangidos pelo protocolo Itália-Albânia, o direito de defesa é assegurado através do acesso às instalações de advogados e auxiliares, organizações internacionais e agências da UE que prestam aconselhamento e assistência aos requerentes de proteção internacional, dentro dos limites da legislação italiana, europeia e albanesa.

Quanto paga Roma a Tirana com o acordo

Por altura do anúncio do acordo com a Albânia, o governo italiano não divulgou valores, mas o primeiro-ministro albanês Edi Rama publicou, na sua página oficial na Internet, a versão albanesa do texto integral do protocolo, com 14 artigos e dois anexos, o segundo dos quais respeitante à "regulamentação dos reembolsos da parte italiana à parte albanesa".

O anexo prevê que, no prazo de 90 dias a contar da data de entrada em vigor do acordo, Roma pagará a Tirana "16,5 milhões de euros" para o primeiro ano de aplicação do protocolo, sendo que o mesmo tem uma duração de cinco anos e não estão discriminados pagamentos posteriores.

O montante de 16,5 milhões de euros será utilizado para "cobrir as despesas médicas, jurídicas e de gestão" dos migrantes que a Itália enviará para a Albânia enquanto aguarda para ver se recebem proteção internacional ou se são repatriados, bem como para a renovação de um antigo quartel militar em Gjader, onde deverá ser construído o centro de acolhimento temporário.

Durante o mesmo período, a Itália deverá constituir um fundo de garantia junto de um banco que exerça a sua atividade na Albânia, estabelece o protocolo.

Acordo entre dois países próximos, mas com governos de campos distintos

A Albânia ter sido o país terceiro escolhido por Itália para a deslocalização do acolhimento de migrantes surge como natural, dada a proximidade, geográfica e histórica, entre os dois países.

Por ocasião do anúncio do compromisso, o Palazzo Chigi, centro de poder em Roma, apontou que o acordo resulta "da histórica e profunda amizade e cooperação que se articula nas relações comerciais" entre Itália e Albânia (que representa cerca de 20% do Produto Interno Bruto albanês), "nas relações culturais e sociais, e na luta conjunta contra todas as formas de ilegalidade".

O governo de Meloni acrescentou que, "apesar de a Albânia ainda não fazer formalmente parte da UE" -- tem estatuto de país candidato desde 2014 e as negociações de adesão foram lançadas em 2022 -, "já se comporta como um Estado-membro" e nota que "a Itália sempre foi um dos maiores apoiantes da entrada de Tirana na UE".

Mais surpreendente é o facto de o acordo ser firmado entre uma coligação predominantemente de extrema-direita -- o governo italiano formado pelos Irmãos de Itália, de Meloni; a Liga, de Matteo Salvini; e a Força Itália --, e um executivo socialista, liderado por Edi Rama, o que já levou o principal partido da oposição em Itália, o Partido Democrático (PD), a reclamar a exclusão do primeiro-ministro albanês do Partido Socialista Europeu (PES).

Edi Rama deplorou as críticas da esquerda italiana, que considerou "perdida", negou que se trate de um "negócio", argumentando que se trata antes de "um investimento numa amizade", e apontou que a Alemanha, governada pelo chanceler alemão Olaf Scholz, não se opõe ao acordo e até contempla "fazer o mesmo".

Críticos apontam questões éticas e legais

A "externalização" da gestão de migrantes de Itália para a Albânia provocou um coro de críticas de diversos quadrantes, com ONG e partidos da oposição a deplorarem o que classificam como "um ataque ao direito de asilo" e a falarem mesmo de um "Guantanamo italiano", e levanta também uma série de questões legais.

Sendo esta a primeira vez que um Estado-membro da UE faz 'outsourcing' a um país terceiro da gestão migratória, a Comissão Europeia está a analisar os detalhes do protocolo para determinar se o mesmo não viola a legislação comunitária, e muitos terão em mente que o igualmente controverso acordo entre o Reino Unido e o Ruanda, assinado há mais de um ano mas que ainda não entrou em vigor, e foi na quarta-feira considerado ilegal pelo Tribunal Supremo britânico, que considerou que aquele país africano não é um destino seguro.

Na quarta-feira, a comissária europeia dos Assuntos Internos, Ylva Johansson, adiantou, no entanto, que a avaliação preliminar realizada pelo serviço jurídico da Comissão Europeia aponta para que o protocolo esteja em conformidade com o direito comunitário, o que não significa que o mesmo não possa ser desafiado nos tribunais.

Uma das questões jurídicas que se levanta com o acordo entre Itália e Albânia -- considerado, ainda assim, bem menos radical do que o plano britânico -- é a dos desembarques seletivos, declarados ilegítimos por um tribunal siciliano, que considerou que o decreto ministerial de 04 de novembro de 2022 era ilegal porque, de forma discriminatória, apenas permitia o desembarque do navio SOS Humanity de pessoas consideradas frágeis.

Também o protocolo entre Roma e Tirana prevê seletividade, ao contemplar o desembarque de "pessoas frágeis", como menores e grávidas, em Itália, enquanto os restantes serão enviados para a Albânia.

Uma segunda questão crítica está relacionada com a externalização da jurisdição italiana para um Estado fora da União Europeia, que levanta dúvidas sobretudo a nível de aplicação da lei italiana fora das suas fronteiras, desconhecendo-se por exemplo como é que os imigrantes poderão ter acesso à proteção jurídica de advogados italianos enquanto estiverem na Albânia.

Outro facto a ter em conta é que, até à data, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem anulou sempre os decretos de expulsão dos imigrantes.

No dia seguinte ao anúncio do acordo, a agência da ONU para os refugiados (ACNUR), dando conta de "não ter sido informada ou consultada sobre o conteúdo do acordo", apelou ao "respeito pelo direito internacional dos refugiados".

Já organizações como a Médicos Sem Fronteiras não tem dúvidas em classificar o acordo como "um ataque não provocado ao direito de asilo", apontando que "já não se trata apenas de desencorajar as partidas, mas impedir ativamente que as pessoas em fuga e as que são resgatadas no mar tenham acesso rápido e seguro ao território europeu, contornando assim as obrigações de proteção e salvamento sancionadas pelo direito internacional e pelas convenções europeias".

O governo italiano já fez saber que o protocolo de cooperação com a Albânia não terá de ser aprovado pelo parlamento italiano, o mesmo sucedendo na Albânia, o que também motivou acesas críticas da oposição, no caso, de direita.

Leia Também: Pelo menos 11 países contrariam leis da UE com controlos de fronteiras

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