Tó Jó, Joana ou Maddie: Como a ciência forense não é como se vê no 'CSI'
Cinco casos criminais mediáticos em Portugal, com extensa cobertura noticiosa, e o papel da prova de ADN durante todo o processo. ‘Do Meia Culpa a Madeleine McCann: Casos mediáticos e genética forense em Portugal’, da autoria do investigador Filipe Santos, foi lançado em março e faz uma análise sobre a complexidade da ciência forense, a sua relação com os atores de uma investigação e a perceção criada junto do público.
© Denis Doyle/Getty Images
País Filipe Santos
No final de outubro de 2004, mais de um mês depois de noticiado o desaparecimento de Joana Cipriano, a sua mãe, Leonor, e o seu tio, João, já estavam constituídos arguidos no processo, um passo natural após a recolha, no final de setembro, na casa familiar, de alegados vestígios de sangue humano junto à soleira de uma porta, numa parede, num balde e numa esfregona. Em janeiro de 2005, já depois de amplamente noticiada a descoberta dos vestígios aparentemente hemáticos, e sedimentada uma narrativa específica em relação ao crime, o relatório pericial concluiu que nenhum desses vestígios podia ser identificado com Joana.
Em causa, aqui, não está o caso específico do desaparecimento da menina de 8 anos, mas antes o papel da análise de ADN (ácido desoxirribonucleico, DNA na sigla em inglês) na justiça criminal, a sua compreensão por parte dos diferentes atores competentes e, também, a expectativa criada junto do público por parte da imprensa, na tentação de atribuir à prova de ADN um caráter determinista, inspirado pelo imaginário das séries de ficção como ‘CSI’.
O caso Joana, à luz destas premissas, é paradigmático: em outubro de 2004, a imprensa noticiava a descoberta de "um mar de sangue" nas perícias científicas à casa, com base em fontes próximas da investigação. Em fevereiro de 2005, as notícias dão conta de que as perícias biológicas não resultam em qualquer conclusão. Ainda assim, 16 anos depois do crime, as referências ao mesmo surgem, não raras vezes, acompanhadas pela teoria de que os restos mortais da menina teriam sido dados aos porcos – algo que nunca encontrou base científica, mas que perdurou no imaginário comum, com a mesma atração de um enredo de um filme ou de uma série televisiva (como ‘Snatch’ ou ‘Deadwood’, respetivamente, onde se encontram personagens que se desfazem de corpos de vítimas atirando-os aos porcos).
É esta complexa rede de interação que leva Filipe Santos, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, a analisar cinco processos judiciais de grande impacto em Portugal, em que foi usada tecnologia de ADN: Meia Culpa (1997), Tó Jó (1999), Joana (2004), Serial Killer de Santa Comba Dão (2005/2006) e, talvez o mais mediático a nível mundial, Madeleine McCann (2007).
Em ‘Do Meia Culpa a Madeleine McCann: Casos mediáticos e genética forense em Portugal’, publicado em março, Filipe Santos faz uma análise aos diferentes processos judiciais, do primeiro alerta à sua conclusão - passando todo o processo de recolha de prova e o seu enquadramento nas respetivas linhas de investigação -, e confronta-a com a análise à cobertura noticiosa da época.
Joana desapareceu a 12 de setembro de 2004, na aldeia da Figueira, em Portimão. A mãe e o tio foram condenados por homicídio qualificado e ocultação de cadáver, embora os restos mortais da menina nunca tenham sido encontrados - "não existe prova direta de um homicídio", lê-se no livro© Reprodução
"Não há 100% [de correspondência]. Quando muito, nos casos de paternidade, pode haver 99,99%"
Afinal, como se avalia uma correspondência de ADN? “Não há resposta simples. A questão não é binária, mas probabilística”, explica Filipe Santos, ao Notícias ao Minuto, referindo-se à natureza sensível do processo de identificação de material biológico. O cocoordenador do Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e Sociedade (NECES) fala na seleção de marcadores “em função da sua variabilidade numa dada população de referência”. “Sejam 5, sejam 10, sejam 20 marcadores usados numa comparação de perfis, estaremos sempre a avaliar uma probabilidade de a origem da amostra-problema e a amostra-referência serem a mesma.”
Numa investigação criminal, explica, “a relevância do exame pericial de DNA será sempre valorado em função das circunstâncias e da interpretação em contexto.” “Não é sensato determinar um número mínimo ou máximo de marcadores para assegurar que há uma identificação. O ideal será obter identificação em todos os marcadores que forem usados [no caso de marcadores STR]. Frequentemente, isso depende da manutenção da cadeia de custódia [garantia da autenticidade dos vestígios utilizados como prova durante um dado processo], da qualidade e preservação da amostra. Como se costuma dizer, não há 100%. Quando muito, nos casos de paternidade, pode haver 99,99%”, reflete o investigador, sendo que até nestes casos podem existir complicações (casos de incesto ou abuso sexual de menores, por exemplo).
As incertezas da ciência forense e o seu impacto no processo judicial - o caso Tó Jó
O caso Tó Jó - homem de 23 anos que matou o pai e a mãe à facada de 11 para 12 de agosto de 1999 - exemplifica a complexidade da relação entre a prova científica e a investigação criminal. “Se as certezas são geradas a posteriori, quando se tem uma narrativa onde a prova vai encaixar, aí tem-se um problema grave”, indica o investigador, explicando que, quando as tecnologias de ADN começaram a ser usadas na investigação criminal, “muitas vezes a polícia queria informação e queria uma resposta unívoca”, algo que a prova científica raramente pode dar de forma isolada.
Os contornos do caso Tó Jó acabaram por definir, em grande parte, a direção da investigação. Menos de uma semana depois das mortes - e graças à perspicácia dos inspetores da Polícia Judiciária, que repararam no corte numa das mãos do suspeito -, Tó Jó confessou a autoria dos homicídios, a tentativa de os dissimular e indicou a localização onde abandonou o carro dos pais e onde se desfez da arma do crime. O caso, porém, revestia-se de especial particularidade: a data coincidia com o último eclipse solar total do milénio, suspeito fazia parte de uma banda de black metal e partilhava, com a esposa e amigos, do culto do imaginário “satânico”. Estes elementos e um testemunho levam as autoridades a prosseguir a teoria de que Tó Jó não agiu sozinho.
Nuno, um dos amigos de Tó Jó, foi constituído arguido, tendo a investigação então concluído que esteve no local do crime, com base em dois vestígios de mistura (vários perfis de ADN, onde se incluíam as vítimas e o suspeito, não se excluindo Nuno, outro amigo e a esposa de Tó Jó) encontrados na residência e no carro, embora este tenha admitido, logo à partida, que esteve na casa das vítimas semanas antes do crime.
Um exemplo de erro na cadeia de custódia. A comparação de ADN acima faz a ligação entre O.J. Simpson e o homicídio da sua ex-mulher e o companheiro desta. As manchas negras realçadas pelas setas refletem o padrão do material genético do ex-atleta e coincidem com amostras retiradas do local do crime. A defesa do acusado, porém, conseguiu criar dúvida razoável em torna da recolha e processamento das provas. O.J. Simpson foi ilibado© KIM KULISH/AFP via Getty Images
“Como se torna evidente que as vítimas não estiveram no automóvel depois do crime de modo a deixar vestígios de sangue, é provável que tenha ocorrido transferência do interior da casa para o automóvel. Então, o advogado solicita que seja feito novo exame aos vestígios noutro laboratório”, explica Filipe Santos. Conclui o relatório daí decorrente que “(...) por se tratar de material biológico proveniente de pelo menos dois indivíduos e, especialmente, pelo facto de a quantidade do referido material biológico de cada um deles ser diferente, não nos é possível concluir, com segurança, da possibilidade de um dos contribuidores dessas misturas (de um WC e do automóvel) poder ser o Nuno (…).”
“Além disso, o relatório diz que a única amostra que eventualmente poderia incluir o Nuno era a do automóvel que, por sua vez, deveria ter um resultado semelhante à amostra do WC, o que não aconteceu”, acrescenta o investigador.
Tendo-se criado dúvida razoável em relação à prova que colocava Nuno no carro e na casa na noite do crime, Nuno foi ilibado. “O Nuno confirmou ter pernoitado em casa do Tó Jó semanas antes do crime, e o Tó Jó fez tentativas para limpar o sangue após os crimes - daí haver vestígios de sangue das vítimas no automóvel”, explica Filipe Santos, descrevendo um cenário de transferência de vestígios.
O "mito" em torno de uma correspondência de ADN
De entre os casos estudados no livro, será o de Madeleine McCann o mais familiar ao público geral. Não só por causa da sua proximidade temporal, mas também por causa da sua magnitude em termos de investigação, envolvendo forças policiais de vários países e tendo sido noticiada a descoberta de uma panóplia de provas. “Esse caso foi muito mais interessante do ponto de vista do estudo dos média do que propriamente no âmbito da investigação criminal. Enquanto investigação criminal, aquilo foi a ‘bazuca’. A ‘bazuca’ da investigação criminal. Fez-se tudo e revirou-se tudo”, diz. O caso foi, porém, encerrado sem acusados (podendo ser reaberto até à prescrição dos crimes). Tanto os pais de Maddie como Robert Murat, arguidos no caso, viram os autos arquivados “por não existirem indícios de terem praticado qualquer crime”, conforme se pode ler em ‘Do Meia Culpa a Madeleine McCann’.
As imagens dos cães com treino especializado para deteção de odores de sangue e cadáver, no âmbito do caso Maddie, foram mostradas recentemente num documentário. Os cães sinalizaram odores no apartamento dos McCann e no carro por eles usado. A sinalização, que o tratador descreve como "indicativa", tem de ser confirmada por análise forense. Nenhuma pista foi confirmada em laboratório© Reprodução
“O maior ‘mito’ disseminado no imaginário público será a noção do DNA como algo ‘único’ que traduz uma espécie de essência ou alma. No discurso público, aplica-se com muita frequência no futebol, mas também no mundo empresarial e no marketing. Voltamos às metáforas ficcionais usadas na cultura popular”, infere Filipe Santos.
O investigador sustenta que “para o público, e talvez de forma residual para as autoridades”, o maior perigo reside na “extrapolação entre source [fonte do ADN] e offence [crime], sem considerar a activity [atividade]”. Quer isto dizer que se “um vestígio encontrado numa cena de crime é identificado com um determinado indivíduo não quer necessariamente dizer que é suspeito ou que cometeu o crime”. Aliás, “a prova do ADN não pode, isoladamente, ser usada para condenar qualquer indivíduo, se não houver [outras] provas”.
“Há que considerar, se possível: que tipo de fluído ou tecido originou a amostra? Em que local foi recolhida? A partir do local, do tipo e origem, é possível determinar a atividade que levou a que a amostra fosse depositada? A atividade pode configurar um ato criminoso?”, enumerou, por fim.
'Do Meia Culpa a Madeleine McCann: Casos mediáticos e genética forense em Portugal'© Almedina/CES
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