Chapeleiro, aderecista, artesão, professor ou bailarino. Muito se poderia dizer sobre Luís Stoffel, o homem por detrás dos exuberantes adereços dos espetáculos de Filipe La Féria, mas a mais fiel descrição é de que Luís é um apaixonado pela arte.
Desde que era muito novo que se embrenhava em tudo o que estava relacionado com o mundo artístico. Primeiro com a dança e mais tarde com os acessórios, a moda e os adereços. Tinha apenas nove anos quando pegou pela primeira vez numa máquina de costura, a máquina da sua mãe, numa altura (anos 60) em que um menino gostar de costurar surpreendia os adultos.
De bailarino a aderecista, Luís chegou a Lisboa, de malas e bagagens em 2002, à procura do sonho. À procura de fazer aquilo que mais o apaixonava. Foi no teatro Politeama que encontrou a sua 'casa' fora de casa, trabalhando nas peças de teatro de Filipe La Féria. Desde que chegou à capital que nunca mais parou.
A pandemia foi, no entanto, um travão doloroso e Luís assume ainda estar a levantar-se, mas mantém o otimismo de quem não desiste, de quem quer continuar a sonhar.
Quem é o Luís Stoffel enquanto pessoa?
Penso que, para já, sou um sonhador e como pessoa acho que me deixo levar muito pelos sonhos, tanto pelos meus como de certos amigos que fazem com que nós possamos sonhar e voar, e isso tem muito a ver comigo. Desde criança que sempre que me apresentavam qualquer coisa, por exemplo nesta parte de adereços e figurinos, que eu começava logo a voar, logo a idealizar a forma como podia apresentar as coisas.
É muito curioso porque em criança, na escola básica, na altura devia ter os meus sete ou oito anos, eu apresentava trabalhos manuais e fazia aquilo de tal forma que eram todos para exposição. Na altura ficava um bocado triste porque os professores ficavam com os trabalhos mas passado uns anos é que dei valor, porque gostavam e era uma forma de reconhecimento e isso é muito gratificante.
Posso às vezes, não quero dizer desistir, mas eu se a estrada é por aqui e se eu não conseguir atingir aquela meta que vejo lá ao fundo, vou por outro caminho mas o objetivo e chegar à meta. Posso levar algum tempo, que às vezes leva-se, mas faz de mim um guerreiro, eu vou à luta.
Como nasceu o bichinho da arte?
Todos os percursos que tenho tido – não gosto de falar em carreiras, gosto mais de falar do meu percurso profissional ou pessoal porque o profissional faz parte do pessoal e vice-versa – mas acho que vem de uma outra vida. Eu aos nove anos, sem saber o que era uma máquina de costura... e sentar-me ali, em frente à máquina da minha mãe, sozinho, e começar a coser… e a minha mãe perguntar ‘o que estás a fazer?’ e eu a coser sem ninguém me ensinar… Estamos a falar dos anos 60 e tais, início dos anos 70, eu era miúdo! Com nove anos não era muito normal, ainda por cima rapaz naquela época.
Depois a área da dança que, aos quatro anos, os meus pais me fizeram o favor de me colocar no folclore onde estive 20 anos. Isso foi uma das melhores escolas que tive na vida, tanto como dançarino como como pessoa, como ser humano. Por isso, eu acho que [o bichinho pela arte] vem de uma outra vida. Fui dançarino, depois anos mais tarde comecei a participar em concursos de dança na altura de disco sound, depois aos 17/18 anos comecei a fazer ginástica jazz em Santarém, depois a professora achou que eu tinha muito jeito para a dança e convidou-me para ir a Lisboa fazer cursos.
Portanto, todo o meu percurso – de dançarino, bailarino, professor, coreógrafo - fez com que eu tivesse que fazer o guarda-roupa, os adereços, porque esse bichinho já estava cá dentro, não apareceu do nada.
Luís Stoffel rodeado por alguns dos seus trabalhos© D.R.
Foi na dança que nasceu a tua vontade de criar?
Exatamente, a parte dos figurinos surgiu aí, pelos bailarinos que trabalhavam comigo. Foi em Portimão que o meu trabalho todo tanto como bailarino, professor, e também como aderecista e figurinista foi visto e com agrado.
As pessoas que viam os espetáculos, a maioria todos estrangeiros, reconheciam e era muito bom. Dizerem que o nosso espetáculo era muito bom e bonito a nível de guarda-roupa… isso para mim era muito importante e foi quando eu vim para Lisboa.
Vieste para Lisboa com algo planeado?
Não, vim à aventura. Toda a minha vida tem sido assim, altos e baixos, mas a minha tem sido uma montanha russa. A vida de um artista em Portugal, digo Portugal porque é cá que eu vivo, mas é uma montanha russa e às vezes sem corda, sem rede lá em baixo porque as quedas são tão grandes, são abismais… e a minha não deixou de ser também. Ainda me estou a levantar.
Nunca tiveste medo de, sem rede, vir para Lisboa?
O Algarve já estava a nível de espetáculos… estranho. Havia empresas de animação. Os hotéis começaram a fechar um bocado as portas à animação que existia diariamente onde eu estava a fazer espetáculos e tinha amigos a dizer ‘Luís vem’.
Não ia já dançar porque eu já estava com 40 anos, e eu acho que nestas alturas temos de ter consciência da nossa idade, porque o nosso corpo enquanto bailarinos é a nossa ferramenta e com 40 anos podia fazer outras coisas. Coreografar já não, mas seguir outra área onde não houvesse muita procura: a parte de adereços, guarda-roupa e chapelaria. E porque não? Tive um bocado de receio, sim, mas eu vou à luta. A nossa vida é uma luta constante para podermos atingir os nossos objetivos, se não formos nós a lutar mais ninguém luta por eles.
Como foi o processo até encontrares o teu caminho na capital?
Comecei a enviar cartas, ninguém me respondeu, mas isso é um costume português… nós enviarmos e-mails e mensagens seja para onde for e há lá um que responde. Eu acho que o 'não', se existe, é para ser dado, não é cair no esquecimento. Porque é um vazio tão grande enviar um e-mail quando precisamos e não nos dizerem absolutamente nada.
Até que pensei, ‘ok, se eles estão lá em cima [Lisboa] e tu estás cá em baixo [Algarve], ninguém te conhece… vamos embora’. Agarrei numa transportadora, trouxe os tarecos todos para cima e vim para Lisboa.
Andei a bater às portas, este teatro [Politeama] foi o primeiro onde vim e disseram-me que não, não precisavam de ninguém, e continuei a correr os teatros todos. Entretanto, segui outra secção: estilistas. “Não precisamos, não precisamos”, respondiam-me, até que fui ao João Rolo.
Marquei uma entrevista com o João, liguei-lhe, disse-lhe ‘olha, João, eu preciso de uma entrevista, gostava muito de te mostrar o meu trabalho’ e marcou-se a entrevista. Tinha um portefólio com os trabalhos que tinha feito em Portimão e lá fui eu ter com ele ao atelier. Disse-me ‘o teu trabalho realmente é bom, mas não é o que preciso, mas se souber de alguma coisa aviso-te e dou a tua referência’.
Um dos trabalhos de Luís Stoffel© D.R.
Em março de 2002 houve a gala no Coliseu dos Recreios dos 45 anos da RTP. O João ligou-me ‘Luís, passa-se isto, o espetáculo vai ser no Coliseu encenado pelo Filipe La Féria, queres?’ 'Quero', respondi eu. Atirei-me porque era uma oportunidade para eu mostrar o meu trabalho. Vim a uma reunião com o Filipe La Féria, com a produção e o João, porque foi o estilista desse espetáculo e, entretanto, depois do espetáculo, estavam eles os dois e o Filipe La Féria chamou-me. Deu-me os parabéns e perguntou se eu queria fazer o ‘My Fair Lady’ em agosto na parte dos adereços. E foi até hoje.
Como é o processo criativo?
Ás vezes não é fácil. Como eu não tenho formação, eu sou um autodidata nesta área, há quem diga que eu sou designer, que sou criativo… sou criativo sim, mas eu gosto de me considerar como artesão. Não deixa de ser nem melhor nem pior que os outros, que têm formação nas áreas, eu tenho é formação da vida, da experiência e todos os dias aprendo. Ontem, estava a fazer umas coisas e estava a pensar ‘tenho de ter isto, e aquilo, agora não tenho instalação para isto’… são tantas coisas que a pessoa tem na cabeça que o fator criativo fica para trás. Não é fácil, às vezes, fazer com que um criativo se foque no que está a fazer enquanto está a pensar noutras coisas, se tem dinheiro para isto ou para aquilo.
Por isso é que os estilistas têm uma equipa por detrás, há uma equipa vasta por trás do criativo para ele se poder focar no que está a fazer. Não está preocupado se tem comida no frigorífico. Eu sou a minha própria equipa.
De qualquer forma, eu tenho inspirações que são os grandes mestres de chapéus a nível mundial, mas eu foco-me muito em dois: Philip Treacy e o Stephen Jones.
Já fui considerado, por produtores de moda cá em Portugal, o Stephen Jones português e isso é muito bom
É ótimo [o reconhecimento] porque todo o trabalho que tenho tido, toda a minha pesquisa, porque tenho de pesquisar muito as tendências de moda, os materiais… e a nossa realidade é muito diferente da de Londres. Lá há o protocolo das festas e casamentos onde se deve usar o chapéu. Nós não temos essa cultura e o teatro é onde eu me posso transbordar mais e é isso que me dá energia e me faz sonhar e voar. A não ser que haja um figurinista em que eu tenha de seguir quase a 100% o que está no figurino. Tenho de estar sempre em ligação com o guarda-roupa.
Como foi para ti esta paragem no mundo do espetáculo devido à pandemia?
Foi muito complicado. Tive de andar a fazer limpezas em apartamentos e sem dinheiro, mas tive amigos que souberam e me ajudaram. Tive dias que… uns assim, outros assado... mas eu tenho essa força de pensar que há pessoas piores que eu.
Pensava para mim ‘calma, tu és um guerreiro, já passaste por muita coisa e não havia pandemia, já tiveste momentos em que tinhas só pão e no outro dia já tinhas mais qualquer coisa para comer e portanto… isto é uma pandemia, há pessoas a morrer’, e pensava desta forma.
Enquanto estivemos de quarentena e ninguém saiu, eu foquei-me nos materiais que tinha em casa para ter a minha cabeça ocupada. Fiz 20 máscaras, diferentes das que usamos diariamente. Um dia pensei, quento as fazia, ‘um dia estas máscaras vão ter de ser expostas em algum sítio’, porque têm um significado muito forte, devido à situação que estamos a atravessar, mas também pelo momento que eu pessoalmente estou a atravessar… De chegar ao frigorífico e não ter nada e… ter açúcar louro e uma colher para comer. E não ter que dizer nada a ninguém, porque eu não queria. Havia pessoas piores do que eu e eu não queria estar a lamentar-me porque amanhã seria diferente.
Foi uma luta muito grande comigo, com o não querer dizer porque não gosto de dizer nem de pedir nada a ninguém e não faltar uma coisa que era comida para a minha gata
Passou a quarentena, começamos a sair à rua e tive amigos que perceberam e perguntavam se eu precisava de alguma coisa. As pessoas começaram a notar que sim. Entretanto, surgiram as limpezas porque as pessoas sabiam [que estava a passar por dificuldades]. Não é uma questão de orgulho, é não querer estar a dar trabalho e não querer chamar a atenção e não querer incomodar ninguém.
Uma amiga de Portimão, que sabia da minha situação, perguntou ‘quer vir trabalhar comigo?’ e eu disse ‘quero’. Uma coisa é estares a trabalhar e pagarem pelo teu trabalho, outra coisa é darem-te assim, eu preferi trabalhar, ir para as limpezas, limpar apartamentos e as coisas começaram a subir gradualmente.
Não estou bem, ainda, mas estou a tentar subir aos poucos e daí o meu regresso a Lisboa. Uma coisa posso dizer, este teatro [Politeama] nunca me deixou ficar mal, e neste momento estão a dar-me a mão outra vez e eu estou grato por isso.
Agradeço muito ao universo. Às vezes penso assim ‘ok, peço ao universo, mas se ele agora não está a olhar para mim, se calhar há outra pessoa a meu lado que necessita mais do que eu, depois ele há de olhar para mim’.
Como vê os apoios que dão à Cultura?
Tenho visto… eu lia coisas no Facebook de colegas sem trabalho e haver correntes para ajudarem essas pessoas, esses colegas… Eu não queria entrar muito por aí porque isso já tem muito a ver com política e eu não gosto de política. Aliás, gosto da ciência enquanto política, que é uma ciência bonita, mas aquilo que se faz aqui ou no mundo não é ciência bonita.
Sei que não deve ser fácil quem está à frente ter de gerir tudo isto, mas os apoios são sempre poucos para quem está a precisar, para quem está com fome, com filhos, a precisar de medicação… é sempre muito pouco. Não sei como é que isso se gere, não faço a mínima ideia, mas acho que é sempre pouco. Se não forem os amigos ou a família…
Pegando no que dizia no início, de ser um sonhador, como é que se imagina daqui a cinco anos?
Daqui a cinco anos, quero continuar a sonhar, a fazer as minhas coisas, a sentir-me feliz, que temos de nos sentir felizes sempre para conseguir fazer aquilo de que mais gostamos. E em princípio estarei aqui, em Lisboa, a fazer as minhas coisas. Tenho projetos, os convites já começaram a aparecer, em maio vai acontecer algo na minha vida muito importante. É mais um grande passo como pessoa, como profissional e como guerreiro e sonhador.
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