Quando se assinalam 20 anos da denúncia de casos de abusos sexuais de alunos da Casa Pia, envolvendo personalidades da vida política, artística e diplomática, Miguel Matias, questionado pela agência Lusa, fez um balanço deste caso mediático, que teve início a 23 de novembro de 2002 e culminou com sete arguidos pronunciados (Carlos Silvino, Carlos Cruz, Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Ferreira Diniz, Hugo Marçal e Gertrudes Nunes), cinco anos e oito meses de julgamento e a audição de 980 testemunhas.
"O processo Casa Pia foi, até ao presente, o mais longo da história judicial portuguesa. Demonstrou a fragilidade do sistema judicial, bem como a evidência da interferência do poder político no poder judicial", acusou Miguel Matias, sem concretizar, numa resposta escrita a questões colocadas pela Lusa.
Além das vítimas de abusos sexuais, Miguel Matias também representou a instituição.
Do ponto de vista da fragilidade do sistema judicial, para o advogado o caso "demonstrou a inexistência de garantias processuais para as vítimas, então assistentes do Ministério Público (MP)".
"E também, infelizmente e como tem sido paradigma em Portugal, originou grandes alterações legislativas que deveriam ter sido pensadas e implementadas muito antes. Por outro lado, teve a virtualidade de ajudar quer o sistema judicial, quer a população em geral, para os dramas das vítimas de crimes sexuais", vincou.
Quanto à morosidade do caso, Miguel Matias não tem dúvidas em afirmar que "foi motivada pela declaração de especial complexidade do processo, o que permitiu o arrolar de cerca de 900 testemunhas".
Na sua perspetiva, "contribuiu também, e muito, a falta de tomada de declarações às vitimas para memória futura, o que era facultativo na altura, tendo ocasionado a inquirição das mesmas, individualmente, por mais de 30 dias", sublinhando, contudo, que os recursos e os incidentes processuais são direitos dos arguidos que não podem ser questionados.
O advogado disse que "as vítimas são, hoje, jovens adultos", que "sofrem quase todos de um elevado nível de stresse pós-traumático, o que tem causado como consequências grandes dificuldades de inserção social, profissional e pessoal".
Questionado sobre como este extenso processo, com mais de 70 mil páginas, marcou a sua vida, Miguel Matias respondeu que "implicou um nível de entrega muito grande, com consequências pessoais e profissionais bastante vincadas".
"Pelo tempo, pela complexidade do processo e pelo envolvimento com as vítimas, claro, foi muito impressivo", recordou.
Também Ricardo Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz, o mais mediático arguido do caso, foi crítico quanto à Justiça, considerando, em declarações escritas à Lusa, que "o julgamento do processo Casa Pia encerra um gravíssimo e trágico erro judiciário que, mais tarde ou mais cedo, há de ser reconhecido".
"Essa é a minha convicção", enfatizou, na resposta à Lusa, acrescentando: "Essa é a luta de Carlos Cruz e a minha. A justiça há de ser reposta e nós não desistimos dela".
Ricardo Sá Fernandes sublinhou que "passaram 20 anos, mas o processo Casa Pia ainda não está encerrado" e que "Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por não ter garantido, no que diz respeito a Carlos Cruz, o direito a um processo equitativo", o que, em seu entendimento, "no quadro de um recurso de revisão, deve implicar o direito a um novo julgamento".
"Infelizmente, assim não entenderam os tribunais portugueses, razão pela qual, em junho de 2022, foi apresentada nova queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a qual, liminarmente admitida, está pendente de apreciação e julgamento", argumentou.
Relativamente ao pagamento da indemnização a uma alegada vítima de crimes por que Carlos Cruz foi absolvido, o advogado explicou que "existiu um erro de 'copy paste', cuja correção foi requerida e está pendente de apreciação em recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça".
Ricardo Sá Fernandes revelou que "está igualmente pendente de recurso nos Tribunais Administrativos à questão de ter sido abusivamente retirada a condecoração da Ordem do Infante D. Henrique, com que Carlos Cruz fora agraciado pelo Estado Português".
O mega escândalo de abusos sexuais de alunos na centenária instituição de ensino estatal Casa Pia eclodiu a 23 de novembro de 2002 com uma notícia da jornalista Felícia Cabrita publicada no semanário Expresso e reportagem no canal SIC, do mesmo grupo empresarial.
O principal arguido, Carlos Silvino, antigo aluno casapiano, onde foi abusado, vindo mais tarde a tornar-se ele próprio abusador, era motorista da Casa Pia e angariador de menores para atos sexuais com adultos, tendo este processo tido como figura mais mediática o apresentador de televisão Carlos Cruz, que desde o início do caso sempre reclamou a sua inocência.
Foram também arguidos o antigo provedor adjunto da Casa Pia Manuel Abrantes, o embaixador Jorge Ritto, o médico Ferreira Diniz, o advogado Hugo Marçal e Gertrudes Nunes, dona de uma casa em Elvas onde alegadamente decorreram abusos, mas que acabou absolvida.
Entre as figuras mediáticas que chegaram a ser acusadas estiveram o humorista Herman José e o político socialista Paulo Pedroso, que esteve preso quatro meses e meio, mas que acabaram por não ser pronunciados para julgamento.
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