Luís Filipe Barreira tomou posse como bastonário da Ordem dos Enfermeiros há seis meses. Em entrevista ao Notícias ao Minuto reconheceu que há "desafios" a enfrentar, mas mostrou vontade de que os "enfermeiros façam parte da solução e de um compromisso para a saúde".
Além de ter feito um balanço dos primeiros meses no cargo, falou ainda das propostas que espera que o novo Executivo ouça. Garante que os enfermeiros estão "disponíveis para construir consensos" e que a degradação dos serviços de saúde se deve "sobretudo à falta de enfermeiros".
O bastonário faz notar que a escassez de enfermeiros compromete "a qualidade dos cuidados prestados" e coloca em causa "as necessidades da população".
Pretendo, naturalmente, que os enfermeiros façam parte da solução e de um compromisso para a saúde
Este mês assinalaram-se os primeiros seis meses do seu mandato. No dia que tomou posse afirmou que as eleições eram “apenas um ponto de partida para um mandato com muito trabalho pela frente”. Que balanço faz destes primeiros seis meses?
Faço, naturalmente, um balanço positivo. Conseguimos logo nos primeiros meses apresentar ao Ministério da Saúde e à Task Force do Plano de Emergência para a Saúde 16 propostas que consideramos que são essenciais. No fundo, para assegurar a sustentabilidade e o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde e do Sistema de Saúde, numa lógica de maior proximidade e de maior acessibilidade. Foram bem acolhidas e esperamos, naturalmente, que fiquem incluídas no plano.
Quais são as principais diferenças entre este meio ano e os mandatos da antiga bastonária Ana Rita Cavaco?
Na verdade, é um projeto de continuidade dos anos desses mandatos, uma vez que eu assumia o cargo de vice-presidente do Conselho Diretivo. Obviamente que imprimo aquilo que também é, no fundo, a minha forma de ser e trabalhar e pretendo naturalmente que os enfermeiros façam parte da solução e de um compromisso para a saúde. Nesse sentido, vamos ter de enfrentar os desafios atuais da saúde e tendo um foco também muito importante que é urgente, que é a valorização dos enfermeiros.
Nós temos já uma escassez crónica e uma degradação dos serviços, sobretudo pela falta de enfermeiros. Estarmos a despedir enfermeiros não é, propriamente, o caminhoQuando tomou posse considerou ser “inaceitável que uma profissão com a responsabilidade, exigência de conhecimentos técnico-científicos e complexidade da enfermagem ainda não esteja devidamente reconhecida e valorizada em Portugal”. Na prática, o que faz falta no dia a dia de cada enfermeiro?
Diria que hoje nós estamos perante um problema, em termos da profissão, que tem a ver, no fundo, com dois eixos que são prioritários. Por um lado, a questão da valorização dos enfermeiros e por outro lado as questões que estão relacionadas com a melhoria do acesso aos cuidados de saúde para as pessoas.
No caso da valorização dos enfermeiros, são amplamente conhecidas aquelas que são as nossas propostas e nós temos três pilares que são fundamentais. Por um lado, a necessidade da revisão da grelha salarial. Os enfermeiros já há mais de 10 anos que não veem uma atualização da sua grelha salarial.
A questão da revisão da própria carreira, porque não corresponde àquelas que são as competências atuais dos enfermeiros.
E, por outro lado, a melhoria das condições de trabalho dos enfermeiros. Se pensarmos no último estudo, que foi tornado público pelo Ministério da Saúde ainda com o ministro anterior, ele refere uma escassez de 14 mil enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde. Portanto, esta carência compromete não só o acesso a cuidados de saúde mas, também, a própria qualidade dos cuidados prestados, prejudicando a capacidade do próprio Sistema de Saúde e não atendendo àquelas que são as necessidades da população.
Estes pilares são, de facto, importantíssimos. A enfermagem é considerada uma carreira especial, de complexidade 3, e nós precisamos de equiparação ao nível da remuneração dos enfermeiros também a este nível das carreiras especiais de complexidade 3.
Quando foi eleito, o nível de abstenção foi de cerca de 80%. Considera que esta alta percentagem é reveladora de alguma descrença por parte dos enfermeiros no próprio setor?
Penso que não é uma descrença. Aliás, se compararmos com as eleições de 2015 houve mais enfermeiros que votaram nestas últimas eleições. Parece-me que é um problema do país. A abstenção nas eleições é sempre alta. Sendo que foi uma lista única, as pessoas também se mobilizam menos em função disso.
Nos últimos anos, temos assistido a consecutivas paralisações dos enfermeiros. A última aconteceu no início do mês de maio e está já convocado um novo pré-aviso de greve de 24 de maio até ao dia 28 de julho. O que esperam os enfermeiros conseguir com as paralisações?
Neste momento, de facto, a questão que preocupa os enfermeiros naturalmente tem a ver com as condições de trabalho, com as condições da própria carreira e a revisão salarial. Por outro lado, há a necessidade de uma retificação da contagem do tempo de serviço, que não foi equitativo em termos do país. Há muitas situações de colegas que estão há varios anos a trabalhar no SNS e, por diversos motivos, esse tempo não tem sido contabilizado para a sua subida de escalão. Portanto, é necessário fazer essa equiparação da contagem do tempo.
A questão do reconhecimento da enfermagem como uma profissão de desgaste rápido e a correspondente antecipação da idade da reforma. E depois temos também um problema muito sério, em termos de país, que já reportámos à senhora ministra, que tem a ver com a regularização dos vínculos precários dos enfermeiros. Temos muitos contratos que, neste momento, estão a terminar a partir do mês de julho e isso preocupa-nos. Nós temos já uma escassez crónica e uma degradação dos serviços, sobretudo pela falta de enfermeiros. Estarmos a despedir enfermeiros não é, propriamente, o caminho.
A Ordem apoia estas greves?
A Ordem tem sido sempre solidária com as lutas dos enfermeiros. Neste momento estamos com um novo Executivo e temos tido, por parte da senhora ministra da Saúde, a abertura no sentido de se rever algumas situações. Penso que ela tem agendada uma reunião, para o final deste mês de maio, com os sindicatos. E espero que ela apresente um plano, em temos de negociação, para a valorização da profissão.
A vida das pessoas nunca fica comprometida com as greves dos enfermeirosAté onde estão os enfermeiros dispostos a ir para verem as suas reivindicações conseguidas? Pôr em causa a saúde dos doentes é um risco que estão dispostos a assumir?
Há serviços mínimos que são decretados nas greves e, portanto, a vida das pessoas nunca fica comprometida com as greves dos enfermeiros. Mas, naturalmente, quem trata dessas questões das greves e dos serviços mínimos são os sindicatos que têm aqui um papel fundamental.
Não temos médicos obstetras para manter abertas todas as maternidadesNos últimos anos, temos visto uma degradação do Serviço Nacional de Saúde que conta com urgências lotadas, maternidades fechadas, e a sensivelmente um mês do verão não há ainda plano para esta época do ano. O que considera emergente fazer para um serviço mais digno para os enfermeiros e, consequentemente, para os doentes?
Até ao final deste mês há o compromisso por parte do Governo e do Ministério da Saúde para lançar o plano de emergência para a saúde, que aguardamos com alguma expectativa. De qualquer forma, há uma questão que é essencial que é a melhoria do acesso aos cuidados e nós fizemos, já, propostas muito claras sobre a necessidade de alargamento das áreas de intervenção autónomas e de responsabilidade dos enfermeiros que no fundo são essenciais para uma maior acessibilidade e também para a oportunidade de cuidados e em tempo útil.
Destacamos, por exemplo, a questão da gestão da doença crónica em todos os níveis de cuidados, quer hospitalares, quer nos cuidados de saúde primários. Os enfermeiros podem assegurar as consultas de acompanhamento das doenças crónicas, libertando, por exemplo, os profissionais médicos para as primeiras consultas, que como sabemos têm uma grande lista de espera em muitas áreas de especialidade, e também para outras intervenções médicas. Esta foi uma das propostas que efetivamente lançámos.
Por outro lado, temos sempre a questão, já o disse no discurso de tomada de posse, da possibilidade da prescrição por enfermeiros no âmbito das suas intervenções autónomas, que eu espero que seja, a curto prazo ou a médio prazo, implementada também em Portugal. Não faz sentido continuarmos com este tabu, quando em termos internacionais e concretamente na Europa, temos já esta possibilidade bem desenvolvida e, de facto, ajudava a melhorar a acessibilidade a os cuidados em tempo útil.
Por outro lado, a questão dos próprios enfermeiros de família e o alargamento das consequências nos cuidados de saúde primários, como os gestores de caso e como os profissionais de referência para todos os utentes, focando sempre aqui um modelo assistencial de maior proximidade.
Outra das propostas, também importante, que tem sido pouco valorizada tem que ver com as unidades de cuidados na comunidade. É necessário um reforço destas unidades, que não têm incentivos, ao contrário daquilo que acontece com as USFs. Estas unidades são lideradas por enfermeiros, que incluem as equipas de cuidados continuados integrados e que, no fundo, são equipas que prestam esses cuidados de proximidade e que devia ser possível assegurar uma prestação de cuidados 24 horas por dia e sete dias por semana, em que se coloque ao serviço da população as competências e a própria diferenciação dos enfermeiros.
Por outro lado, também, vemos muito o sistema com o atendimento das grávidas de baixo risco, no âmbito dos blocos de parto. Conseguiríamos rentabilizar recursos e a capacidade de resposta das maternidades com os enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde materna e obstétrica. Eles já hoje assumem muito deste atendimento da gravidez de baixo risco. Temos naturalmente a questão da orientação que foi publicada por parte da Direção Geral da Saúde, que eu espero que se aplique em todas as maternidades e que, de uma vez por todas, se deixe de enterrar de forma alternada a maternidades como temos assistido ultimamente. É que na verdade não temos médicos obstetras para manter abertas todas as maternidades, mas temos aqui um capital humano muito importante que são os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica, que já hoje asseguram a maior parte do atendimento da gravidez de baixo risco e que podemos utilizar estes recursos para podermos manter um melhor acesso às mulheres que precisam, obviamente.
Recentemente, foi atualizada pela DGS a orientação sobre os cuidados de saúde durante o trabalho de parto a pedido da Ordem dos Médicos. No novo documento, os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia perderam autonomia e responsabilidade. Os enfermeiros estão confortáveis com estas alterações?
Diria que os enfermeiros não perderam qualquer poder. No texto final da Direção Geral da Saúde mantém-se, à semelhança da versão inicial, o poder atribuído aos enfermeiros especialistas para internar e para realizar a vigilância de parto de baixo risco.
Portanto, a reformulação do texto não retira qualquer autonomia aos enfermeiros especialistas nem altera a sua intervenção. No fundo, nesta orientação está, sim, a relevância dos cuidados dos enfermeiros especialistas para a prestação de cuidados seguros e apropriados à condição clínica da própria mulher.
Não há dúvidas de que o trabalho em equipa nos cuidados centrados à mulher é importante e a nova versão assegura apenas a colaboração entre o enfermeiro especialista e o médico obstetra.
Como olha para este pedido da Ordem dos Médicos? Trata-se de um ajuste para um melhor serviço ou assistimos a algum mal-estar entre classes?
Não, não há nenhum mal-estar. Tive oportunidade de falar com o senhor Bastonário da Ordem dos Médicos e parece-me que é uma medida que, conforme disse, não reduz de forma nenhuma aquele que é o poder e autonomia dos enfermeiros especialistas.
Agora, quando trabalhamos em equipa temos de conversar. Da mesma forma que um médico obstetra informa o enfermeiro sobre um internamento, obviamente o contrário também deve existir.
Os enfermeiros têm sido, ao longo dos últimos anos, esquecidosMarta Temido e Manuel Pizarro foram os anteriores ministros da Saúde. Que contributo deram eles para a melhoria das condições de trabalho dos enfermeiros?
Eu penso que os enfermeiros têm sido, ao longo dos últimos anos, esquecidos. As pessoas percebem a importância dos enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde e no Sistema Nacional de Saúde. Mas, na verdade, não tivemos grandes políticas de saúde dirigidas aos enfermeiros. Isso tem sido de facto o discurso, nos últimos anos, da Ordem e a questão da degradação dos serviços que tem acontecido.
Acredito que obviamente as pessoas fizeram o esforço necessário para tentar resolver os problemas. Parece-me que andamos, nestes últimos anos, um bocadinho mais de forma reativa e não de forma proativa. Espero claramente que este plano de emergência para a saúde tenha refletido o compromisso, quer a curto, quer a médio, quer a longo prazo.
Estamos disponíveis, no fundo, para fazer parte da solução e construir consensos que permitam reconhecer e valorizar o papel dos enfermeiros no Sistema de Saúde O novo Governo tomou posse há quase dois meses. O que espera a Ordem deste novo Executivo?
Nós esperamos que ouçam aquelas que são as propostas da Ordem, já as enviámos, e que pensem que estamos disponíveis, no fundo, para fazer parte da solução e construir consensos que permitam reconhecer e valorizar o papel dos enfermeiros no Sistema de Saúde.
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