Em entrevista à Lusa, a propósito do Dia Mundial dos Direitos Humanos, que se assinala na quarta-feira, a ex-relatora especial das Nações Unidas para o direito à água e ao saneamento recordou que, recentemente, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU deu "um puxão de orelhas" a Portugal, confirmando o "impacto negativo" das medidas de austeridade.
Foi um "sinal de alerta", que deve levar o Governo português a "repensar muitas das políticas que estão em vigor e tentar acertar agulhas para o futuro", aconselha a perita portuguesa, que terminou o mandato como relatora no final do mês de novembro.
Esse "impacto negativo" não aconteceu apenas em Portugal, a conjuntura económica causou "retrocessos" em todo o mundo. Por outro lado, houve "velinhas que se acenderam", por exemplo a adoção da reforma de saúde nos Estados Unidos, que alargou a cobertura a milhões de pessoas (conhecida como ObamaCare), e várias medidas de combate à pobreza no Brasil, enumerou.
"Há uma maior consciência de que (...), quando estamos a falar de educação, saúde, segurança social, trabalho, emprego, estamos a falar de direitos", observa.
Quando foi nomeada relatora especial, em novembro de 2008, "havia três países à face da terra que diziam que a água é um direito humano", mas hoje já todos os Estados-membros aprovaram resoluções que dizem "a água e o saneamento são direitos humanos", compara.
"Do ponto de vista legislativo e dos princípios, houve uma enorme evolução", reconhece Catarina Albuquerque, que se deslocou a 15 países, espalhados pelos cinco continentes.
O único país lusófono visitado foi o Brasil, onde encontrou "vontade política a nível federal" e um financiamento de 500 mil milhões de reais (160 mil milhões de euros) para o setor da água e do saneamento nos próximos 20 anos, o que pode mudar a realidade atual, acredita.
"Aquilo que falta é a ligação entre a vontade política a nível central e depois garantir que as coisas realmente acontecem e se traduzem em realidade para as pessoas que estão nas zonas mais excluídas", sublinha.
Porém, "os políticos que estão na capital, nos ares condicionados e nos aquecimentos (...)não conhecem a realidade dos países que estão a governar (...), trabalham com base em médias e relatórios, mas esquecem-se muitas vezes de fazer a pergunta de saber quem é que são as pessoas a quem estão a falhar", critica.
As estimativas não são fiáveis, mas Catarina Albuquerque arrisca dizer que "entre dois e três mil milhões de pessoas não têm água de torneira", isto sem contar com as que, tendo-a, ela não é de boa qualidade. Para além disso, ainda há os "mil milhões de pessoas que, todos dias, fazem as suas necessidades ao ar livre".
E desengane-se quem acha que a Europa não tem "problemas". Catarina Albuquerque foi em missão à Eslovénia, onde "parte da comunidade cigana" não tem acesso a água nem saneamento e acredita que o que viu "aplicar-se-á a outros países da União Europeia".
Outro fenómeno, "mais recente", sobretudo no Sul da Europa, resulta da "incapacidade de pagar a conta" da água. A perita recorda ter visto, em Lisboa, pessoas a recolherem água, para garrafões, de bombas de gasolina e fontanários públicos. "Esta nova situação de pobreza, por causa da crise, está a implicar (...) retrocessos na realização de direitos", que são "violações de direitos humanos", alerta.