"A greve só termina quando o Governo decidir cumprir a lei"

O presidente do Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica, Almerindo Rego, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto, dia em que decorre nova paralisação e uma manifestação em Lisboa.

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Patrícia Martins Carvalho
02/11/2017 08:00 ‧ 02/11/2017 por Patrícia Martins Carvalho

País

Almerindo Rego

"A revolta instalada neste momento entre os técnicos superiores de saúde de diagnóstico e terapêutica é muito grande". É desta forma que Almerindo Rego descreve ao Notícias ao Minuto o momento que estes profissionais estão a passar.

Acusando o Governo de estar a dirigir um processo negocial "hipócrita", uma vez que as negociações deveriam estar a decorrer mas estão completamente paradas, o presidente do Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica defende que “chegou a hora de o ministro da Saúde dar explicações ao país” sobre o que se passa no setor que tutela.

Almerindo Rego lamenta que o sindicato tenha “mais dias de greve com este Governo do que em 40 anos de existência”, mas garante que a paralisação desta quinta-feira – que está definida como sendo por tempo indeterminado – só terminará quando o Ministério da Saúde se sentar à mesa das negociações.

E faz acusações polémicas, em especial ao Conselho Nacional das Ordens Profissionais que, segundo o sindicalista, “protege ilegitimamente os seus interesses privados na medicina”. 

Qual é a grande reivindicação dos Técnicos Superiores de Saúde?

A nossa grande reivindicação é que tenhamos carreiras, porque há 18 anos que aguardamos que seja cumprida a lei. Em 1999, data da última carreira, é reconhecido que quando foi publicada estava já desatualizada. Pressupunha-se ser revista de imediato em 2000. Passados 18 anos, publicou-se de facto dois diplomas para rever esta carreira, mas faltou um conjunto de outros diplomas que operacionalizam a aplicação da carreira.

Somos os profissionais mais mal pagos do SNSEntão não mudou nada?

Não, na prática continuamos na mesma. Não temos uma carreira profissional que reconheça o nível de qualificação destes profissionais que é igual a qualquer outro técnico superior de saúde, mas que em termos de enquadramento salarial, digamos que somos os profissionais mais mal pagos do SNS com diferenças que chegam aos 600 euros.

Porque é que existe tamanha discrepância salarial?

Essa é a nossa grande interrogação. Nós já percebemos que uma das razões por que não há investimento nestas áreas também determina não haver investimento na parte tecnológica da Saúde. Mas tudo isso irá ser explicado hoje aos jornalistas. Vamos desmontar pedra por pedra todo o edifício da hipocrisia que anda à volta da política de Saúde.

Não pode adiantar alguns pormenores?

O que posso dizer é que nas análises clínicas mais de 75% daquilo que é feito e pago no âmbito do SNS é feito pelos serviços privados, estamos a ver o que é o desinvestimento público nesta área. Mas temos áreas onde isto é quase 100%, como é o caso da saúde oral. Portanto diria que paulatinamente se está a privatizar estes serviços e que é uma das razões pelas quais não há investimento ao nível da carreira destes profissionais.

Esta privatização é propositada ou fruto de uma desatenção?

É propositada e não é específica deste Governo. Isso é uma atitude que se vem a arrastar mas a piorar substancialmente há décadas.

Como estão a decorrer as negociações com o Ministério da Saúde?

O Ministério da Saúde falhou todos os compromissos do protocolo negocial, não tendo apresentado qualquer proposta para a negociação. A responsabilidade está do lado do senhor ministro, principalmente quando a maior parte das matérias negociais não tem custos financeiros. Portanto, não entendemos este vazio negocial que se vem a perpetuar.

Estamos perante um processo absolutamente hipócrita e de demissão deste GovernoMas a questão dos salários passa também pelas Finanças…

Sim, essa é uma das questões, mas nós temos muitas outras, como a regulação das competências, os perfis profissionais… Enfim, temos um conjunto de matérias que não têm nada a ver com questões financeiras e essas já podiam ter sido negociadas e não foram. Estamos perante um processo absolutamente hipócrita e de demissão deste Governo que não tem tradução.

Disse que o Governo falhou compromissos negociais. Quais?

O Governo apresentou em maio um protocolo aos parceiros sociais que foi subscrito, tendo sido calendarizadas as matérias que iríamos negociar até ao final de setembro. O que posso dizer é que [até agora] o Governo não apresentou uma única proposta. Não temos rigorosamente nada para negociar.

Face a este cenário considera que o ministro da Saúde tem condições para gerir os processos negociais?

Em matéria de condução do processo político há atrasos a que o ministro da Saúde tem de responder. Este é um processo que tem envolvido lutas duríssimas neste setor e cada luta implica centenas de milhares de exames que deixam de ser feitos e um prejuízo incalculável para os doentes do SNS. É hora de o ministro dar explicações ao país.

Mas já houve reuniões entre o sindicato e o ministro?

Não. Nós tivemos a publicação de dois diplomas em agosto que não têm tradução. Devíamos ter prosseguido as negociações, o que não aconteceu. Pior do que isso, quando interrogámos o secretário de Estado da Saúde, durante a última greve que fizemos, foi-nos dito que não tinha nada para apresentar aos sindicatos. A revolta entre os profissionais deste setor é muito grande.

Que diplomas foram publicados em agosto?

Em traços gerais são duas carreiras: uma para quem tem contrato individual de trabalho, o que representa cerca de 55% dos profissionais, e outra para os contratos de trabalho em funções públicas. Mas são carreiras que não têm aplicação porque falta a legislação complementar que permite a sua tradução prática, ou seja, ficou tudo na mesma.

O Parlamento aprovou a Ordem dos Fisioterapeutas, mas não a Ordem dos Técnicos de Saúde. Porquê?

Essa é uma pergunta que terá de ser feita ao Parlamento. No nosso entender, as profissões estavam em pé de igualdade. Mas a verdade é que o Parlamento aprovou somente a Ordem dos Fisioterapeutas, por razões que eu ainda hoje estou por conhecer.

Mas discorda da criação da Ordem dos Fisioterapeutas?

Esta é uma decisão que, do meu ponto de vista, não foi a melhor. Mas pelo menos já atenuou os efeitos perversos que se vinham a acumular num setor tão degradado em termos de exercício legal. É positivo que [a Ordem dos Fisioterapeutas] tenha surgido para, pelo menos, se poder começar a pôr um pouco de ordem neste setor que é extremamente importante na prestação de cuidados de saúde.

E por que é crucial a criação da Ordem dos Técnicos Superiores de Saúde?

Porque se traduziria no facto de todas as profissões estarem auto-reguladas e poderem intervir em diversos domínios da preservação da qualidade do exercício, que é uma coisa a que o Estado se tem demitido nas últimas décadas. Seria também importante para regular situações que advêm da evolução das ciências da saúde e que estão absolutamente desatualizadas.

O CNOP está a proteger os interesses privados da MedicinaAcusou o Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP) de ter influenciado a votação no Parlamento…

Chamei-lhe chantagem porque, de facto, a posição do CNOP roça a chantagem e, além da chantagem, é a mentira despudorada porque utiliza um conjunto de argumentos que não faz sentido. E fica muito mal a um órgão desta natureza fazer afirmações como as que foram feitas no seu parecer. No fundo, o CNOP está a proteger os interesses privados da Medicina.

Que “mentiras despudoradas” foram essas?

Desde dizer que o projeto que foi apresentado no Parlamento não estava devidamente informado; dizer que as profissões não tinham todas o mesmo nível de qualificação; que nós não tínhamos autonomia técnico-científica... tudo isto é mentira. Estamos a falar de profissões absolutamente autónomas no polo técnico e científico. Então porque é que se reconhece na Fisioterapia esta autonomia e não se reconhece nos outros? Estamos todos na mesma carreira, somos todos abordados pela mesma legislação, temos todos o mesmo nível de qualificação… Porque é que os outros incomodam?

Porquê?

Olhe, incomodam porque os senhores que supostamente prestam um grande serviço ao país através do CNOP mais não fazem do que proteger os seus interesses privados na medicina.

Disse quais eram as mentiras. E a chantagem?

Quando elaboram um documento destes e uma autoridade como o CNOP o faz chegar ao Parlamento… a isto chama-se chantagem. Não compete ao CNOP pronunciar-se sobre isto. O CNOP pôs em causa demasiadas instituições para proteger ilegitimamente os seus interesses em negócios privados.

Foi uma espécie de vingança pelas denúncias que o sindicato fez a propósito de algumas Ordens?

Não acredito em vingança na política, acredito sim que seja a resposta a interesses que foram postos em causa. Como referi à Comissão Parlamentar de Saúde algumas das Ordens que temos constituídas na Saúde transformaram-se em centros de negócio e afastaram-se do seu papel social para defenderem exclusivamente os seus interesses de ordem grupal. É lamentável, mas a auto-regulação em matéria de corporações está ao nível do miserável.

Disse que toda esta situação prejudica os utentes do SNS. Em que medida?

Na medida em que alguns utentes acabam por recorrer ao serviço privado. Os outros que não vão ao serviço privado veem a sua vida complicar-se devido ao atraso de meses nas suas consultas e tratamentos. Isto é inadmissível. O Ministério das Finanças abriu agora um concurso para admissão de pessoal administrativo com o 12º ano se escolaridade. A remuneração oferecida são 1.200 euros. No meu setor, um doutorado é remunerado com 1.000 euros. Acho que isto basta para perceber a dimensão do que se abateu sobre o setor que represento.

Está a ser mais difícil negociar com este Governo do que com o anterior?

Estamos em cenários completamente diferentes. Anteriormente estávamos condicionados por alguns compromissos com a troika. Neste momento isso já não existe nesta dimensão…

Este Governo pega num processo que já tinha mais de 90% do trabalho feito e os 10% não conseguiu concluirE por isso não seria de esperar que o processo negocial fosse mais fácil?

Com o anterior governo também foi difícil iniciar as negociações, mas foi o anterior governo que reconheceu a imperatividade, através do Orçamento de Estado para 2014, da revisão destas carreiras. Só que estávamos em final de legislatura e então não foi possível concluir o processo. A grande diferença é que este Governo pega num processo que já tinha mais de 90% do trabalho feito e os 10% não conseguiu concluir.

Quantas greves já fez o sindicato em dois anos?

Eu até já me custa contabilizar os dias. Mas em 40 anos de existência deste sindicato temos mais dias de greve com este Governo do que com todos os outros governos juntos. E isto dá que pensar.

A greve de hoje é por tempo indeterminado. O que é que pode ditar o fim da paralisação?

O Governo sentar-se à mesa e cumprir os compromissos que assumiu. Aliás, o Governo fez uma coisa que é única. Por imposição do Ministério das Finanças limitou a quota do topo da carreira de 30 para 15% de efetivos. Nunca puseram esta imposição a nenhuma carreira da administração pública, exceto a nós. Isto é só mais um exemplo da violência gratuita e falta de rigor que tem caracterizado o processo negocial.

Tem ideia de quantas pessoas vão estar na grande manifestação?

É sempre uma caixinha de surpresas. Nós temos uns serviços mínimos elevadíssimos, mas presumo que teremos pelo menos 10% dos profissionais presentes na manifestação.

E se o Ministério da Saúde não se sentar à mesa das negociações?

Em sindicalismo quem decide são os trabalhadores. Esta é a terceira greve por tempo indeterminado e o que posso dizer é que as anteriores foram cumpridas escrupulosamente, com um elevado grau de responsabilidade dos profissionais e com uma elevada adesão. Só posso presumir que a revolta instalada vai determinar que a greve só termine quando o Governo decidir cumprir a lei.

Acredita que a greve e a manifestação terão resultados no curto prazo?

Há duas semanas, o ministro da Saúde disse que o secretário de Estado da Saúde iria convocar-nos para negociar nos próximos dias. Até agora nada... Estamos na expetativa que o faça em tempo útil porque, volto a dizer, não é só a responsabilidade que tem perante os profissionais, é a responsabilidade que tem perante a comunidade do SNS que, se voltar a ser prejudicada, deverão ser pedidas responsabilidades ao Governo porque estes exercícios de hipocrisia e cinismo a que temos estado sujeitos neste momento são mais do que evidentes. Os responsáveis políticos não podem continuar a refugiar-se na ausência de explicações. [Porque] devem explicações ao país.

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