O Parlamento debate esta quinta-feira três propostas (do PS, do PCP e do Bloco de Esquerda) para uma Lei de Bases da Habitação. Pedro Soares, presidente da comissão parlamentar de Ambiente é o responsável pelo projeto bloquista. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o deputado diz que o partido está “muito determinado” em alterar o paradigma da habitação em Portugal, reconhecendo como uma falha na democracia a ausência de um sistema público nesta área, levando a que milhares de famílias hoje enfrentem grandes dificuldades no acesso à habitação.
Por isso, propõe a criação de um Sistema Nacional de Habitação. Paralelamente, o partido pretende definir com esta lei a extinção obrigatória do crédito com a entrega da casa aos bancos. Algo que o PS já veio dizer não ser “oportuno” tratar agora. "Surpreendido" com essa primeira reação do PS, Pedro Soares responde que para o Bloco "é sempre oportuno".
O bloquista acusa ainda o PS de se deixar capturar frequentemente pelo PSD, designadamente em matérias de habitação, por via das quais se juntou aos social-democratas para aprovar a atribuição de benefícios fiscais aos senhorios que coloquem as suas casas no mercado de arrendamento. Uma opção que não convence o Bloco. “É um tiro de pólvora seca”, diz Pedro Soares.
Porquê a discussão de uma Lei de Bases tão tardia? Não vamos um pouco atrasados tendo em conta que o drama que se vive na habitação já há muito está sinalizado?
Acho que tem toda a razão. O impacto da ausência de intervenção pública no mercado da habitação nos últimos anos e da liberalização, também, do arrendamento do tempo da ex-ministra Assunção Cristas, em 2012, fez com que tivéssemos de estar a correr atrás do prejuízo. Ou seja, tivemos de estar a resolver um conjunto de problemas prementes que nos estavam a ser colocados.
Pensos rápidos?
Um deles foi muito importante - o regime de renda apoiada. Começámos logo por aí e acho que não foi um penso rápido. É o regime de renda dos bairros sociais. Tinha havido uma alteração legislativa no governo anterior que colocava dificuldades enormes aos moradores desses bairros.
Houve um aumento das rendas, que tinham passado a ser calculadas com base no rendimento bruto, o que levou a aumentos muito grandes. O que fez com que um grupo significativo de pessoas não conseguisse pagar as rendas e fosse ameaçado de despejo. Foi necessário resolver esse problema. Foi resolvido. Há uma nova lei que foi adaptada àquilo que a maioria parlamentar considerou possível e consensual, nomeadamente, passar a haver o cálculo dos rendimentos líquidos e um conjunto de aspetos de dignificação daquele estatuto de morador de bairro social.
Aqueles moradores nem sequer um contrato de arrendamento tinham, uma situação dramática em que poderiam ser despejados por uma simples resolução administrativa de uma qualquer entidade que fizesse a gestão do bairro. Foi necessário fazer uma mexida muito grande nesta lei.
Depois disso colocaram-se outros problemas …
Depois houve um outro conjunto de questões que foram sendo colocadas. Um dos aspetos muito importantes e que nos trouxe muito debate durante bastante tempo foi a lei do alojamento local. Esta onda de alojamento local que tem vindo a percorrer o país, em primeiro lugar nas grandes cidades mas que se alastrou por todo o país, teve um impacto muito grande no mercado do arrendamento porque era um mercado já muito difícil e com a deslocação de alojamentos para o turismo veio condicionar e restringir mais a oferta de habitação para arrendamento. E era um mercado que estava completamente desregulado. A lei que existia (um decreto-lei) permitia que bastasse inscrever o alojamento num balcão próprio e a partir desse momento podia começar-se uma atividade económica.
Muitos senhorios começaram a ver que no alojamento local tinham um rendimento bastante superior ao do arrendamento habitacional e começaram a fazer a transição, que implicou despejos inclusivamente.
[Os inquilinos] foram confrontados com aumentos de renda, com oposição aos contratos de arrendamento, com obras de fundo que levavam a que tivessem de sair, até assédio imobiliário. Tudo isso veio criar uma série de dificuldades que tivemos de enfrentar. Foi necessário fazer uma nova lei de alojamento local, que não é uma coisa perfeita, mas que traz alguma regulação a esse mercado, nomeadamente a possibilidade de os municípios definirem áreas de limitação do alojamento local. Foi, também, necessário fazer uma moratória aos despejos, e uma lei para combater o assédio.
De um lado está o poder todo, que é quem tem a habitação, e do outro lado está a necessidade toda, que é quem precisa de habitação. É um mercado muito desequilibrado, muito desigual, muito rígido
Ou seja, estiveram concentrados em resolver problemas urgentes antes de avançar para uma Lei de Bases.
O que não quer dizer que não tivéssemos a perceção de que era necessária uma lei que trouxesse uma nova perspetiva estratégica em relação à habitação. Julgo que todos os três projetos (do BE, PS e PCP) trazem contributos importantes para este debate.
Considera que o problema da habitação tem sido desvalorizado por este Governo?
Este Governo quando se constituiu não tinha uma Secretaria de Estado da Habitação. A perceção da necessidade de uma intervenção mais incisiva na habitação, penso que é legítimo dizer, vem já depois da tomada de posse.
E partiu de uma pessoa em concreto.
Sim, terá vindo. A deputada Helena Roseta tem um papel importante na chamada de atenção para essa questão, como é óbvio. Nós, na nossa comissão parlamentar, desde o início percebemos que a habitação era uma coisa muito importante e constituímos logo um grupo de trabalho que acompanhou todos estes processos legislativos.
Como é que se chegou aqui?
Ao longo das últimas décadas, ao longo dos últimos 30 anos praticamente, nunca houve um olhar dos governos relativamente à habitação como sendo um elemento fundamental do Estado Social. A seguir ao 25 de Abril conseguimos construir um Serviço Nacional de Saúde, um serviço público de Educação, um sistema de Segurança Social. Mas nunca a nossa democracia respondeu àquilo que é uma necessidade absoluta do ser humano e também um direito protegido constitucionalmente. Nunca conseguiu responder de forma cabal a esse desafio. O essencial do investimento público em habitação foi deslocado para o financiamento de juros bonificados para aquisição de habitação.
Ou seja, o Estado andou a financiar a construção civil que, por seu lado, progrediu bastante porque havia uma procura baseada no cidadão que não tinha outra alternativa de habitação que não adquirir a sua casa, e o Estado financiava através dos juros bonificados. 73% do investimento público feito nos últimos 25, 30 anos foram para juros bonificados. Em vez de criarmos um sistema público de habitação que permitisse uma intervenção pública para regular um mercado que é muito complexo - de um lado está o poder todo, que é quem tem a habitação, e do outro lado está a necessidade toda, que é quem precisa de habitação. É um mercado muito desequilibrado, muito desigual, muito rígido.
Grande desígnio desta lei deve ser mudar o paradigma, deixar de ver a habitação como um mero negócio de construção civil e uma situação em que cada um tem que resolver por si próprio, endividando-se para o resto da vida Quem são os principais culpados por este caos instalado?
Os culpados são quem teve responsabilidades governativas durante as últimas décadas. Ora, acho que houve interesses muito fortes por trás destas opções. Interesses de um país que tinha a sua economia muito assente na construção civil e, por outro lado, interesses financeiros que contavam com o Estado para financiar boa parte do seu negócio de aquisição de créditos para a habitação.
Foram interesses muito fortes que condicionaram de facto uma opção que, do nosso ponto vista, é necessária tomar agora com a Lei de Bases da Habitação. Para que a habitação entre como um dos pilares do Estado Social, para que haja uma nova visão do país, do Estado – a todos os níveis - , das entidades públicas, para que se consiga garantir o acesso a uma necessidade básica. Esse deve ser o grande desígnio desta lei. Mudar o paradigma, deixar de ver a habitação como um mero negócio de construção civil e uma situação em que cada um tem que resolver por si próprio, endividando-se para o resto da vida. Passar a ver a habitação como um direito em que é preciso o Estado intervir. No nosso país temos apenas 2% de habitação de iniciativa pública.
Quase nada, portanto.
Quase nada. Imagine-se o que seria se só 2% do SNS fosse público. Era uma machada brutal na nossa democracia e na igualdade entre os cidadãos. Ou se o nosso sistema de Segurança Social estivesse sobretudo baseado num sistema de seguros privados e só 2% é que era público. Quem é que admitiria isso? Em relação à habitação, que é um direito essencial, é o que está a acontecer.
Se formos para os setores com menores rendimentos, com maiores dificuldades económicas na nossa sociedade, e se retirarmos do parque habitacional toda a parte que não é habitação habitual (habitação secundária, de férias, etc.), só cerca de 3% é habitação social. França tem 17%, no Reino Unido tem 18%. Na Irlanda é 7%. Há, por isso, um défice brutal de investimento em oferta pública de habitação desde logo nos setores com menores rendimentos, mas diria, de forma transversal, para a sociedade em geral. Como vemos na generalidade dos países da Europa, os setores médios acedem também a habitação através da oferta pública.
Hoje, já não são só os mais pobres a terem dificuldades em ter casa.
Antes eram só os mais desfavorecidos, e isso já era grave. Agora é também uma dificuldade para quem tem rendimentos médios. E às vezes até médios mais altos. Isto prende-se, de facto, com este virar de costas durante dezenas de anos de uma intervenção pública necessária.
Se me disser que seria bom ter uma Lei de Bases feita há 10, 15 anos? Claro, mas a realidade tem uma força brutal
O processo não deveria ter sido o inverso? Ou seja, primeiro criar uma Lei de Bases que é uma estrutura – tal como numa casa, a base vem primeiro – depois o resto, o ‘recheio’ dessa casa?
Era impossível começar do zero. Temos uma história de cerca de 200 anos ligada à legislação para a habitação. O que é necessário é definir essa estrutura, uma espécie de chapéu, definindo a visão estratégica e depois incorporar as leis que se adaptam, que são condicentes com essa estrutura, alterar as que precisam de ser alteradas e fazer outras. Se me disser que seria bom ter uma Lei de Bases feita há 10, 15 anos? Claro, mas a realidade tem uma força brutal.
Acha que vai haver alguma abertura da parte do PS e até dos partidos da Direita para acolher as propostas na Lei de Bases nomeadamente a questão da extinção do crédito bancário com a entrega da casa?
Da Direita eu não vou esperar muito, sinceramente. Para esperar, deveriam ter apresentado propostas também para vir a jogo neste debate. Não o quiseram fazer, não foi por falta de competência, foi uma opção política certamente. É porque acham que o mercado deve ser liberalizado, o poder deve continuar a estar sobretudo do lado de quem é proprietário, que os inquilinos devem estar sujeitos a todas as variações económicas e a todas as flutuações do mercado. Uma Lei de Bases que configure um novo caminho estratégico para a habitação julgo que não é do interesse da Direita.
Em relação aos três partidos que apresentaram projetos, acho que há abertura. Sabemos que o PS tem tido muita dificuldade em ter uma atitude mais interventiva no sentido da regulação do mercado. Todo o debate que foi feito nos últimos meses vem no sentido em que consideram que a intervenção deve ser feita apelando a uma vantagem económica por parte dos senhorios via benefícios fiscais.
Os benefícios fiscais aos senhorios não podem ser uma medida eficaz?
Pessoalmente acho que não porque o mercado está sobreaquecido. Essa lógica de poder ganhar mais através dos benefícios fiscais conferindo mais tempo aos contratos de arrendamento julgo que não é uma opção que os senhorios venham a ter, pelo menos em grande quantidade. Há um parecer da UTAO que diz isso precisamente. Que não será uma medida muito eficaz.
A única proposta que o PS tinha no debate do pacote legislativo que gizava no controlo das rendas era que os benefícios fiscais ligados, não só ao tempo do contrato, mas também ao valor da renda. Propunham um teto máximo de 4% do VPT (valor patrimonial tributável). A partir do momento em que fizeram o acordo com o PSD, esse artigo foi pura e simplesmente banido. O essencial da intervenção que o PS defende no mercado é através de benefícios fiscais.
Não excluímos a possibilidade de haver benefícios fiscais aos proprietários quando de facto o benefício para a sociedade seja relevante
Não é uma boa ideia porquê?
Não excluímos a possibilidade de haver benefícios fiscais aos proprietários quando, de facto, o benefício para a sociedade seja relevante. Se houvesse um cruzamento, como o PS chegou a ensaiar, entre estabilidade dos contratos e limite no valor das rendas, deveríamos ponderar essa questão. Mas não foi esse o caminho que o acordo entre o PS e o PSD decidiu.
Se conseguirmos encontrar uma maioria parlamentar que passe a considerar que o Estado deve ter um papel relevante, decisivo na oferta de habitação, isso já é um passo importante.
Nomeadamente com a criação de um Serviço Nacional de Habitação. Como funcionaria?
A lei obriga o Estado a construir um Serviço Nacional de Habitação como temos um Serviço Nacional de Saúde, de Educação, de Segurança Social. O Estado deve criar uma estrutura própria, articulada com os vários níveis da administração pública, com contributos dos municípios, contributos das regiões, com contributos da administração central, inclusivamente do setor cooperativo, associativo e até mesmo privado, se entenderem fazê-lo, que seja formada segundo a lógica de que o parque habitacional do país tem de ter um peso de oferta pública muito mais ampla do aquela que tem, porque é a forma mais expedita, mais racional de regular o mercado e garantir o acesso de todos os cidadãos de uma habitação condigna.
Relativamente à extinção do crédito com a entrega da casa. Não vai ser uma proposta pacífica.
Fiquei até um pouco surpreendido quando ouvi o deputado do PS [João Paulo Correia] dizer que não era oportuno colocar essa questão. De facto, o PS já discutiu a questão como sendo boa em tempos anteriores. Eu acho que é sempre oportuno.
Os bancos deixavam de ter aquele peso do crédito malparado, as famílias deixavam de ter a corda ao pescoço – a dívida terrível que as estrangula. É uma medida justa
E não será oportuno por que razão? Para não chatear a banca?
O argumento é que o problema no tempo da troika teve uma dimensão muito grande, agora terá menos. Mas o problema existe, pode ter menor dimensão mas continua a existir. Não é oportuno porquê? Porque a banca não está disponível? Ou não interessa agora muito tratar essa questão?
Nós achamos que é muito oportuno. Em primeiro lugar, é preciso resolver um problema. Pensamos que o modo de o resolver é correta, como aliás já acontece aqui ao lado, em Espanha. E porque isso ia dinamizar o mercado. Com a entrega da casa, a pessoa ficava sem dívida, certamente que ia recorrer ao arrendamento, ficaria com condições económicas para o fazer porque deixaria de estar presa àquele crédito. E, por outro lado, a banca podia precisamente usar aquelas casas para as colocar no mercado do arrendamento ou para entregar a alguma entidade que esteja interessada.
É uma medida favorável. Os bancos deixavam de ter aquele peso do crédito malparado, as famílias deixavam de ter a corda ao pescoço – a dívida terrível que as estrangula. É uma medida justa. O que não faz sentido é as pessoas, por completa incapacidade, porque as situações se alteraram (em situações em que os rendimentos diminuíram por desemprego e/ou por divórcio, etc.) entregarem a casa e ficarem com uma dívida ainda por cima. Não faz sentido. Aliás, já tínhamos colocado esta questão ao Governo logo no início da legislatura.
Na altura o que disse o Governo?
O Governo disse que não tinha condições para tomar uma decisão sobre essa matéria, vamos ver agora se terá essas condições.
Parece-lhe que estará mais disponível agora, apesar de não ser ‘oportuno’?
Sim, acho que é uma altura essencial. Se vamos trabalhar para que haja uma Lei de Bases da Habitação, essa lei tem de prever a resolução de problemas que estão a bloquear o próprio mercado. Há famílias que não conseguem pagar, há casas que são entregues [aos bancos] mas que também ficam paradas. Entretanto, as pessoas não conseguem arrendar casas por causa das dívidas. Fica tudo empatado. Era uma forma de resolver esse problema e este é o momento oportuno para o fazer.
O Bloco propõe também o fim da aquisição de casas através de Vistos Gold.
A juntar à falta de oferta pública de habitação, à liberalização das rendas do tempo de Cristas e ao alojamento local, está o problema dos residentes não habituais. Estrangeiros que, comprando casa em Portugal, deixavam de pagar impostos nos seus países de origem. O que fez com que houvesse uma quantidade enorme de estrangeiros se apercebessem das vantagens de comprar casa aqui, a qualquer preço, e isso veio estimular a especulação no mercado da habitação que, numa primeira fase, começou nos setores mais elevados da sociedade mas que depois contagiou todo o mercado.
Juntamente com esta questão dos residentes não habituais está a questão dos Vistos do Gold. Pessoas que querem a nacionalidade portuguesa porque isso permite-lhes uma série de coisas – algumas pouco claras – e que compram casas cá, muitas vezes em segmentos de luxo, a qualquer preço. O fenómeno é o mesmo, acaba por contagiar todo o setor. Pretendemos retirar este fator especulativo ao mercado da habitação. É preciso ter a perceção clara que estamos a viver um período de crise habitacional em que há uma quantidade enorme de famílias que não consegue aceder à habitação a preços razoáveis, que tem de ir ou para muito longe dos sítios onde trabalha ou que tem de alocar à despesa da habitação uma parte muito importante, por vezes 70% do seu rendimento familiar, o que é uma coisa inadmissível. Temos de ter esta perceção também para percebermos que temos de ter medidas excecionais para controlar esta crise.
Tudo isto [que propomos] é necessário rapidamente ser colocado em marcha. Obviamente que não é a Lei de Bases que o vai fazer, mas esta cria o contexto legislativo que orienta o Governo e os próximos governos neste sentido.
Estávamos a ir num caminho e é preciso fazer um ‘desviozinho’.
Um desviozão [risos]. É preciso mudar.
Outro tema sensível é a expropriação das casas devolutas.
Uma das coisas que eu acho que é consensual nos três projetos é precisamente a caracterização da habitação como função social. A habitação não é só um conjunto de tijolos e betão armado que alguém decide construir e que depois gere como muito bem entende. Desde logo, ocupa solo, um bem escasso, utiliza recursos económicos, numa área que é fundamental para a sociedade e para o ser humano, e portanto, tem de ter uma função social bem definida.
Não faz sentido termos cerca de 700 mil casas que não estão a ser utilizadas no nosso paísOu seja, não pode existir só por existir?
Sim. Ou só para servir de veículo de especulação financeira.
A partir do momento em que definimos a função social da habitação, o Estado deve ter alguma forma de intervenção para que passe casas que não tinham passem a ter essa função social. Há várias nuances em relação a isso. Aqui o objetivo é, através de medidas coersivas, devolver o imóvel à sua função social. De certo modo, isso já está previsto no nosso código civil, não é nada do outro mundo. É uma questão de a tornar operativa com a posse administrativa ou, em último caso, da expropriação. É uma medida elementar.
Não faz sentido termos cerca de 700 mil casas que não estão a ser utilizadas no nosso país. Acontece, claro, que nalguns casos a oferta não se coaduna com a procura, ou seja, essas casas existem em sítios onde a procura não é muito grande (áreas rurais, aldeias abandonadas, áreas urbanas que estão em perda populacional). Mas o que é facto é que haverá outras, nos grandes centros urbanos, onde há grande procura, que estão devolutas.
Essas casas podem estar devolutas por vários motivos. O projeto do BE prevê isso?
No caso de residências de férias ou de pessoas que estão emigradas, ou de residências ocasionais, não estão abrangidas por isto.
E casos em que famílias estão em litígio por causa de partilhas e, enquanto isso, as casas estão vazias?
Julgo que os três projetos de lei abordam essa possibilidade. Dão um prazo - de cinco anos - para que haja uma resolução das partilhas e que se resolva o problema da herança. No caso de se manter a indefinição para lá do prazo, há uma posse administrativa, a casa é colocada no mercado, quando a situação ficar resolvida, volta a casa para quem a herdou. Não se pode é manter esta situação indefinida ou porque não se consegue resolver um problema ou porque não há interesse em resolvê-lo.
Crê que será aprovada a Lei de Bases da Habitação ainda nesta legislatura?
O objetivo é que consigamos chegar ao final da legislatura com uma Lei de Bases. Da experiência que tenho tido de processos legislativos, era possível no prazo de dois, três meses resolver esta situação. Era interessante chegar ao 25 de Abril com uma Lei de Bases da Habitação. Este é um dos défices na nossa democracia.
O caso Robles inibiu o Bloco de Esquerda, de alguma forma, na luta pelas questões da habitação, uma bandeira do partido?
Nunca nos trouxe qualquer dificuldade, a posição política do Bloco sobre habitação é muito clara e de há muito tempo. Nunca nos desviámos desse caminho, de maneira nenhuma.
Pode o Bloco ser penalizado pelos eleitores por causa dessa questão?
Espero que não, mas os eleitores é que decidirão.
Entramos agora numa fase muito decisiva para os partidos. A partir de agora, cada vez mais será cada um por si, entrando em campanha eleitoral. Como é que viu a mensagem de Ano Novo do Presidente da República que apelou, nomeadamente, a que os partidos não prometam aquilo que não podem cumprir.
Temos um mandato para cumprir. E o mandato é levar a cabo o nosso programa eleitoral , os nossos compromissos com os eleitores. E não há-de ser uma pré-campanha eleitoral que nos vai desviar desse nosso objetivo. Não nos desviaremos um milímetro do caminho que traçamos, em relação ao nosso programa eleitoral. O apelo do PR no sentido em que os deputados cumpram as suas obrigações compagina-se com a nossa ideia de continuar a fazer o nosso trabalho, nomeadamente na questão da habitação. Depois de todo o pacote de medidas já tomadas, o que nos falta é esta mudança de sentido estratégico.
António Costa disse, numa entrevista antes de ser aprovado o OE2019, que o BE e o PCP eram bons para ser amigos mas não para casar. Será que ‘quem desdenha quer comprar’ e ainda vamos ver o PS a fazer um pedido de casamento ao BE, caso não tenha maioria absoluta?
O melhor é esperar pelas eleições. Não é tendo na mira o que é que se vai passar depois de outubro que vamos abordar esta questão da Lei de Bases da Habitação. É porque de facto estamos a viver uma crise habitacional grave. Nos últimos anos, houve nove mil famílias despejadas. Certamente haverá muitas outras, sem condições para pagar as rendas ou os empréstimos à banca. E isso é o problema central. Há milhares de pessoas em listas de espera que precisam de habitação. Foram detectados 26 mil agregados familiares com graves carências habitacionais. Se conseguirmos encarar este passo da Lei de Bases como sendo uma mudança decisiva na forma de ver o direito ao acesso à habitação, acho que isso tinha valido a legislatura.
Quais os principais entraves a esta Lei de Bases?
Os interesses muito fortes que se vão levantar durante este período. Estou a fazer conta de que a associação de proprietários venha dizer qualquer coisa e que o sistema financeiro levante questões. Mas estamos muito determinados em que se opere uma mudança na forma como se vê a habitação.
Sobre aquilo que se vai passar em outubro [eleições legislativas], não me quero pronunciar, os eleitores é que vão decidir. Devo dizer-lhe que, a gente só deve casar com quem querE quanto ao 'casamento'?
O que temos visto ao longo desta legislatura é que é possível chegar a acordos que mudam coisas através do debate e convergências parlamentares. Sinceramente sobre aquilo que se vai passar em outubro, não me quero pronunciar, os eleitores é que vão decidir. Devo dizer-lhe que, a gente só deve casar com quem quer [risos].
E relativamente à aproximação do PS ao PSD, e vice-versa. Como comenta?
O PS tem sido frequentemente, com alguma facilidade, capturado pelo PSD.
Não é por ingenuidade.
Pelo contrário. É até com muito calculismo eleitoral de procurar ganhar espaço naquela área do centro, centro-direita, que tem, como é óbvio, objetivos eleitorais. O PS quer ter uma maioria absoluta, não consegue esconder isso. Joga nessas áreas também. O que é facto é que, no caso da habitação, todo aquele conjunto de processos legislativos que conseguimos aprovar aqui no Parlamento foram feitos com o PS e à esquerda do PS. Só agora recentemente uma parte do pacote da habitação foi feita com a Direita [a questão da fiscalidade]. E teria sido possível fazê-lo com a Esquerda, é óbvio que noutras bases.
O PS optou por se juntar ao PSD e portanto jogar na ideia de que com os benefícios fiscais é possível alterar a situação de crise habitacional. Nós não acreditamos. Achamos que é uma benesse que se está a dar aos proprietários, mas que não vai ter resultados. O PS é capturado pela ideia do PSD de que, na prática, o mercado deve continuar a estar liberalizado e não deve haver uma intervenção forte do Estado.
É um tiro de pólvora seca. Fez algum estrondo, aparece na imprensa que vai haver benefícios fiscais, mas acho que não vai atingir o alvoÉ um tiro no escuro?
É um tiro de pólvora seca. Fez algum estrondo, aparece na imprensa que vai haver benefícios fiscais e que isso vai mobilizar muitos proprietários a colocarem as casas no mercado, mas acho que não vai atingir o alvo.
Que ambições tem na política?
A minha ambição é conseguir mudar o país, nada mais do que isso.