O referendo à morte medicamente assistida, proposto por uma iniciativa popular dinamizada pela Federação Portuguesa pela Vida e que reuniu mais de 95 mil assinaturas, foi esta sexta-feira chumbado na Assembleia da República. PS, BE, PCP, PEV, PAN, nove deputados do PSD (entre os quais Rui Rio) e as deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues votaram contra o referendo. Já Iniciativa Liberal, CDS e PSD votaram a favor. O deputado único do Chega esteve ausente na votação.
A votação acontece um dia depois da discussão no Parlamento em que os vários partidos discursaram sobre o tema ao longo de uma hora.
Todas as bancadas fizeram discursos, na sua maioria escritos, optando por não colocar perguntas aos deputados que intervieram, as réplicas, no jargão parlamentar.
E os argumentos andaram entre a legitimidade (ou falta dela) para os deputados decidirem numa matéria que, por exemplo, não estava no programa eleitoral do partido que ganhou as legislativas, o PS, e a defesa de dar a palavra "ao país e aos portugueses", e as críticas à pergunta proposta: "Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível em lei penal em quaisquer circunstâncias?".
Do PSD, onde houve liberdade de voto na votação, saíram dois discursos, um a favor e outro contra, a exemplo do que já aconteceu em fevereiro, no debate dos cinco projetos de lei pela despenalização, sob condições, da morte medicamente assistida, ou eutanásia.
Pelo "não", a social-democrata Mónica Quintela reconheceu que esta é uma "questão complexa", mas em que a Assembleia da República tem total legitimidade democrática" para decidir. Devem ser, disse, os deputados "a decidir esta matéria, desde logo porque os direitos, liberdades e garantias não são referendáveis e o parlamento é a sede própria para legislar sobre direitos fundamentais".
Numa defesa do 'sim', Paulo Moniz admitiu "a inquestionável legitimidade" do parlamento em legislar, mas também disse que quando "95.287 pessoas assinaram a petição" a favor de um referendo "muito mal vai uma democracia onde se fecha uma matéria desta importância e natureza dentro da Assembleia da República". "Não devemos temer a democracia na forma de participação popular", pediu.
Pelo PS, outro partido com liberdade de voto, a primeira a falar foi Isabel Moreira, fez a defesa do 'não' ao referendo e pelo direito de ser o parlamento a decidir. "O dever de legislar sobre uma matéria complexa, que não é simples, de sim ou não, que não é preto e branco, que nos convoca a operar ponderações serenas entre direitos fundamentais: eis o nosso dever, fomos eleitos e eleitas para isso mesmo, a matéria é de direitos fundamentais e de política criminal e os direitos fundamentais, já o devíamos saber, são contramaioritários", disse.
E criticou os que propõem a consulta popular e criticam o Parlamento como "um corredor", vendo nesse tipo de discurso laivos de populismo e concluiu que não decidir numa matéria como esta "é como que uma renúncia ao mandato".
Pelo PCP, que em fevereiro votou contra a eutanásia, o deputado António Filipe evocou a coerência do partido ter sido sempre contra os referendos sobre questões que envolvem "direitos fundamentais" - como, no passado, o aborto - por poderem "ficar sujeitas às contingências, ao maniqueísmo e à simplificação".
Os deputados têm "legitimidade para legislar" e, disse, o PCP, que é contra a eutanásia, recusa "as facilidades" de remeter a decisão para o voto popular e dizer depois que foi "o veredicto do povo": "O PCP pode discordar das decisões tomadas nesta Assembleia e lutar contra elas, mas não questiona a legitimidade desta assembleia para tomar decisões em nome do povo que representa."
O presidente e deputado único da Iniciativa Liberal anunciou no debate de ontem que iria "votar a favor da realização do referendo", ao lado de CDS e Chega. João Cotrim Figueiredo defendeu que não se deve "ignorar a vontade de quase cem mil pessoas de exprimirem a sua opinião", e que isso criaria "uma brecha e uma fraqueza na legislação" sobre a eutanásia que deseja ver aprovada.
A deputada do PAN Bebiana Cunha contrapôs que "este é claramente um tema que não se resolve por referendo" e alegou que esse instrumento, neste caso, "está claramente a ser usado como último reduto de quem quer a todo o custo travar uma matéria de direito tão fundamental e basilar como o alargamento da autonomia e autodeterminação das pessoas".
Bebiana Cunha criticou a formulação da pergunta proposta por esta iniciativa popular, argumentando que "a morte medicamente assistida não é um homicídio e não é um pedido inconsciente destituído de uma profunda reflexão e escolha".
José Manuel Pureza, do BE, considerou que "referendar direitos de todos é pôr esses direitos nas mãos de alguns, e isso é inaceitável", e alegou também que "esta não é uma questão de sim ou não", mas uma matéria complexa que sobre a qual a Assembleia da República "tem a responsabilidade de legislar, ponderando todos os valores e todos os interesses".
"Em nome de uma democracia que se leva a sério, em nome da responsabilidade do parlamento, o BE votará contra esta proposta e empenhar-se-á, como tem feito desde a primeira hora, em que aprovemos uma lei tão prudente quanto determinada no respeito pela livre decisão de cada um sobre o seu fim de vida. É esse o nosso compromisso", acrescentou.
Também José Luís Ferreira, do PEV, manifestou "sérias e fundadas dúvidas e reservas sobre a real motivação dos promotores desta iniciativa popular" e subscreveu a posição de que "há matérias que não são referendáveis, que não devem ser objeto de referendo, desde logo questões que envolvem direitos fundamentais".
"Estamos a falar do direito à vida, que em bom rigor não se restringe apenas ao direito à vida, mas que inclui também o direito a decidir como e quando se quer terminá-lo, se se decidir abreviar a vida, uma vez que não existe o dever ou a obrigação de viver", sustentou.
Com o Chega ausente no debate, o líder parlamentar do CDS assumiu sozinho a defesa da iniciativa de referendo, respondendo a alguns dos argumentos da esquerda e pedindo que não se tenha "medo de ouvir o povo" para evitar "uma precipitação ou um erro".
Telmo Correia contestou a ideia de que está em causa uma matéria que "o cidadão não é suficientemente iluminado para poder compreender" e face ao argumento de que não se referendam direitos, questionou: "Não se referendou duas vezes o aborto? Só agora é que não se pode referendar?".