O Tribunal Constitucional (TC) mostrou o 'cartão vermelho' à lei sobre a morte medicamente assistida. Em resposta a um pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República, o TC declarou ontem que o diploma aprovado na Assembleia viola a Constituição da República, mas não fechou totalmente a 'porta'. À Esquerda, a maioria dos partidos do arco da governação promete lutar.
A decisão foi tomada por maioria, de sete juízes contra cinco, sendo que os conselheiros deram razão às dúvidas levantadas por Marcelo Rebelo de Sousa quanto aos "conceitos excessivamente indeterminados, na definição dos requisitos de permissão da despenalização da morte medicamente assistida, e consagra a delegação, pela Assembleia da República, de matéria que lhe competia densificar".
De sublinhar, porém, que o Tribunal Constitucional (TC) não deu razão a uma das dúvidas colocadas pelo Presidente na lei da eutanásia, relativamente ao conceito de "sofrimento intolerável", concordando quanto à imprecisão da "lesão definitiva de gravidade extrema". No caso do "sofrimento intolerável", os juízes admitiram que, "sendo embora indeterminado, é determinável de acordo com as regras próprias da profissão médica".
Apesar do chumbo, o TC deixou pistas para ultrapassar as reservas à definição de "lesão definitiva de gravidade extrema" dando o exemplo das soluções da lei espanhola. No acórdão, é sublinhada a necessidade de uma lei para a despenalização da morte medicamente assistida ter de ser "clara, de modo a permitir um juízo igualmente claro quanto à respetiva legitimidade constitucional", para não pôr em causa a "inviolabilidade da vida humana", consagrada na Constituição.
Segundo os juízes, os partidos podiam ter utilizado "outros conceitos, muito mais comuns na prática (médica ou jurídica), que, sem perder plasticidade, seriam prontamente apreensíveis quando associados ao pressuposto relativo ao sofrimento intolerável".
Apesar de não lhe ter sido pedido pelo Presidente Marcelo, o TC fez também uma avaliação sobre o conceito de eutanásia à luz da Constituição. Na análise, sublinhe-se, prevaleceu o entendimento segundo o qual a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constitui um "obstáculo inultrapassável" para se despenalizar em determinadas condições a antecipação da morte medicamente assistida.
Segundo explicou o presidente do TC, João Caupers, "o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias" e a antecipação da morte a pedido da própria pessoa, não punível, pode ser objeto de uma proposta legislativa desde que o quadro legal e as condições sejam "claras, precisas, antecipáveis e controláveis".
Há quatro juízes do Constitucional, porém, que discordaram expressamente desta posição. Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata-Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro e José Teles Pereira subscreveram uma declaração de voto conjunta e advogaram que existem "matérias que estão fora do alcance de maiorias" sendo esse o caso da legalização da eutanásia, não dispondo o legislador de credencial constitucional para esse efeito".
Depois do chumbo, o veto
Na sequência do chumbo do Tribunal Constitucional, Marcelo anunciou, numa curta nota publicada no site da Presidência da República, que vetou a lei da eutanásia.
A Constituição, recorde-se, determina que, perante uma declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, o diploma deverá ser vetado pelo Presidente da República e devolvido, neste caso, ao Parlamento, que poderá reformulá-lo expurgando o conteúdo julgado inconstitucional ou confirmá-lo por maioria de dois terços.
(Maioria à) Esquerda promete dar 'luta'
Em reação ao anúncio do Tribunal Constitucional, Isabel Moreira, deputada socialista e uma das redatoras do texto final do diploma, sublinhou que a posição do Tribunal deixou claro que "o direito à vida não implica um dever de viver" e garantiu que o PS irá trabalhar numa nova lei.
Garantindo que o partido irá "ler com muita atenção" a posição do TC, a parlamentar reforçou que "para aqueles que diziam que iriam recorrer à fiscalização sucessiva, ficou claríssimo que não há essa incompatibilidade".
O deputado do Bloco de Esquerda José Manuel Pureza defendeu também que o partido vai trabalhar para ir ao encontro das indicações do Tribunal Constitucional sobre o diploma, apontando que "não há uma situação insanável".
"Da nossa parte, o que há é a mesma determinação de sempre de trabalharmos para que o diploma que venha a existir em Portugal seja um diploma rigoroso, prudente, mas também determinado na despenalização [da morte assistida] e vamos continuar a trabalhar para que assim seja, indo ao encontro daquilo que parecem ser as indicações do Tribunal Constitucional", disse o deputado bloquista.
O PCP considerou que será "difícil" encontrar uma solução para despenalizar a morte medicamente assistida compatível com o 'chumbo' do Tribunal Constitucional e assegurou que os comunistas não tomarão qualquer iniciativa de expurgo das inconstitucionalidades.
O porta-voz do PAN, André Silva, vincou que o partido está disponível para "uma proposta conjunta de redação" de um novo diploma da eutanásia que suprima o que foi considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
"O PAN está disponível e vai procurar junto de todos os outros partidos progressistas e deputados que contribuíram para a aprovação do decreto, uma proposta conjunta de redação para precisamente suprimir aquilo que é considerado pelo tribunal uma inconstitucionalidade", afirmou.
Na rede social Twitter, a líder da banca parlamentar do PAN, Inês Sousa Real, também lembrou que o TC, apesar da 'nega', há possibilidade de ultrapassar as inconstitucionalidades. "O Tribunal Constitucional, apesar de ter declarado algumas normas inconstitucionais, abriu a porta a que, uma vez sanadas as questões apontadas no acórdão, se avance com a lei da eutanásia".
O Tribunal Constitucional apesar de ter declarado algumas normas inconstitucionais abriu a porta a que, uma vez sanadas as questões apontadas no acórdão, se avance com a lei da eutanásia: “O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”.
— Inês de Sousa Real (@lnes_Sousa_Real) March 15, 2021
À Direita, o PSD considerou "positiva" a decisão do TC, argumentando que "não fecha a porta" ao aperfeiçoamento da lei, e assegurou que o partido "contribuirá" para tentar expurgar as inconstitucionalidades.
"Esta decisão tem duas partes: tem uma parte em que afirma a possibilidade de um regime de morte medicamente assistida aprovado pelo parlamento, não fecha a porta por causa da garantia da inviolabilidade da vida humana", salientou o dirigente do PSD Paulo Mota Pinto, em declarações à Lusa.
Por parte do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos considerou que, ao chumbar a lei da eutanásia, o Tribunal Constitucional mostrou "um enorme cartão vermelho" à maioria que aprovou a lei no Parlamento.
"Soubemos hoje [segunda-feira] que esta lei viola a Constituição da República Portuguesa, como o CDS sempre alertou, portanto, a maioria parlamentar que aprovou esta lei levou hoje um enorme cartão vermelho do Tribunal Constitucional pela forma leviana com que tratou uma questão tão sensível, que divide profundamente os portugueses e que acarreta uma grande responsabilidade social", afirmou o líder centrista.
O Chega saudou o "chumbo" do Constitucional, reiterando não ser o momento de legislar sobre o assunto. "Nós já tínhamos dito várias vezes, e mantemos, que não era o momento de legislar sobre morte medicamente assistida, sobretudo no momento em que os serviços de saúde lutam para salvar vidas e cuidar da saúde. A lei, tal como foi aprovada, tinha uma demasiada amplitude, que permitia que houvesse excessos e abusos na sua aplicação que podiam significar morte e um cenário muito negro para a sociedade portuguesa", defendeu André Ventura.
Já fora das 'quatro linhas' do Parlamento, o constitucionalista Vital Moreira discordou da posição do Tribunal e sublinhou que "os fundamentalistas da condenação penal da eutanásia não têm razões para festejar".
"Não é a primeira vez que não acho convincente uma decisão de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional, neste caso por esta desconsiderar indevidamente o direito irrenunciável de cada pessoa a não continuar a viver em condições insuportáveis de sofrimento sem esperança", argumentou.
Leia Também: Eutanásia: Acórdão aponta pistas para ultrapassar inconstitucionalidade