No lançamento do livro que reúne textos de vários subscritores do Manifesto dos 50, do qual é uma das fundadoras, e que foi hoje apresentado na Fundação Champalimaud, a que preside, Leonor Beleza falou da Justiça como um setor doente, com uma doença antiga e crónica, que se traduz em "custos e atrasos inaceitáveis" e num direito dos cidadãos à Justiça apenas teórico.
Os problemas na Justiça "assumem um ainda pior grau de dramatismo" se se falar da justiça penal e na sua interferência "com o bom nome, a liberdade e a vida das pessoas", algo que Leonor Beleza disse ser verdade para qualquer cidadão anónimo, que também "arrisca que uma denúncia resulte em anos de perturbação intensa da sua vida, quer haja motivos válidos, quer eles nem sequer existam".
Se os visados forem "cidadãos envolvidos na política, então essas práticas abusivas alcançam um fulgor especial, exploradas para efeitos políticos ou puramente jornalísticos", disse Leonor Beleza, que sem nunca se referir a casos concretos, sublinhou "um potencial imenso" nestes casos para influenciar "a vida social e política".
"Não é possível pensar que justiça e política se movem em patamares diferentes. Entendo que esta é uma questão de enorme delicadeza e que precisa de soluções sensíveis de conciliação das áreas dos protagonistas de um lado e do outro. Conciliar respeitando princípios essenciais de igualdade e de salvaguarda das liberdades não será sempre fácil, mas é demasiado importante para não dever ser ignorado em virtude das óbvias dificuldades que importam", afirmou.
Em defesa do Manifesto, rejeitou que se trate de um grupo organizado para proteger "privilégios e conveniências" dos ataques da Justiça, como alguns criticaram, ou de uma lógica de "polícias contra ladrões", contrapondo que "o que está em causa é, antes, a contraposição entre liberdade e abuso de poder" e que sem uma justiça "equilibrada e independente, os nossos direitos e liberdades estão em perigo".
Também a socialista e impulsionadora do Manifesto dos 50, Maria de Lurdes Rodrigues, que reconheceu dificuldades na concretização de uma reforma da Justiça, alertou que a defesa do Estado de Direito democrático está ameaçada por "pulsões autoritárias, censórias, atentatórias da liberdade e da dignidade humana, contrárias ao espírito da Constituição".
Pulsões, acrescentou, que "existem e são socialmente partilhadas e exibidas" numa altura em que se tornou mais evidente que "os valores do Estado de Direito, das liberdades e garantias dos cidadãos não são partilhados por todos os portugueses".
Para Maria de Lurdes Rodrigues, "tais pulsões são particularmente, ou agudamente graves", assim como "intoleráveis e inconstitucionalmente inadmissíveis" quando prevalecem em instituições do regime democrático criadas com o 25 de Abril ou "que têm o poder de mandar prender, de usar meios e instrumentos de limitação das liberdades e garantias, meios de interferência noutras esferas do poder".
"Quando prevalecem em instituições criadas no regime democrático, mas que fogem ao escrutínio democrático e à prestação de contas exigidos em todas as outras instituições", acrescentou, afirmando que o objetivo do Manifesto é impedir que tais pulsões "se tornem naturais, aceites como normais ou como necessárias".
Já o ex-presidente do Tribunal Constitucional, João Caupers, socorreu-se da figura de animação 'Calimero', conhecida pelos seus frequentes clamores de injustiça, para afirmar que a análise crítica e o debate político precisam de "algo mais substancial" que interpretações subjetivas ou sentimentos individuais e imprecisos de uma ideia de justiça.
Quanto ao livro hoje apresentado, disse que a coletânea de textos dispersos se une em torno de uma "reação a ações ou omissões judiciais ou do Ministério Público que, por demora insuportável, fundamentação insuficiente ou deficiente, legalidade discutível ou sentido controverso colidem com a ideia e o sentimento de justiça dominantes na comunidade, manchando, quantas vezes irremediavelmente, o bom nome e a reputação de cidadãos inocentes".
Coube ainda a Maria de Lurdes Rodrigues ler uma mensagem do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que mesmo ausente não quis deixar passar a oportunidade de recordar que o pacto para a justiça que em 2018 reuniu o setor, mas sem consequência prática, apesar de sucessivos apelos na abertura dos anos judiciais.
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