Joana Amaral Dias, de 42 anos, não é apenas um rosto que associamos à política. Além da política, Joana é psicóloga, professora, cronista e comentadora televisiva. Envolveu-se em movimentos associativos desde a sua adolescência, até surgir o Bloco de Esquerda (BE), partido que achou que "fazia sentido" integrar. Desiludiu-se com a promessa não cumprida do partido e dele saiu. Passou por movimentos como o AGIR e o Juntos Podemos. "Só não muda quem é burro", frisa, em entrevista ao Notícias ao Minuto. Como tal, no plano político, não há portas fechadas.
"As circunstâncias mudam", justifica. Como pessoa inquieta que é, com interesses amplos na vida, Joana Amaral Dias admite que isso pode fazer com que se disperse. Não sabe o que é "viver na zona de conforto" e, garante, está sempre preparada para um novo desafio, como o que agora abraça como candidata à Câmara de Lisboa pelo Nós, Cidadãos. Joana Amaral Dias não se acanha ao criticar os "interesses instalados" do poder central, do qual o seu antigo partido, o Bloco de Esquerda, tem estado mais próximo à boleia da 'Geringonça'.
O BE, adjetiva, está agora "mais penteadinho". Joana Amaral Dias aponta ainda o dedo ao SIRESP, uma "máquina assassina", um sistema que "falha sempre" e que é tão somente fruto dos "interesses instalados". Nesta entrevista, a psicóloga aborda ainda o lado racista, xenófobo e machista de Portugal, em pleno século XXI. Uma faceta lusa que "muito a entristece".
O Bloco de Esquerda é hoje um Bloco muito diferente daquele que deixou em 2014?
Sim, é mais penteadinho.
O Bloco de Esquerda é hoje mais 'penteadinho', mais agarrado ao poderMais penteadinho?
É mais certinho, está completamente dentro do sistema. Franciso Louçã está no Banco de Portugal e usa gravata. [risos] Claro que isso é um bocado irrelevante, estou só a usar como símbolo. Sim, é um Bloco mais conservador, mais agarrado ao poder, aos cargos. É um Bloco que é uma máquina, que nunca cumpriu a sua promessa inicial de inserção de movimento dos movimentos, de ligação aos movimentos associativos às preocupações do poder local, por isso mesmo também não tem representação no poder local, vamos ver nestas autárquicas, não tem câmaras. Continua a não ter essa parte orgânica, que nunca teve e que sempre me deixou descontente, e acrescenta-lhe uma nova camada que é ser institucionalista.
É daquelas vozes que considera que o Bloco tem, digamos, muito suporte do lado da comunicação social?
Ai isso tem. Toda a 'Geringonça', de um modo geral, tem tido um estado de graça que durou até aos incêndios. António Costa gozou de um estado de graça bastante alargado, agora vamos ver como vai ser. Os incêndios começaram no início do verão e abriram uma época de um ciclo que só se vai conhecer quando se ficarem a saber os resultados das autárquicas.
O SIRESP, em vez de ser um sistema de emergência, é uma máquina assassina. São os interesses instalados, o bloco central a funcionar
Como é que acompanhou todo o drama dos incêndios deste ano, irremediavelmente marcado pela tragédia de Pedrógão?
Vi com grande desgosto. O meu segundo livro, de 2011, chama-se 'Portugal a arder'. É uma das coisas que sempre me afligiu no meu país é como é que todos os anos, desde que me lembro quase de andar de fraldas, dizem que o problema dos incêndios vai ser resolvido. Sabemos que não podemos plantar eucaliptos, a desertificação do interior, e que temos que limpar as matas, e que não podemos plantar árvores tão próximas da berma e que precisamos de um corpo de bombeiros profissional. Conheço esta lengalenga de cor.
Sei isto de cor porque oiço isto desde miúda, desde que me lembro de ver televisão, todos os anos arde a área maior da Europa. O nosso clima não é assim tão diferente do grego, do espanhol ou do italiano. É como a habitação, todos os anos se fala e a seguir vêm as primeiras chuvas e toda a gente se esquece. É como a cigarra de La Fontaine, chega o inverno e toda a gente já se esqueceu dos incêndios, 'para quê estar agora a falar de tragédias', e depois chega novamente o verão e volta tudo a arder. Isto tem responsáveis, chamam-se políticos governantes, que continuam a fazer absolutamente nada e a deixar com que o nosso país chegue a este estado, este ano matando, ceifando vidas. Isto não é uma brincadeira, morreram dezenas de pessoas este ano. Morrem sempre, todos os anos, mas este ano foram 64.
Depois há o outro lado, o SIRESP que é filho do bloco central. Foi contratualizado ainda no governo de Santana Lopes, a uma semana das eleições o Bagão Félix assinou aquilo, depois passou para o governo de Sócrates e quem ultimou os detalhes e fez a última rubrica foi o Costa. É um sistema de milhões que nunca funcionou. Tem falhado sempre. É certo como a chuva e depois acontecem estas tragédias. É o filho do bloco central, é um sistema que envolveu a PT e o BPN. A mim faz-me, pelo menos, soar uma campainha de alarme. Ricardo Salgado e Dias Loureiro no mesmo sítio? Só podia dar mau resultado. E deu. Chama-se SIRESP que, em vez de ser um sistema de emergência, é uma máquina assassina. São os tais interesses instalados, o bloco central a funcionar.
Costa decidiu empurrar com a barriga o apuramento cabal de responsabilidades para depois das autárquicas para ver se as chuvas de outono lavam a memória das pessoasE como avalia a forma como o Governo lidou com a tragédia de Pedrógão?
O Governo teve uma gestão política muito fraca. Já o ano passado esta ministra da Administração Interna [Constança Urbano de Sousa] tinha feito uma péssima gestão política dos incêndios, estava o país a arder, e a ministra estava numa festa na discoteca Bliss, no Algarve. Eu também estava nessa festa, mas eu não era ministra. Isso até foi notícia, o facto de ela estar nessa festa. Não soube lidar com os acontecimentos.
Com Pedrógão, a coisa ficou muito complicada, a gestão foi errada, aconteceram coisas completamente disparatadas e inexplicáveis como as viaturas de emergência não estarem disponíveis, os corpos terem sido transportados em arcas frigoríficas alugadas a cadeias de hipermercados porque o veículo, comprado para o efeito, não estava disponível. A história do SIRESP. A história da GNR, que encaminha os cidadãos para uma estrada que se revelou ser a estrada da morte. A gestão operacional, e depois a gestão política em cima disto, foi absolutamente catastrófica. Honra seja feita à ala Esquerda que propôs que o SIRESP fosse nacionalizado. O que é que o Costa fez? Não permitiu. Depois disto, não havia sombra de dúvida de que era para acabar com esse sistema. Eu sei que António Costa decidiu empurrar com a barriga o apuramento cabal de responsabilidades para depois das eleições autárquicas para ver se as chuvas de outono lavam a memória das pessoas. Mas eu cá estarei, na medida do possível, para relembrar.
Se estivesse em qualquer dos lados desta 'Geringonça' o que faria diferente?
[Risos] Não me imagino nesse papel. Não tenho nada contra existirem acordos de incidência parlamentar. Agora, aquilo que é a essência da democracia... assim não é possível. Têm acontecido inúmeras situações em que a oposição tem sido muito débil. Nisto dos incêndios, por exemplo. Tem sido uma oposição muito apagadinha. Onde é que vão os tempos dos estardalhaços que o Bloco de Esquerda conseguia fazer? Isso já foi, desapareceu. O que é que eu faria diferente? Não concordo com esta solução. No início, quando ela [a 'Geringonça'] surgiu, em outubro de 2015, apesar de não ser fã, achei que era importante dar o benefício da dúvida. Não somos detentores da verdade e acho que devemos, também, ter a oportunidade de experimentar e descobrir, isso é muito importante na vida. Mas, de facto, constata-se que não funciona. É claro que nalgumas coisas funciona. É verdade que se deixou de despejar tantas famílias das suas casas. Em algumas coisas, trouxe benefícios. Mas acho que o Bloco e o PCP eram instrumentos de pressão sobre a parte neo-liberal do PS muito mais intensos e eficazes quando não andavam de mão dada com António Costa.
A Direita tem alguma razão. Não tem é energia, nem coerência, para fazer críticasConcorda com as críticas que a Direita faz ao Governo de falta de transparência?
Acho que a Direita tem alguma razão. Não tem é energia, nem coerência, para fazer essas críticas. Para já, não tem autoridade moral. Olhamos para a Direita a falar de falta de transparência [risos]... Não tem autoridade moral e não tem o 'ethos'. Pedro Passos Coelho é hoje uma figura muito pouco credível no país.
Portugal é um país profundamente racistaTem estado na ordem do dia o discurso racista e xenófobo que a Direita, acusa a Esquerda, tem imprimido nas suas intervenções, muito por causa do discurso de Passos Coelho no Pontal, a propósito da lei da imigração. São críticas que podem ser feitas ao líder do PSD?
Não tenho assistido, pelo menos, a um discurso integrativo. Portugal é um país profundamente racista, não aquele racismo do século XVIII, mas ainda profundamente racista. Tão racista que não se vê pessoas não brancas nos centros de decisão e poder. É um país profundamente racista e xenófobo e há muito por fazer neste domínio. Com uma população marcada pelo retorno das caravelas, as vagas migratórias que vieram de Cabo Verde, da Guiné, Angola, São Tomé, comunidades que ficavam semi guetizadas, temos o caso da polícia de Alfragide - situações que mostram que esse racismo existe - como é que nenhum governo fez uma campanha séria e ativa contra o racismo em Portugal?
É como se não existisse?
Mas existe. Todos nós já ouvimos comentários racistas ao nosso lado, no restaurante, nos transportes públicos, nas creches. Ele existe e há um trabalho pedagógico a fazer em relação a e contra isso. Tenho visto algumas campanhas contra a violência doméstica, com imagens e com debates, porque é que não há isso no que toca ao racismo? Não percebo.
Candidaturas como a de André Ventura, em Loures, podem vingar no país?
Claro. Em casa que não há pão todos ralham e ninguém tem razão. Quando há populações relativamente esquecidas e empobrecidas, é mais fácil introduzir o elemento do ódio. Não quer dizer que o concelho de Loures seja todo assim, mas é óbvio que, se há comunidades que não estão bem integradas e que não são bem aceites, é muito fácil lançar o ódio. Se há coisa poderosa na mente humana é o medo. É evidente. É um caminho muito perigoso, o de ganhar eleições usando o medo, é um caminho muito perigoso e muito pouco recomendável. Se a Direita em Portugal pensa que se vai reorganizar, depois do estrondo que levou com o nascimento da 'Geringonça', através da sua 'trumpificação', acho que vai por um caminho muito complicado e nalgumas coisas irreversível.
Passos Coelho mantém o apoio político a André Ventura. Quererá o líder do PSD ver como funciona este discurso em Loures para depois aplicá-lo a nível nacional?
Acho que sim. As sondagens não são desfavoráveis [a André Ventura]. Não lhe retira apoio por causa disso. Mais do que ser uma espécie de laboratório, há o lado da 'real politik', que é o lado das sondagens. Se André Ventura estiver bem colocado nas sondagens, Pedro Passos Coelho que vai ter uma pesada derrota nas autárquicas, é óbvio que isso conta. Em Lisboa, onde é que está o PSD? Não está. No Porto? Não está. E por aí fora. Avizinha-se uma grande derrota do PSD. O que não quer dizer que o PS tenha uma grande vitória, atenção.
Soares só o perdemos no ano passado. Teria feito perfeitamente, pelo menos, um mandato
Voltando novamente a si. Tem um percurso político curioso. Foi deputada do BE, mandatária da juventude na campanha de Mário Soares, saiu do Bloco, e depois integrou movimentos como o Agir, o Juntos Podemos, e agora o Nós, Cidadãos. Movem-na mais as causas do que os partidos?
Os partidos não são uma coisa que me diga muito. A ideia dos escuteiros, de alinharmos todos pelo mesmo diapasão, não me diz assim muito. Acho que temos todos de contribuir para o bem comum e pugnar pelo ganho colectivo, mas sem perder o pensamento crítico. É um percurso onde procuro defender aquilo que eu acho que é justo, que está certo, que acho que é digno, que é necessário. É isso que tenho tentado fazer. Umas vezes as pessoas dizem que sou muito de Esquerda, quando estive com o Soares diziam que já me estava a aburguesar. Tenho feito aquilo que acho que são as minhas convicções. Quando o Bloco surgiu, achei que fazia sentido o projeto do Bloco. Na candidatura de Mário Soares, achei que fazia sentido para travar a escalada de Cavaco Silva. Confirmou-se, Cavaco Silva foi um péssimo Presidente da República, e Soares só o perdemos no ano passado. Teria feito perfeitamente, pelo menos, um mandato. Depois achei que deveria voltar a uma coisa mais orgânica, mais ligada aos movimentos, assistindo à excessiva partidarização da vida democrática portuguesa e, nesse sentido, aqui estou.
O PS fez-lhe, a dada altura, um convite. Não lhe passou pela cabeça aceitar?
Não. O PS fez-me um convite para ser deputada e/ou ocupar um cargo público e isso não fazia sentido. Para já, aconteceu nos anos da gestão do engenheiro Sócrates. Tenho muitas críticas ao PS, mas se há período em que sou particularmente crítica é o de Sócrates, de que Fernando Medina e António Costa também fizeram parte. Relembro que Fernando Medina foi secretário de Estado desse governo. Esse período foi para mim um dos períodos mais negros da vida do PS em Portugal. Há coisas do PS que eu gosto. Quem acabou com as barracas foi o João Soares e o Jorge Sampaio, que lutaram acesamente por essa causa. Há coisas positivas, foi o PS, com a ajuda do PSD mas sobretudo o PS, que construiu o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública. Não estou aqui numa coisa maniqueísta, dos índios e dos cowboys, dos bons e dos maus. Mas se houve período negro, para mim, foi o do engenheiro Sócrates. E ainda vai correr muita tinta sobre as PT's, os Salgados, os SIRESP's. Se havia altura em que isso não fazia sentido era nessa altura. Recusei liminarmente.
Ser mulher é lixado. Em qualquer ramo em Portugal. Há coisas que aceitamos que se digam das mulheres, que não aceitamos que se digam já de pessoas não brancas
E ser mulher em Portugal?
Ser mulher é lixado. Em qualquer ramo em Portugal. Só para dar uns exemplos. Porque é que em Portugal, até agora, uma mulher tinha de esperar 300 dias para voltar a casar e os homens 180? As mulheres são mais impulsivas, é? Precisam de mais tempo? Somos estúpidas ou quê? A questão dos livros, da Porto Editora. Outro exemplo, na lei portuguesa, agora, os filhos, meios irmãos - detesto essa palavra - se forem do pai são irmãos, se forem da mãe são meio-irmãos. Biologicamente até devia ser ao contrário. Estou a dar estes exemplos para não dar aqueles tradicionais: ganhamos menos 20% do que os homens para as mesmas funções, fazemos mais sete horas de trabalho doméstico semanal. Podia dar milhares de exemplos, dei estes porque estão na lei. São leis ofensivas.
Ainda há muito por fazer neste campo?
Muito, muito. Falávamos que Portugal é um país muito racista, e é. Entristece-me muito sermos um país racista, sermos racistas e termos essa coisa tão básica contra o diferente, o outro. Mas mesmo assim há coisas que nós aceitamos que se digam das mulheres, que não aceitamos que se digam já de pessoas não brancas.
Por exemplo?
Agora estão muito indignados por causa dos cadernos da Porto Editora. Acho bem, acho bem que se lute. Mas olhem para a publicidade. Nas minhas aulas, quando se fala do sexismo e do machismo, e o machismo é tão difícil desaprender como a língua materna, os alunos e as alunas dizem que não existe, que isso era antigamente. Propus-lhes que, no intervalo do telejornal, vissem os anúncios para identificarem em quantos deles havia mulheres, e quantos desses é que a mulher não aparecia representada de duas maneiras: ou como objeto sexual ou no prolongamento da esfera doméstica. Ou seja, a mulher como empregada doméstica, como dona de casa, expressos em anúncios de detergentes, anúncios em que surgem com os filhos. Ou então como objecto sexual, a boazona que vende carros e férias de sonho. Quantos anúncios é que há na televisão em que as mulheres não estão colocadas nestes estereótipos? Na aula seguinte já tinham outra opinião. Encontraram um ou zero anúncios que não correspondessem a esse cliché. Este é um exemplo. Acha que era admissível representar só pessoas não caucasianas como objeto sexual? Acho que não.
Talvez esteja tão enraizado que nem vemos.
Ouvi dizer que há uma Comissão para Igualdade de Género. Talvez se pudesse manifestar também em relação à publicidade porque as indústrias culturais de massa têm tanto ou mais poder que um livro escolar, educam ou deseducam, moldam a cabeça das crianças, dos adultos. Eu própria, como mãe, já fiz muitas queixas sobre livros escolares com referências sexistas, racistas, mas se calhar também podiam dar importância a outras coisas com muita relevância.
Na disputa pelo poder, há uma triagem pela negativa, vão dar à política muitos psicopatas, muitas pessoas perversas. Muito lixoMas ser mulher especificamente na política, onde os homens ainda estão em grande maioria. Como é?
É uma tragédia. Não sou pessoa de me vitimizar, não tenho personalidade para isso. Mas temos de lutar duas, três vezes mais, porque temos que ouvir comentários sobre a nossa indumentária, se estamos mal vestidas é porque estamos mal vestidas, se estamos bem vestidas é porque estamos bem vestidas, somos presas por ter cão e por não ter, se temos o cabelo comprido, se usamos maquilhagem, é porque usamos e não devíamos usar. Há sempre uma observação extra a fazer que não tem nada a ver com a qualidade do nosso trabalho. Uma mulher, no meu caso é por demais evidente, se é mais aguerrida no debate, mais incisiva, é considerada muito agressiva, muito masculina. Mas se for um homem mais vivo, já é um guerreiro. Não faz sentido nenhum. Temos ainda muito que fazer nesse capítulo.
Mas nunca foi uma coisa que me incomodasse particularmente na política. Porque a política é toda ela uma vida particularmente áspera. Há uma triagem negativa das pessoas que vão para a política. A natureza humana tem coisas boas e coisas más, temos como primos os primatas, mas o genocídio não se verifica nos macacos, só nos seres humanos. Isto para dizer que, na política, na disputa pelo poder, há uma triagem pela negativa, vão dar à política muitos psicopatas, muitas pessoas perversas. A atração pelo poder puxa pessoas normalíssimas, claro, mas também puxa muito lixo. A vida política é por natureza áspera, essa camada do machismo é só mais uma.
Foi parar muito lixo à nossa política?
Foi lá parar muito lixo, nem queira saber [risos].
Onde é que está concentrada a maior parte desse lixo?
Está por todo o lado. Do lado dos grandes partidos, dos pequenos. Há muita gente mal formada, muita gente doente. Enfim, faz parte. Eu gosto da política, faço política com gosto, gosto muito de debater ideias, gosto muito de encontrar soluções para problemas. Gosto da vida política mesmo com esta parte mais torcida, com mais mofo.
Tinha direito a estar grávida e a fazer campanha nos termos que entendesse. Sabia as consequências que ia ter, claro. Sabia que me iam ver nua sem eu estar nuaQuando posou para revista Cristina, em 2015, em ano de legislativas, foi alvo de muitas críticas. Como lidou com o assunto?
Ainda hoje acho curioso quando me dizem "quando posaste nua". Mas onde é que me viram nua? Não estava nua. O que é viam naquela revista? A minha cara, a minha barriga e o terço superior das minhas pernas. Não viram o rabo, não viram os seios, não viram as zonas genitais. Imaginaram. Mas mesmo que estivesse nua, não se via. A história é muito simples de gostar. Fiquei grávida, foi logo à primeira vez, estava à espera que demorasse um bocadinho mais. Coincidiu com a campanha e eu achei que era de bom tom, honesto, comunicar aos meus eleitores que iam votar em mim, que estava grávida. Já estava de três meses em agosto, ia-se notar. E quando voltei das curtas férias que tive, achei que devia marcar uma conferência de imprensa, explicar às pessoas que estava grávida, que não podia fazer tantas viagens. Tive um pequeno problema, no início da gravidez. Eram gémeos, perdemos um. A minha ginecologista recomendou alguma prudência, nos primeiros quatro, cinco meses, tive de ter algum cuidado até estabilizar. Ia haver uma altura em que eu não ia poder estar na Assembleia, caso fosse eleita. Achei que devia dizer que era o Nuno Ramos de Almeida a fazer esse papel. Achei isto normalíssimo. Há lá facto mais normal na vida do que uma mulher estar grávida? Qual não foi o meu espanto quando no dia a seguir vem nas notícias - antes da revista Cristina - críticas a dizer que eu estava a usar a minha gravidez.
Isso sinceramente ainda hoje me incomoda. Porque eu sei o que é que as mulheres grávidas sofrem em Portugal. As grávidas e as que estão em idade fértil. São despedidas. Chegam às entrevistas e perguntam-lhes se têm filhos, se pretendem engravidar, são despedidas quando estão grávidas, quando regressam da licença de gravidez, têm a sua secretária limpinha e um 'boa dia e um queijo e vai para casa', quando estão a amamentar em horário laboral são obrigadas a espremer as mamas para comprovar que estão a amamentar, como o que aconteceu a enfermeiras em 2015 no hospital São João, e como acontece em muitas fábricas.
Sei o que é que as mulheres sofrem para ter filhos em Portugal, e sei o que é que a classe política dominante faz em relação a isso. À segunda, quarta e sexta dizem que não temos crianças em Portugal, à terça, quinta e sábado acontecem todas aquelas coisas que enumerei. Isso tocou-me num sítio muito especial, que é a minha identidade como mulher, como mãe, e as inúmeros histórias que tenho ouvido quer aqui no consultório quer das minhas amigas de mulheres que são claramente prejudicadas quando querem ter filhos. E foi aí que decidi fazer a capa da revista como uma afirmação da minha gravidez, tinha direito a estar grávida e a fazer campanha nos termos que entendesse. Sabia as consequências que ia ter, claro. Sabia que me iam ver nua sem eu estar nua. Acho isso uma gracinha. [risos]. Teve muito impacto, não me trouxe votos, mas também não era para me trazer votos, porque eu não sou o Fernando Medina, não faço tudo para ter votos.
As circunstâncias mudam e acho que só os burros se mantêm no mesmo sítioNo fundo, quem é a Joana Amaral Dias?
Defino-me como uma pessoa inquieta, para o bom e para o mau. Gosto de fazer várias coisas, gosto de descobrir, de experimentar, de aprender, que me ensinem coisas ou que eu descubra coisas, de enfim, de sair - daquilo que agora está muito na moda dizer - da zona de conforto. Não sei o que isso é. Não gosto de zonas de conforto, tenho assim um ar de faquir, gosto de estar desconfortável. Acho que isso me define bastante, para o bom e para o mau. O lado bom é que produzo bastantes coisas, faço muitas coisas diferentes, sou muito ativa. Tem o lado mau é que às vezes sou um bocado irritante, pispirreta [risos]. Acho que isso me caracteriza bastante. Sou uma pessoa que gosta muito de viver, que gosta muito da vida. Tenho imensa pena de que ela seja finita. Gosto muito dos meus amigos, tenho uma família e uns filhos espetaculares, gosto de comer, dançar, ir à praia. Às vezes acho que a vida é tão ampla e interessante que, no meu caso, há o risco de uma pessoa se dispersar. E vou assim, andando, sempre à espera de outro desafio.
E é arriscado prever onde vai estar a Joana, na política, daqui a 10 anos?
Não faço a menor ideia. Venho dos movimentos associativos, desde a minha adolescência até surgir o Bloco. Isso fazia-me sentido na altura, depois passou a fazer-me sentido estar integrada numa estrutura mais partidária, agora fez-me sentido voltar a isso. Não sei como vai ser. As circunstâncias mudam e acho que só os burros se mantêm no mesmo sítio.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.