A opinião de Gonçalo Almeida: Desporto, esquecido ou ignorado?

O espaço de opinião de Gonçalo Almeida no Desporto ao Minuto, no qual o ex-advogado FIFA analisa os temas que marcam a atualidade do ponto de vista do direito desportivo.

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Gonçalo Almeida
26/03/2021 15:31 ‧ 26/03/2021 por Gonçalo Almeida

Desporto

Gonçalo Almeida

Antes de me aprofundar na temática desta crónica, faço desde já uma ressalva e, de certa forma, um mea culpa, por me atrever a aventurar por matérias que extravasam claramente o foro jurídico e, não menos relevante para este efeito, as minhas próprias competências académicas ou profissionais. Contudo, a tremenda importância do Desporto para a Sociedade e o carácter cada vez mais urgente de que se reveste uma profunda alteração de paradigma em termos de atenção e investimento no sector, pesaram de forma determinante nesta minha decisão algo arrojada. 

Ora, sob pena de me equivocar aqui ou ali nestas coisas dos “números”, a que os de “letras” tão avessos são, eis que a retração económica desencadeada pela pandemia da Covid-19 levou a que o Conselho Europeu criasse um plano de recuperação financeira denominado de “Next Generation EU” e no qual se enquadra o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) desenvolvido pelo Governo Português. Tal plano nacional tem o fito de disponibilizar cerca de 14 mil milhões de Euros sob a forma de subvenções até 2026, a que acresce uma linha de financiamento de 2,7 mil milhões de Euros, isto num contexto global de injeção de 50 mil milhões de Euros na economia Portuguesa, até 2029, visando, claro está, a sua recuperação.

Sucede que, pasme-se o leitor, no referido plano de dimensão nacional e que se pretende de efetiva recuperação e dinamização económica global, o Desporto não tem, aparentemente, qualquer lugar. Com efeito, pese embora considerar-me um leigo nestas matérias, não me foi possível vislumbrar, no referido PRR, quaisquer medidas de apoio direto ao Desporto, em qualquer uma das suas vertentes, seja ao nível do lazer ou da competição, amadora ou profissional, em modalidades coletivas ou individuais, em pavilhão ou ao ar livre, em terra batida, nos céus ou no mar. Enfim, seja em que enquadramento for, nada consta relativamente ao Desporto. E isto numa altura em que as diversas federações desportivas nacionais (e internacionais, diga-se de passagem) alertam, de forma verdadeira e realisticamente desesperada, para as gritantes dificuldades transversalmente sentidas pela área e para a inerente urgência quanto à adoção de politicas concretas capazes de por cobro ou atenuar o atual flagelo em torno do Desporto e da prática desportiva, na senda do que tem vindo a ser feito noutros Estados-Membros da UE, inclusivamente, em perfeita consonância com o alerta dado pela própria União Europeia a este preciso respeito. A esta mais que estranha realidade, acresce a ausência de medidas de reforço financeiro no âmbito do Orçamento de Estado 2021, aprovado pela Lei 75-B/2020, de 31 de dezembro.

Infelizmente, se o Desporto sempre foi uma espécie de parente pobre, nomeadamente atendendo à inexplicável e permanente escassez de investimento neste sector, a verdade é que a sua enorme relevância em termos económicos, sociais, associativos, educativos, de lazer e de saúde, entre outros, foi seriamente ferida pela atual pandemia, a qual veio expor e agravar de sobremaneira as permanentes fragilidades de uma área prioritária que vive em “crónico subfinanciamento”. A título meramente exemplificativo e no âmbito da referida perspetiva económica, realço o estudo divulgado pela Comissão Europeia em Novembro de 2020, que versa sobre as consequências económicas da COVID-19 no Desporto e no âmbito dos seus Estados-Membros, concluindo que Portugal sofrerá uma quebra avaliada em 371 milhões de Euros em termos de contributo deste setor para o PIB nacional.

Um outro estudo, publicado recentemente pela UEFA e designado de “UEFA Grow Social Return on Investement”, que permite aos Governos e Associações Nacionais avaliar o impacto do futebol na Sociedade, nomeadamente ao nível da economia e da saúde, conclui que esta modalidade tem, em Portugal, um impacto avaliado em 1,67 mil milhões de Euros anuais. Contribuem para esta estatística os mais de 220 mil atletas federados, bem como os demais voluntários, tendo por sua vez um impacto de 944.205 milhões de Euros na economia Portuguesa. No que toca à saúde, o estudo indica que o futebol poupou aos cofres Portugueses um valor superior a 360 milhões de Euros nas vertentes do bem-estar, saúde mental, cancro, diabetes e doenças cardiovasculares, entre outras.   

Um outro dado relevante, senão mesmo crucial, resulta de uma análise aos efeitos da atual pandemia no Desporto, nomeadamente sobre a queda vertiginosa de inscrições nas mais variadas federações desportivas. Ao nível do “desporto-rei”, a Federação Portuguesa de Futebol alertou para uma queda extremamente significativa de 75% no número de atletas federados, ao passo que as Federações de Andebol, Hóquei, Voleibol e Basquetebol, apresentaram quebras de 54%, 50%, 46% e 42%, respetivamente, já para não falar em todos os demais intervenientes, como é o mero exemplo dos treinadores. Conclui-se, portanto, de forma lógica e irrefutável, que milhares de jovens se encontram privados da prática desportiva ou da mera atividade física, numa altura crucial para o seu crescimento e desenvolvimento enquanto atletas e pessoas. 

Nesse contexto, entre diversas outras entidades, a Confederação do Desporto de Portugal, o Comité Olímpico de Portugal e o Comité Paralímpico de Portugal, assim como a Federação Portuguesa de Futebol, têm publicamente reclamado, de forma bastante audível, a necessidade efetiva de apoios concretos ao Desporto por parte do Estado. Aliás, na esmagadora maioria dos casos e porque o Desporto não se resume à competição, nem tão pouco ao ecletismo dos clubes desportivos com maior peso nacional, sucede que ao decréscimo abrupto da receita resultante da referida diminuição significativa de inscrições federativas e de praticantes de um modo geral, acresce a ausência total de receitas de bilheteira ou de receitas resultantes da exploração de bares/restaurantes ou mesmo do jogo do bingo, assim como a redução muito significativa das receitas de merchandising, o corte sofrido na sequência da renegociação ou simples incumprimento dos contratos de patrocínio e de publicidade, a redução natural das receitas de quotização em virtude do flagelo do desemprego ou da simples incerteza destes tempos, entre muitas outras realidades, praticamente todas elas pautadas pela negativa. Tudo isto sem esquecer a questão igualmente vital em torno da manutenção dos postos de trabalho inerentes ao sector, da respetiva perda de capacidade contributiva ou do consequente incumprimento de obrigações, problemáticas que caminham em paralelo com a crise sofrida por qualquer outro sector de atividade que possua, tal como o Desporto, enorme dimensão.

Enfim, um cenário devastador e verdadeiramente drástico que asfixia e condiciona anormalmente o papel determinante que assumem os clubes e as associações na Sociedade e que, inclusivamente, em diversos casos, já conduziu ao seu inevitável encerramento. Assim, numa altura em que se pretende um progressivo desconfinamento, a par de um desejável retorno da atividade física, toda a base associativa desportiva nacional enfrenta sérias dificuldades de subsistência. 

Nesse malfadado contexto, no passado dia 12 de Março, o Exmo. Sr. Ministro da Educação, Dr. Tiago Brandão Rodrigues, anunciou um apoio de 65 milhões de Euros ao setor do Desporto. Tal iniciativa será aparentemente constituída por um Fundo de Apoio para a Recuperação da Atividade Física e Desportiva, com uma dotação no montante de 35 milhões de Euros, assim como por uma linha de crédito denominada de “Federações + Desportivas” no valor de 30 milhões de Euros. Quanto ao Fundo de Apoio para a Recuperação da Atividade Física e Desportiva, concedido a fundo perdido, contará com três vertentes: 1) Reativar Desporto, com uma dotação no montante de 30 milhões de Euros, a ser distribuída pelas federações desportivas aos clubes e associações desportivas sem fins lucrativos, como incentivo à retoma da atividade federada; 2) Reforço de 3 milhões de Euros para o Programa de Reabilitação de Instalações Desportivas (PRID), que contará agora com um valor total de 5 Milhões de Euros; e por fim, 3) Um reforço de 2 milhões de Euros para o Programa Nacional de Desporto para Todos (PNDpT), como estímulo à atividade física não federada. Já no que diz respeito à referida linha de crédito “Federações + Desportivas”, cumpre dizer que esta verba será disponibilizada pelo Banco Português de Fomento a todas as federações desportivas, as quais, darão como garantia os respetivos Contratos Programa dos próximos anos. Por último, espera-se ainda que o Desporto marque presença de destaque no Programa Portugal 2030, tal como assinalou o Exmo. Sr. Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Dr. João Paulo Rebelo, contrariamente ao que sucedeu com o Programa Portugal 2020, pese embora os respetivos moldes ainda não serem do conhecimento público.

Sucede que ao atual pesadelo com que se deparam os clubes desportivos, associações, federações e todo o sector de forma praticamente generalizada, a referida iniciativa governamental, ainda que bem-vinda – percebendo-se o esforço, particularmente atendendo à dimensão nacional e internacional da crise e às restrições financeiras a que os sucessivos Governos da República já se “acostumaram” – pouco ou nada vem adiantar em termos de soluções efetivas para resolver ou mitigar os efeitos desta triste atualidade. A bem da verdade, julgo tratar-se de uma iniciativa politicamente correta e seguramente repleta de boas intenções, mas que na sua essência e tal como se diz na gíria, será mais para “Inglês ver”. É que não só a verba global em apreço é manifestamente insuficiente, roçando o ridículo, mas também porque, tal como é do conhecimento generalizado, existe uma recorrente e transversal burocracia inerente a candidaturas a fundos Estatais e uma consequente insustentável demora no acesso efetivo ao dinheiro, já para não me referir a limitações normalmente impostas em termos de condições de acesso às linhas de crédito. 

Enfim, a situação pandémica que Portugal e o mundo testemunham há mais de um ano e de forma praticamente ininterrupta, causou graves danos generalizados, a que o Desporto inevitavelmente não escapou, tendo sido, aliás, um dos sectores indiscutivelmente mais afetado. A questão (ou uma delas), em termos práticos, consiste em saber se os Governos têm a verdadeira noção da importância de que o Desporto se reveste no seu todo para a Sociedade ou se, tendo esse perfeito conhecimento, optam simplesmente por ignorá-lo?

Salvo melhor opinião, uma coisa parece-me certa: O planeamento e definição de uma estratégia a longo prazo, devidamente estruturada e abrangente para o Desporto em Portugal, torna-se determinante e cada vez mais urgente para uma recuperação rápida do setor e um futuro sorridente da Sociedade. Porém, pelo andar da carruagem, o caminho parece-me, de forma verdadeiramente inexplicável, demasiado longo e penoso.

Leia Também: Caso Palhinha: "A decisão do TAD abriu uma autêntica caixa de pandora"

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