"Isto é-me dito pelos próprios doentes, não é uma teoria que eu esteja a devolver. Faltou o contacto com os outros, a leitura que se faz do que os outros pensam, a aproximação dos outros, a experiência vivida com os outros, porque a vida é isto, é relação, não é solitária", disse à Lusa a psiquiatra especialista em doenças do comportamento alimentar.
A responsável, que lidera o projeto RIPA - Resposta Integrada para as Perturbações do Comportamento Alimentar, explica que, com o confinamento durante a pandemia, para quem já tinha esta vulnerabilidade de não se sentir bem com o corpo, "a situação piorou".
"Houve uma necessidade que as pessoas sentiram de tentar perceber ou modificar alguma coisa no seu corpo para quando voltassem à vida não se sentirem perdidas", explicou.
Segundo a psiquiatra, as pessoas com perturbações do comportamento alimentar têm "uma grande insegurança em relação ao que os outros pensam delas e também ao modo como elas se sentem na relação e articulação com os outros".
"Foi para esses que isto piorou", afirmou a especialista, contando que aumentaram também as situações de compulsão alimentar.
A anorexia nervosa é uma doença mental que pode levar diretamente à morte e tem uma elevada taxa de mortalidade por desnutrição e suicídio.
O RIPA, que funciona há ano e meio na Clínica Psiquiátrica de S. José, em Lisboa, um dos 12 centros do Instituto das Irmãs Hospitaleiras, pretende ser uma resposta inovadora ao número crescente de casos relacionados com as perturbações do comportamento alimentar, pela visão de abordagem integrada e pelo facto de não quebrar a ligação com a família durante o internamento.
O projeto foi inicialmente financiado pelo BPI Fundação La Caixa.
Até hoje, a equipa conseguiu prevenir o agravamento, evitar a necessidade de internamento hospitalar, ou até mesmo a remissão da doença, em 90% das 30 mulheres que acompanhou, entre os 14 e os 60 anos de idade.
Destas, 13% tinham entre um e cinco anos de doença instalada, sendo que 87% tinham a doença há mais de cinco anos.
O RIPA permitiu ainda reduzir, em 80% dos casos, os comportamentos compensatórios (recurso a laxantes, diuréticos e vómito autoinduzido).
A análise dos dados de acompanhamento após a alta clínica regista que 27 mulheres regressaram a uma atividade laboral e/ou académica.
Assinalando o sucesso desta resposta, para a qual as mulheres pagam uma diária durante pouco mais de mês e meio que dura o internamento, Dulce Bouça defende que deveria haver uma articulação com o Serviço Nacional de Saúde.
Diz que muitas doentes foram enviadas pelos próprios médicos que as seguem e que o sistema tinha a ganhar com esta articulação.
Em Portugal, estão diagnosticados, através dos Centros de Saúde, mais de 10 mil casos de doenças do comportamento alimentar. Estima-se uma prevalência de anorexia nervosa na ordem dos 0,3% a 0,4%, ocorrendo 90% no género feminino.
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