"A organização e os respetivos Estados membros vão permitir a presença nesta cimeira do Governo 'de facto', o que é sintomático de um reconhecimento prático do mesmo", disse à Lusa Filipe Vasconcelos Romão, especialista em Relações Internacionais e professor da Universidade Autónoma de Lisboa.
No sábado, líderes e chefes de diplomacia dos 10 países da ASEAN reúnem-se em Jacarta para discutir a crise em Myanmar e o cabecilha do golpe militar de 01 de fevereiro, Min Aung Hlaing será escutado durante o encontro.
"Os sinais de que dispomos não são animadores", depreende Vasconcelos Romão, lembrando que "a questão da democracia e dos Direitos Humanos poderá não ser prioritária" para a ASEAN, quando se analisa a estratégia de vários dos seus países membros, em particular o autoritarismo de regimes comunistas (Laos e Vietname) ou a monarquia absoluta (Brunei).
Desde o golpe militar de 01 de fevereiro em Myanmar, que removeu do poder a líder civil Aung San Suu Kyi, as forças de segurança já mataram mais de 700 pessoas e as Nações Unidas estimam que mais de 250.000 tenham sido obrigadas a migrar, numa crise que tem provocado a condenação da comunidade internacional.
Filipe Vasconcelos Romão aconselha que se fique atento para ver que sinais de apoio externo terá o Governo de Unidade Nacional, que "pretende agregar a oposição ao golpe e assumir-se como Governo legítimo".
Na quinta-feira, o Presidente indonésio, Joko Widodo, e o primeiro-ministro tailandês, Prayut Chan-o-Cha, tiveram uma conversa telefónica preparatória da cimeira, durante a qual reconheceram que a situação em Myanmar é um desafio à estabilidade na região, de acordo com um comunicado emitido no final da reunião.
Nos últimos dias, os líderes de alguns países membros da ASEAN colocaram mesmo em cima da mesa a hipótese de a cimeira servir para formalizar a expulsão de Myanmar da organização, mas a opção não é consensual e esbarra contra a estratégia montada pela enviada especial da ONU, Christine Schraner Burgener, que insiste numa solução inclusiva.
A dúvida reside, em grande parte, na atitude que a junta militar vier a tomar durante e após esta cimeira, sabendo-se da sua resiliência perante sanções internacionais e condenações veementes de organizações de defesa dos Direitos Humanos.
Para Vasconcelos Romão, de momento, a junta militar que tomou o poder pesou as vantagens e inconvenientes da sua posição de força e prefere o isolamento externo à indecisão política interna.
"Os militares poderão ter concluído ter mais a perder com a evolução e amadurecimento do regime do que com um novo golpe que projeta uma imagem negativa e os isola formalmente", explicou o analista.
"A expressiva renovação da maioria do partido de Aung San Suu Kyi (Liga Nacional para a Democracia), que obteve cerca de 70% dos assentos nas duas câmaras parlamentares nas eleições legislativas de 2020, dissipou as ilusões dos militares e reforçou a possibilidade de um cerco efetivo aos seus interesses políticos e económicos", explicou Vasconcelos Romão.
Para este professor de Relações Internacionais, as eleições de 2020 foram "o momento em que o golpe se tornou inevitável", levando a um extremar de posições que se tenta consolidar através da repressão sobre os movimentos populares que se manifestam nas ruas.
E esta posição de força joga-se também externamente, legitimando a resistência às sanções e às ameaças da comunidade internacional.
"O que está em jogo, por agora, parece superar amplamente a pressão internacional, sobretudo se houver uma predisposição das principais potências regionais para continuar a interagir com Myanmar", concluiu Filipe Vasconcelos Romão.
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