Num gesto que se repete, cada pessoa coloca no chão da praça tantas pedras quantas o número de pessoas que perdeu no contexto da pandemia, sejam familiares ou amigos. Em cada pedra, o nome da vítima e a data da morte. Sobre as pedras, lágrimas, dor e indignação.
"Isto é o mais próximo do que tivemos de um velório. Não pudemos vê-lo nos seus últimos dias de vida. É muito cruel ver que não respeitou a nossa dor. Morreu e não pudemos nem mesmo ver o seu caixão. É muito doloroso", desabafa em declarações à Lusa Mauro González sobre a morte do pai em 23 de julho de 2020.
As pedras representam aquilo que perdura no tempo. Uma inspiração na tradição judaica de levar pedras, em sinal de eternidade, quando se enterram os mortos.
Aos poucos, o pranto encharca as máscaras de proteção contra coronavírus. A Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do Governo, torna-se uma área coberta de pedras e velas num velório em homenagem às vítimas.
"Deixo uma pedra para a minha irmã Sandra, de 58 anos. Ficou em Cuidados Intensivos durante quatro meses. Morreu sozinha em 31 de janeiro de 2021. Só podíamos tocar nela com luvas. O meu tio também morreu de covid. Não pudemos enterrá-los", lamenta Carina Vázquez.
Enquanto os argentinos estavam confinados, proibidos de velarem os seus mortos e de se reunirem socialmente, o Presidente argentino, Alberto Fernández, dava festas clandestinas na residência oficial. A recente revelação de fotos e vídeos do aniversário da primeira-dama, Fabiola Yañez, em 14 de julho de 2020, no auge da quarentena, aumentou e transformou a dor em indignação.
"Minha irmã, Marcela Temez, faleceu em 19 de julho de 2020, cinco dias depois da festa da Fabiola. Não pudemos velá-la nem levar as cinzas a um cemitério. É muito injusto. A minha alma não consegue perdoar. Quero que o Presidente, a sua mulher e todos os convidados paguem como pagaríamos qualquer um de nós se rompêssemos a quarentena", critica Andrea.
A indignação contra o Presidente durante a marcha é a tónica do protesto. Alberto Fernández desrespeitou o decreto de isolamento social que ele mesmo anunciou e ajudou a redigir. Por esse motivo, foi indiciado.
Em 15 de agosto passado, foi realizada a primeira marcha das pedras. Milhares de pedras foram colocadas nesta mesma Praça de Maio e em frente à residência oficial. No dia seguinte, as pedras foram recolhidas pelo Governo. Os familiares e amigos das vítimas interpretaram o gesto como uma profanação.
"Senti uma angústia profunda misturada com nojo quando vi que tinham roubado as pedras. Eu procuro não odiar, mas este Governo dificulta. Não é uma questão política, mas de respeito, de dignidade e de despedida. Desta vez, eu trouxe o dobro de pedras e se as retirarem novamente, faremos uma terceira marcha com o triplo de pedras até nos escutarem", avisa Carla Moreno.
Aos poucos, a noite cai em Buenos Aires. A Praça de Maio é agora um santuário improvisado. As pedras ficam iluminadas pelas velas sob a vigília de olhares que vão passar a noite em vigília para evitar que as pedras sejam retiradas.
A queda na imagem do Presidente é dramática. Segundo todas as sondagens, passou de cerca de 70% em abril de 2020, no auge do confinamento, a aproximadamente 25% na última semana.
A marcha das pedras acontece a uma semana das eleições primárias, em que todos os argentinos devem votar para definir as legislativas de novembro. O castigo popular contra o Governo, portanto, pode vir antes da Justiça, através das urnas.
Em 2020, a Argentina manteve durante 233 dias a quarentena mais prolongada e estrita do mundo. Mesmo assim, 5,202 milhões de pessoas foram contagiadas das quais 112.444 morreram até hoje desde que foi registado o primeiro caso de covid-19 no país.
Leia Também: AO MINUTO: 140 mil manifestaram-se em França; Mais 692 mortes no Brasil