A denúncia é da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF), que hoje assinala em comunicado a data exata desse êxodo dos rohingyas "à maior e mais recente vaga de violência em Myanmar" - 25 de agosto de 2017 - para o país mais pobre do mundo, coligindo testemunhos de pessoas de várias gerações que foram ou são doentes da MSF e vivem desde então nos campos de refugiados situados junto à cidade portuária de Cox's Bazar, no sudeste do Bangladesh.
Os cerca de 750.000 rohingyas que nesse dia fugiram de Myanmar, juntando-se a mais de 100.000 que já se tinham refugiado no país vizinho e a outros que se lhes seguiram, dependem, segundo a MSF, de ajuda humanitária e têm "escassíssimas perspetivas de futuro".
A MSF sublinha que, cinco anos volvidos, "os rohingyas continuam a não ser reconhecidos como cidadãos de nenhum país e oficialmente não são também reconhecidos como refugiados, apesar de receberem alguma proteção" do Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) -- ou seja, são apátridas.
"Nos campos de refugiados, os rohingyas têm acesso muito limitado a educação ou trabalho, o que gera impactos na saúde mental e um sentimento de desesperança. As necessidades de saúde, de água e saneamento e de proteção são enormes e avassaladoras", prossegue a MSF na sua nota, acrescentando que uma das pessoas com quem falou disse: "Os nossos abrigos são tão temporários hoje como no dia em que chegámos".
"As equipas da MSF observam o impacto que as condições de sobrelotação e insalubridade nos campos têm na saúde física e mental dos refugiados rohingyas", refere a organização médica humanitária, o que faz com que receba "um número cada vez maior de pessoas que precisam de tratamento para infeções de pele e doenças relacionadas com a água [não-potável], assim como doenças crónicas, como diabetes e hipertensão".
Num dos depoimentos recolhidos pela MSF, Mohamed Hussein, de 65 anos, faz um resumo bastante eloquente da história da perseguição à minoria muçulmana na Birmânia, depois Myanmar, país maioritariamente budista: "Éramos tratados como párias, e a retirada gradual de direitos transformou-se em perseguição".
Hussein trabalhou como funcionário público no gabinete do Ministério da Administração Interna de Myanmar durante mais de 38 anos. Em 1982, foi-lhe retirada a nacionalidade por pertencer à etnia rohingya.
Desde então, assistiu a uma cada vez maior restrição dos seus direitos e liberdades -- os rohingyas deixaram de ser autorizados a estudar, trabalhar, casar, tirar a carta de condução, votar, etc. - acabando por abandonar o país com destino ao Bangladesh, onde há cinco anos reside num campo de refugiados.
"Terminei o ensino secundário em 1973. Até tinha um emprego como funcionário do Governo, porque, na altura, os rohingyas eram reconhecidos pela Constituição (...) Após a independência do poder britânico, em 1948, o Governo aceitou os rohingyas como cidadãos do país, e pessoas de todas as etnias tinham direitos iguais", relatou.
"Ninguém era vítima de discriminação", frisou, acrescentando que "tudo isso mudou em 1978, quando o censo Naga Min, ou 'Rei Dragão', foi realizado", porque esse censo "determinou quem era cidadão de Myanmar e quem era do Bangladesh".
Nessa altura, "muitas pessoas foram presas por não terem os documentos certos. Temendo pela minha vida, fugi", relatou, acrescentando: "Mais tarde, o Governo de Myanmar voltou a aceitar-nos".
"Eles fizeram um acordo com o Governo do Bangladesh e foi-nos prometido que, se regressássemos, teríamos os nossos direitos garantidos. Essa promessa não foi mantida. As terras foram devolvidas aos seus proprietários, mas os nossos direitos não foram assegurados -- isso foi o início da nossa opressão", recordou.
"As autoridades retiraram-nos a nacionalidade. Nos termos da Lei da Cidadania [de 1982], eles reconheciam categorias de etnias, e percentagens de cada uma delas foram anunciadas -- uma categorização que nunca antes existira", explicou.
Contudo, ainda eram aceites no país como estrangeiros; mas depois do golpe militar, deixaram de poder frequentar as universidades, foram-lhes impostas proibições de viajar, elementos prestigiados da comunidade rohingya eram presos ou multados por alegadamente oprimirem os budistas, foi-lhes imposto um recolher obrigatório e se alguém fosse encontrado de visita em casa de outra pessoa, era torturado.
"Todos os anos, eles impunham novas regras, e quem não as cumprisse era preso", indicou, acrescentando que "apesar de tudo", ainda podiam votar -- um direito que lhes foi retirado em 2015, altura em que passaram a ser considerados "intrusos" no país.
Quando, numa manhã de 2017, acordou com o som de tiros vindo de um posto militar próximo de casa, soube, horas depois, que rohingyas tinham sido mortos, e a sua comunidade começou a ver o exército birmanês a avançar sobre eles abrindo fogo, então fugiu, como mais de 700.000 dos seus compatriotas, para o Bangladesh, que -- reconhece -- os defendeu, lhes deu esperança e faz muito por eles.
Todavia, o tempo passou, e "a vida tornou-se difícil": "Cada vez que saio [do campo], sou revistado pelos guardas. Nem sequer posso visitar os meus filhos (...) e sinto-me preocupado com o nosso futuro, porque as nossas crianças não estão a receber uma educação adequada", admitiu.
"Agora que todos os direitos nos foram retirados, não somos mais que cadáveres ambulantes. O mundo é feito para toda a gente nele viver. Atualmente, nós não temos um país que seja nosso, apesar de sermos humanos", concluiu, deixando um apelo: "Pedimos ao mundo que nos ajude a viver como seres humanos. O meu desejo é ter direitos. E paz".
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