Tinha passado cerca de um mês desde o início da invasão russa quando o funcionário brasileiro da ONU de 39 anos chegou à Ucrânia e o cenário era de milhões e milhões de pessoas a sair das suas cidades, comboios abarrotados de gente a abandonar o país, estações lotadas e filas gigantes nas fronteiras. "São imagens que ninguém vai esquecer", disse Saviano Abreu em entrevista à Lusa, a partir de um abrigo subterrâneo em Kiev, quando a cidade enfrentava intensos ataques aéreos, recordando o desespero de habitantes que "tinham uma vida normal e da noite para a manhã fugiram das suas casas para sobreviver".
Apesar daquelas imagens que tiveram forte impacto em todo o mundo, ao fim de quase um ano na Ucrânia, outros três momentos marcaram Saviano Abreu, e o primeiro foi logo no início de abril, em Bucha, quando as forças russas abandonaram esta cidade nos arredores de Kiev, deixando um cenário de centenas de mortos, alguns com sinais de tortura, mutilação e abusos sexuais.
"Eu fui poucos dias depois da retirada das tropas russas a Bucha e vi aqueles corpos em valas comuns e aquelas imagens de uma perna, um braço, isso é algo que acho que nunca vai sair da minha cabeça", descreveu, além do cheiro dos cadáveres já em decomposição espalhados nas ruas "num ambiente de destruição", não só daquela cidade como também outras nas redondezas.
Seguiu-se, em maio, a retirada de civis na cidade portuária de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, na qual esteve envolvido, quando as forças russas apertavam o cerco ao complexo siderúrgico de Azovstal, onde se encontrava a última bolsa de resistência ucraniana.
"Foi um momento que também me marcou muito", recordou Saviano Abreu, mas também a população ucraniana, "quando se conseguiu retirar aquelas centenas de pessoas que estavam presas há mais de dois meses nos refúgios subterrâneos da siderúrgica de Azovstal, que tinham ficado ali sem nenhuma condição adequada para sobreviver, sem ver a luz do Sol, sem Internet ou tomar um duche".
No final do ano, as forças ucranianas realizaram uma forte ofensiva e reconquistaram Kherson, no sul do país, que tinha sido uma das primeiras cidades a cair no início da invasão russa.
Esse foi também um momento importante para o porta-voz da OCHA, quando chegou 72 horas depois de as tropas ucranianas retomarem o controlo da cidade, porque "foi o contrário" de todo o sofrimento que tinha testemunhado até então.
"Quando a gente entrava com um comboio humanitário, com as pessoas a aplaudir, a saudar a gente, era uma imagem de comemoração, de esperança, de ver que pelo menos elas esperavam que a situação ia melhorar", lembrou.
Posteriormente a realidade seria diferente, porque as forças russas não desistiram de Kherson e a cidade continua a ser bombardeada, mas, pelo menos naquele dia, ficou na memória de Saviano Abreu "a esperança nos olhos das pessoas, apesar de toda a destruição, dos mercados e supermercados completamente vazios e farmácias sem medicamentos".
Esse cenário de desolação estendia-se a outras áreas da região de Kherson, que tinham estado sob ocupação russa, e em pequenas aldeias ou vilas "não havia uma só casa que não tinha sido ou completamente destruída ou pelo menos danificada", sem pessoas ou muito poucas, quase sempre idosas, que ficaram para trás.
"Muitas desses povoados da frente de batalha perderam 90% da população, porque não tinha condições mesmo de ficar, pessoas que saíram muitas delas apenas com a roupa no corpo, fugindo algumas a pé de Dnipro, Mykolaiv, Kherson, muitos descalços, sem nada", descreveu, repetindo que se trata de "imagens muito duras".
Apesar das infraestruturas de estradas e comboios existentes no país, o desespero incluiu habitantes da própria capital, que "tiveram de sair sem nenhuma outra opção do que caminhar e fugir", recorda. A falta de combustível era outro problema e mesmo colegas de Saviano Abreu abandonaram a cidade a caminhar.
O funcionário brasileiro da ONU não consegue comparar esta crise com outros cenários difíceis nas suas experiências anteriores, como na Somália, Sudão ou Etiópia, porque "sofrimento humano é sofrimento humano, seja onde seja".
Na Ucrânia, o retrato é de dor e de famílias separadas, não há uma pessoa sequer que não tenha tido um familiar, um amigo, alguém que morreu por causa da guerra e o trauma que isso causa é brutal", afirma.
Mas "outras realidades são também muito duras", ressalva Saviano, dando o exemplo de países que enfrentam a seca e alterações climáticas, cujos habitantes em locais mais vulneráveis, sem ajuda humanitária, vão acabar por morrer.
Mas a guerra da Ucrânia "tem algumas especificidades que não vemos noutro lugar", dado o seu impacto mundial na segurança global e crise alimentar. Por isso Saviano Abreu confia que o apoio Internacional "vai continuar", apesar da consciência de que é difícil manter o mesmo nível de atenção dos media por muito tempo, numa guerra que espera que seja prolongada.
Isso significa, advertiu, que "cada dia mais pessoas, população civil, vão sofrer com a guerra, vão morrer por causa da guerra, e continuam a precisar de apoio Internacional e da ajuda humanitária".
Leia Também: Comentadores russos discutem prós e contras de assassinar Zelensky