Em 25 de fevereiro de 2022, Mariupol foi cercada por tropas da Rússia e milicianos de Donetsk, no âmbito da invasão russa do território ucraniano iniciada um dia antes perante os olhos da comunidade internacional.
Numa tentativa de ocupação total do país, incluindo Kyiv, além dos territórios alegadamente pró-russos no leste, a cidade do sul ucraniano fazia parte da estratégia no acesso de Moscovo ao Mar Negro, embora depois tenha falhado a capital da Ucrânia e outros territórios, mais abaixo, como Odessa ou Mykolaiv, apesar de ter tomado Kherson, alegadamente sob traição das forças locais.
Mariupol foi destruída após uma campanha de bombardeamentos e combates urbanos, sobretudo contra a fábrica siderúrgica Azvotal, onde se encontrava o Batalhão Azov, último bastião ucraniano, em condições prolongadas mas indefensáveis.
As forças de defesa que se mantinham na cidade entregaram as suas armas em 20 de maio de 2022, após longos dias de isolamento, sem munições, sem assistência médica, sem comida e uma total ausência de testemunhas internacionais.
"Viviam ali quase meio milhão de pessoas e agora, praticamente, não há casas intactas", disse o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, numa mensagem nas redes sociais, acompanhada por um vídeo no qual comparava imagens de satélite de 2021 e o cenário de destruição registado na cidade, onde os blocos de edifícios, anteriormente visíveis na paisagem de Mariupol, desapareceram desde meados de março do ano passado.
Oito meses depois de Mariupol ter caído, a Rússia procurou erradicar todos os vestígios de provas de crimes de guerra, como foi o caso dos acontecimentos ocorridos no famoso teatro da cidade, ponto de reunião de deslocados e atacado pelas forças de Moscovo.
As poucas escolas abertas ensinam agora o currículo russo, as redes de telefone e televisão são da Rússia, a moeda ucraniana está a desaparecer e Mariupol encontra-se no fuso horário de Moscovo, numa cidade sob o signo da morte.
Mais de 10 mil sepulturas marcam a herança pesada dos combates em Mariupol, segundo a agência Associated Press (AP), mas o número de mortos pode ser três vezes maior do que uma estimativa inicial de pelo menos 25 mil.
Cada uma das dezenas de residentes entrevistados pela AP conhecia alguém que morreu durante o cerco.
Lydya Erashova viu o seu filho de cinco anos, Artem, e a sua sobrinha de sete, Angelina, morrerem após um bombardeamento russo. A família enterrou à pressa os jovens, numa cova improvisada num quintal e fugiu da cidade.
A jornalista da estação pública britânica BBC Hilary Andersson, produtora do documentário "Mariupol -- a História das Pessoas" do Panorama BBC, defendeu em entrevista à agência Lusa que as atrocidades cometidas pelas forças russas em Mariupol "não têm paralelo na Europa desde a II Guerra Mundial".
Numa nova forma de captação de fontes jornalísticas, assentes em vídeos de habitantes em tempo real e identificação de sobreviventes nas redes sociais, o filme, divulgado um ano após o início da agressão russa na Ucrânia, foca-se em testemunhos de sobreviventes e imagens dos habitantes de Mariupol através dos seus telemóveis, que, entregues a si próprios e na impossibilidade de cobertura jornalística e ajuda de organizações neutrais, permitiram reconstituir (e dar a conhecer ao mundo) uma batalha fundamental da história desta guerra.
Em 19 de março deste ano, o Presidente russo fez uma visita surpresa de trabalho à cidade de Mariupol, naquela que foi a primeira viagem de Vladimir Putin ao Donbass (leste ucraniano) desde o início da guerra na Ucrânia.
O líder russo inspecionou alguns locais da cidade, conversou com residentes e andou de automóvel pelas ruas de Mariupol, acompanhado pelo vice-primeiro-ministro Marat Khusnulin, que o informou sobre o andamento das obras de construção e reconstrução.
"Tratou-se da construção de novas unidades habitacionais, centros sociais e educativos, infraestruturas e instituições médicas", disse então, num comunicado, o Kremlin.
Outro aspeto do duro legado desta cidade, e no âmbito da deportação de menores da Ucrânia, mais de mil crianças de Mariupol terão sido "ilegalmente dadas a estrangeiros em Tiumen, Irkutsk, Kemerovo e no distrito de Altaï", na Sibéria, segundo denunciou a diplomacia ucraniana, citando informações das autoridades de Krasnodar, cidade próxima da fronteira com a Ucrânia.
A luta de Azvotal tornou-se de tal forma simbólica que na data dos seis primeiros meses de guerra e aniversário da independência de Kiev, em 24 de agosto, as autoridades locais inverteram o tradicional desfile do seu poderio militar, totalmente destacado nas frentes de batalha, por veículos militares russos destruídos.
Como forma de combater a fadiga de guerra e elevar a motivação da população de Kyiv, as autoridades locais colocaram na rua Khreshchatyk, uma das principais da cidade, dezenas de blindados e viaturas militares russas destruídos pelo exército ucraniano, numa parada militar alternativa no dia da independência nacional.
Esta rua, que atravessa a praça que testemunhou a Revolução Laranja, em 2003 e 2004, e os protestos do Euromaidan, dez anos mais tarde, era um deserto quase completo após a invasão russa, com todo o comércio encerrado e quase sem vestígios de vida, quando Kiev era uma "cidade fortaleza".
Ao longo da extensa e monumental rua Khreshchatyk, foram exibidos grandes blindados e outros veículos militares, destruídos em várias regiões do país, e quase todos carbonizados, pairando um cheiro persistente de ferro queimado, na sombra da sede do município de Kiev, de arquitetura estalinista, onde um cartaz enorme exigia, em inglês, "Libertem os defensores de Mariupol".
Quando se pensava que Mariupol seria a batalha a lembrar em custos militares e civis, como não se via na Europa em décadas, surgiu Bakhmut, na província de Donetsk, no leste do país.
Discutível do ponto de vista estratégico, Bakhmut, com mais de 70 mil habitantes antes da guerra, tornou-se na mais longa e sangrenta batalha na Ucrânia desde agosto, lembrando imagens de guerras de trincheiras, como nas I e II Guerras Mundiais, praticamente ofuscando Mariupol como a luta mais longa e sangrenta deste conflito, da qual a Ucrânia nunca desistiu e, com equipamento moderno fornecido pelo Ocidente, retomou a iniciativa, invertendo uma posição quase insustentável.
Nos avanços e recuos desta guerra, a Ucrânia parece disponível para retomar a iniciativa, com apoio de equipamento moderno dos aliados ocidentais, numa contraofensiva que já terá começado em Bakhmut, e ameaça alargar-se na frente sul.
Após a reconquista de Kherson, no sul, a progressão ucraniana pode seguir para Melitopol e Mariupol, cortando o acesso de Moscovo ao Mar Negro e a seguir à Crimeia.
Apesar destes objetivos, a Ucrânia insiste que ainda não tem os meios necessários para uma contraofensiva decisiva, ao mesmo tempo que o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, pede "coragem política" aos países aliados para aumentarem os seus orçamentos na Defesa e mais apoio a Kyiv.
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