Para William Noun o dia 4 de Agosto vai ser sempre difícil. Sobreviveu à explosão do porto de Beirute em 2020, mas é também o dia em que o seu irmão Joe, bombeiro, morreu a tentar apagar as chamas após a explosão, considerada a maior não-atómica da história universal.
"Os mesmos sentimentos de ódio, medo e raiva, ainda estão todos cá", conta à Lusa William nas vésperas do aniversário do acidente. "Mas a diferença agora, três anos depois, é que o cérebro começa lentamente a aceitar o que aconteceu", diz.
William procurou apoio psicológico após a explosão. A par de terapia, tomou medicação durante seis meses e continua até hoje a ir uma consulta todos meses.
A explosão de há três anos deixou a capital libanesa num cenário pós-apocalíptico que feriu mais de 6.000 pessoas e deixou sequelas psicológicas em muitas mais.
Não existem dados oficiais sobre o número total de pessoas afectadas. No entanto, a organização não governamental dedicada à saúde mental, Embrace, fez uma sondagem logo após ao incidente que revelou que 83% dos entrevistados sentiam tristeza diariamente e 73% estavam altamente ansiosos. Um mês depois da explosão, esses números caíram para 55% e 46%, respectivamente.
Hoje, menos de 10% dos pacientes da Embrace mostram sinais de stress pós-traumático, mas mesmo os outros pacientes "mencionam o 04 de Agosto como um 'gatilho' dos seus sintomas", diz à Lusa Myriam Zarzour, psiquiatra e co-directora da Embrace.
Zarzour explica que a falta de respostas em relação ao que aconteceu é um dos factores que impede o processo de cura.
"Não há recuperação enquanto não se souber realmente o que aconteceu ou sem descobrir quem foram as pessoas responsáveis e que se faça justiça porque é um lembrete constante que, até que haja justiça, isto pode acontecer a qualquer altura", explica a psiquiatra.
A organização gere a única linha de prevenção ao suicídio no Líbano. Nos primeiros nove meses de 2021, pouco tempo depois da explosão, a Embrace recebeu 6,000 chamadas, o triplo do registado em anos anteriores. Apesar da falta de dados oficiais, estima-se que o número de suicídios também tem vindo a aumentar.
Mas Myriam Zarour explica que a explosão foi apenas mais um factor que acelerou o que já era o declínio na saúde mental de muitos libaneses.
A braços com uma das piores crises económicas dos tempos modernos, que começou em 2019 com o total colapso das instituições financeiras, a vida dos libaneses mudou praticamente de um dia para o outro. A inflação exponencial da moeda deixou mais de 80% da população a viver abaixo do limiar da pobreza, o desemprego é generalizado, tal como a luta pelo acesso regular a necessidades básicas como eletricidade, água, combustível ou medicamentos.
À medida que a crise progride, muitos milhares de libaneses já saíram do país em busca de oportunidades. Entre eles, 40% dos médicos e um terço dos enfermeiros, desde 2019, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. O acesso à terapia é cada vez mais caro e os medicamentos necessários estão muitas vezes indisponíveis.
"Vemos não só que os factores de risco para a saúde mental estão a aumentar - como a pobreza, desemprego, instabilidade, incerteza sobre o futuro - mas também que os factores de proteção estão a diminuir... para além dos obstáculos que já existiam como o tabu e o estigma. Portanto é natural que estejamos a observar um aumento nos problemas de saúde mental", diz Zarzour.
Para muitos libaneses, a explosão do porto de Beirute foi a última gota num copo já a transbordar.
Racelle Hamad emigrou para a Turquia em Agosto de 2021. Um ano antes, no dia da explosão, estava num café com colegas a poucas centenas de metros do epicentro. Como muitos outros libaneses, pensou que a cidade estava a ser bombardeada. Ao telefone com a mãe, sofreu um ataque de pânico que se repetiu durante vários meses sempre que ouvia um avião ou o barulho de uma porta a bater.
"Eu saí do Líbano sobretudo por causa da crise financeira. Quando a explosão aconteceu eu já estava emocionalmente pronta para ir embora. Eu precisava de escapar", Racelle contou à Lusa.
A arquitecta de 31 anos pensou que nunca mais ia voltar ao Líbano. Mas Racelle acaba de se mudar novamente para Beirute, por causa de uma oportunidade de trabalho. Racelle confessa que não se sentia preparada para voltar, mas que não tinha mais energia para construir um futuro lá fora.
"Eu sinto que por ser Libanesa o meu destino é estar aqui, não é uma escolha", diz. "Eu sei que eu prefiro estar aqui mais do que ninguém porque esta é a minha zona de conforto, mas ao mesmo tempo eu sei que este não é o melhor lugar para mim."
É um sentimento ecoado por gerações a fio que têm vindo a acumular camadas sobre camadas de trauma colectivo. Para muitos, a explosão de 2020 reavivou memórias dos bombardeamentos israelitas de 2006, ou da sangrenta guerra civil entre 1975-1990.
"É a continuação constante do trauma que afecta a esperança e crença de toda a gente num futuro melhor", explica à Lusa a psicóloga Diala Itani. "As pessoas não querem passar por isto outra vez".
Itani é especialista em apoio a adolescentes, em quem a explosão teve um impacto particularmente forte.
"Os adolescentes têm sonhos e isto foi abalado. Eles querem sair do país porque sentem que aqui não vão poder fazer nada e então desenvolvem raiva e alguns ponderam até qual a utilidade de continuarem a estudar" diz.
Campanhas de conscientização e esforços como os da Embrace para chamar a atenção para as questões da saúde mental têm mostrado efeito, sobretudo entre os mais jovens.
"Ainda há esperança e força de vontade para encontrar justiça, especialmente entre os adolescentes", William Noun diz à Lusa.
Noun faz parte de um colectivo de familiares das vítimas que se dedicam a exigir uma investigação transparente e expedita ao incidente, e que também participaram em terapia de grupo. O jovem ganhou uma nova força quando conheceu Maria Farias, que também perdeu um irmão na explosão.
Os dois apaixonaram-se numa história que cativou o país e têm casamento marcado para Setembro de 2023.
"Eu e a Maria temos dois lados: um triste e um doce. Estamos a ajudar-nos um ao outro: eu percebo o que ela sente", diz William.
"Isto é a vida no Líbano, é uma dualidade entre felicidade e tristeza, tudo misturado", diz.
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