Em entrevista à Lusa, o diplomata Sergiy Kyslytsya reconheceu que o desejo de pôr fim à invasão russa da Ucrânia é geral, "e não há quase ninguém que queira mais a paz do que o povo e a liderança ucraniana". Mas não vê qualquer cenário de diálogo com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, apesar de reconhecer o caminho das negociações.
"Mais cedo ou mais tarde, quem quer que represente a Rússia, mas não Putin, precisará de sentar-se e negociar", disse Kyslytsya a partir de Nova Iorque, antecedendo as Conferências do Estoril, organizadas pela Nova SBE, onde hoje é orador.
Neste momento, "claro que não há possibilidade e nem faz sentido negociar com Putin", mas, no final das hostilidades e do que espera serem ganhos militares das forças ucranianas, "quem quer que represente a Rússia, ou o que resta da Rússia, teria de se sentar, discutir a retirada [da Ucrânia], a sua responsabilidade, compensações e prestação de contas e isso é inevitável".
Face às vozes que pedem o fim das confrontações militares e abertura de um diálogo político, como sucedeu na semana passada na cimeira de alto nível dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], Kyslytsya contrapôs com outro encontro, na Arábia Saudita há um mês, reunindo dezenas de países (mas não a Federação Russa), em que foi abordada a fórmula para a paz proposta por Kyiv.
"Esta fórmula e a busca da maneira a implementar será a maior prioridade, bem como a outra questão principal, que é a responsabilização dos culpados dos crimes de guerra e contra a humanidade. E do crime mais importante, 'mãe' de todos os crimes, que é o de agressão", afirmou.
Se o "ciclo de impunidade" não for quebrado e os autores não se sentarem no banco dos réus, "a probabilidade de reincidência será ainda maior", frisou.
Rejeitando sentir pressões, "quer dos parceiros quer dos inimigos", para abandonar a via militar e encetar o diálogo, o diplomata considerou que "o melhor ponto de referência" para o apoio às posições de Kyiv está nas votações nas Nações Unidas, que "falam por si só sobre a posição da esmagadora maioria dos países quando se trata dos princípios e fundamentos para alcançar uma paz sustentável justa e duradoura na Ucrânia".
Nesse sentido, destacou que, "apesar dos muitos problemas e deficiências", a Ucrânia é um estado democrático e "é totalmente impossível" que a sua liderança vá contra a vontade popular, em que 80% dos ucranianos demonstram nas sondagens oposição a quaisquer concessões territoriais, como na Crimeia, ilegalmente anexada por Moscovo em 2014, ou no Donbass, no leste do país.
"Não acho que qualquer político importante de nível nacional na Ucrânia possa sobreviver se quiser negociar a paz com base em concessões territoriais. Isso é impossível", declarou. "O restabelecimento das fronteiras reconhecidas internacionalmente em 1991 é condição 'sine qua non' para qualquer negociação".
Num momento em que as forças ucranianas têm uma contraofensiva em curso desde junho, com avanços lentos na frente sul, Kyslytsya recomendou que não se analise o campo de batalha "como um jogo de computador ou um filme de Hollywood", quando se trata de uma "guerra muito sangrenta numa escala sem precedentes", deixando um apelo: "Sejam realistas, sejam pacientes e até ousaria dizer, sejam gratos".
O representante permanente na ONU desde 2019 e ex-vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, salientou que são os soldados ucranianos que estão "a lutar contra o mal", não só para que a Ucrânia seja libertada, mas em defesa de todo o mundo democrático e da vida pacífica na Europa.
"E se tivéssemos falhado, como muitos acreditavam, na noite de 24 de fevereiro [de 2022, data da invasão russa]?", questionou. "É absolutamente garantido que Putin não iria parar, avançaria e atacaria um país da NATO", assegurou, adicionando que, nesse cenário, "os europeus teriam de lutar e infelizmente alguns, se não muitos, morreriam".
A Rússia, frisou, "é uma ditadura", que não reflete sequer o seu Governo como um coletivo ou o parlamento, "mas o que uma pessoa quer e faz" e essa pessoa, Vladimir Putin, "pode instantaneamente parar esta guerra", tal como voltar à Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, que Moscovo abandonou em julho, fechando o corredor de exportação marítima de produtos ucranianos.
O fim deste acordo de volta a incerteza da segurança alimentar nos países mais vulneráveis e a subida global dos preços.
"Quando Putin se encontrou com os líderes africanos em São Petersburgo [no final de julho], ele basicamente ofendeu-os", comentou o diplomata, numa referência à oferta de cereais russos em alternativa ao acordo mediado pela Turquia e Nações Unidas.
"Putin acreditava realmente que aqueles líderes são intelectualmente incapazes de entender que [o donativo] era uma gota no oceano e não representava a resposta adequada para a questão da segurança alimentar", adiantou.
Os últimos dias têm sido marcados por intensa atividade diplomática de todas as partes, sobretudo por parte do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e das autoridades de Ancara, e o reatamento do acordo, na leitura de Kyslytsya, "é do interesse intrínseco de todos os países, independentemente até do volume das exportações da Ucrânia - por sinal bastante alto - para que o livre comércio seja restaurado, porque impacta a crise global".
É por isso que o embaixador na ONU afirma que Kyiv está a trabalhar alternativas com os seus aliados e parceiros, incluindo neste lote a Turquia, "porque é um ator fundamental no Mar Negro".
Mas rejeita a perspetiva de escoltas militares dos navios de transporte de cereais, que vê como uma impossibilidade "enquanto a Rússia for autorizada a exercer a usar o direito de veto da União Soviética no Conselho de Segurança", referiu, numa alusão à herança da Federação Russa em 1991 do lugar permanente no órgão da ONU.
"Esperamos o melhor. Mas, enquanto esperamos o melhor, exploramos outras oportunidades e alternativas, inclusive com os nossos parceiros europeus", afirmou.
Ao bombardear os portos do sul da Ucrânia e os seus silos de alimentos destinados a outros países, defendeu, a Rússia "entende isso muito bem".
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