Numa intervenção perante o Conselho de Segurança da ONU, o líder do ACNUR, Filippo Grandi, chamou a atenção do corpo diplomático para os 114 milhões de refugiados e deslocados em todo o mundo, dizendo tratar-se de um sintoma tangível, e por vezes negligenciado, da atual "desordem extrema do mundo".
"A deslocação forçada é também uma consequência da incapacidade de manter a paz e a segurança. (...) As últimas três semanas forneceram provas devastadoras de que o desrespeito pelas regras básicas da guerra -- o direito humanitário internacional -- está a tornar-se cada vez mais a norma e não a exceção, com civis inocentes mortos em números sem precedentes", lamentou.
Grandi referiu-se quer os ataques do grupo islamita Hamas a civis israelitas, quer o assassínio de civis palestinianos, assim como a destruição maciça de infraestruturas causada pela operação militar israelita em curso.
O líder do ACNUR frisou que mais de dois milhões de habitantes de Gaza, metade dos quais crianças, atravessam um "inferno na terra", defendendo que o Conselho de Segurança supere as suas divisões e exerça a sua autoridade para exigir um cessar-fogo humanitário, de forma a "parar esta espiral de morte".
Fazendo uma análise do longo conflito israelo-palestiniano, Grandi recordou que, ao longo de muitos anos, observou como a resolução deste conflito foi sempre descrita como "ilusória" e "repetidamente e deliberadamente negligenciada, posta de lado como algo que não é mais necessário, quase ridicularizada".
"Lidar com o ressurgimento crónico da violência, seguido de cessar-fogos temporários, foi considerado mais conveniente do que concentrar-se numa paz real; uma paz capaz de proporcionar aos israelitas e aos palestinianos os direitos, o reconhecimento, a segurança e a condição de Estado que merecem", disse.
"Espero que agora, no meio dos horrores da guerra, possamos pelo menos ver quão grave foi o erro de cálculo", acrescentou o alto comissário.
Grandi frisou que não haverá paz na região e no mundo sem uma solução justa para o conflito israelo-palestiniano, "incluindo o fim da ocupação israelita".
O chefe do ACNUR disse ainda ser evidente que esta última e mais mortífera série de conflitos violentos corre o risco de alastrar-se não só a toda a região do Médio Oriente, como mais além.
"O conflito em Gaza é a mais recente -- e talvez a maior -- peça do mais perigoso quebra-cabeças da guerra que se aproxima rapidamente à nossa volta", sublinhou, chamando a atenção para outros conflitos que estão a ficar na sombra da situação em Gaza.
É o caso do Sudão, onde combates estão a aumentar em amplitude e brutalidade, "e o mundo está escandalosamente silencioso, embora as violações do direito humanitário internacional persistam impunemente", denunciou.
"É vergonhoso que as atrocidades cometidas há vinte anos no Darfur possam voltar a acontecer hoje com tão pouca atenção", criticou.
Entre outras crises que vão caindo no esquecimento, o diplomata italiano identificou ainda o Líbano, Sahel Central, Ucrânia ou República Democrática do Congo.
"Cada nova crise parece empurrar as anteriores para um perigoso esquecimento. Mas elas ficam connosco", assegurou Grandi, pedindo fundos para que os trabalhadores humanitários possam continuar a desenvolver o seu trabalho ao redor do mundo e levar "uma tábua de salvação para os necessitados".
Virando o seu discurso diretamente para os 15 Estados-membros que atualmente integram o Conselho de Segurança, Filippo Grandi afirmou que a gravidade deste momento exige respostas à altura por parte deste órgão das Nações Unidas.
"As escolhas que vocês os 15 fizerem -- ou deixarem de fazer -- irão marcar-nos a todos...e às gerações vindouras. Vocês continuarão a permitir que este quebra-cabeças de guerra seja completado por atos agressivos, pela vossa desunião ou por pura negligência? Ou darão os passos corajosos e necessários para sair do abismo?", questionou, concluindo a sua intervenção.
Até ao momento, o Conselho de Segurança já votou quatro projetos de resolução sobre o conflito em Gaza desde o ataque do Hamas, mas não conseguiu alcançar consenso em nenhuma dessas ocasiões, rejeitando todos os projetos a votos.
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