Em declarações à Lusa em antecipação da semana de alto nível da 79.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGA79), Richard Gowan disse acreditar que, após uma série de problemas que Guterres enfrentou ao longo deste ano, "ele também ficará desapontado" com a possibilidade da Cimeira do Futuro "não ser um sucesso maior" como idealizou.
A ONU sediará no domingo e na segunda-feira a Cimeira do Futuro, que ressaltará a necessidade inadiável de uma maior cooperação internacional para enfrentar desafios urgentes como mudanças climáticas, pobreza e desigualdade, ao mesmo tempo em que o mundo se debate com os impactos de conflitos e crises globais de saúde.
A ideia desta Cimeira foi lançada em 2021 por António Guterres, que vem pedindo aos Estados-membros "coragem" e "ambição máxima" nos estágios finais de negociação de três acordos a serem adotados no evento que reunirá em Nova Iorque dezenas de chefes de Estado e de Governo: o Pacto para o Futuro, o Pacto Digital Global e a Declaração sobre Gerações Futuras.
Contudo, apesar dos apelos do ex-primeiro-ministro português, a última versão do texto publicada no final de agosto é descrita por muitos observadores como desprovida de ambição.
"A Cimeira ocupou uma enorme quantidade de tempo e energia na ONU, mas não tenho a certeza se realmente dominará as manchetes, dentro ou fora da 'bolha' da ONU. (...) Muitos líderes importantes, incluindo o Presidente norte-americano, Joe Biden, vão falhar a Cimeira. Logo, acho que ela realmente não receberá muita atenção fora da ONU", avaliou Gowan.
"Guterres ficará pelo menos satisfeito com o facto de um dos principais focos da Cimeira ser melhorar a cooperação internacional em torno da Inteligência Artificial, que tem sido uma das suas prioridades de longo prazo. Essa é uma questão de legado para ele", acrescentou o especialista no sistema da ONU, Conselho de Segurança e em operações de manutenção da paz.
A comunidade internacional aguarda os resultados da tão antecipada Cimeira do Futuro, com Guterres a garantir que estão a ser registados potenciais avanços em frentes importantes, como a "linguagem mais forte sobre a reforma do Conselho de Segurança numa geração --- e o passo mais concreto em direção à ampliação do Conselho desde 1963".
Para Richard Gowan, uma das partes mais substanciais e inovadoras do Pacto para o Futuro é a secção sobre a reforma do Conselho de Segurança.
Apesar de não estabelecer um plano sobre como mudar o Conselho, define alguns princípios e um processo para acelerar as discussões sobre a reforma daquele que é o órgão mais poderoso da ONU e onde os seus membros permanentes - China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia - têm poder de veto.
"Acho que isso reflete o facto de que, literalmente, todos na ONU, incluindo os cinco Estados com poderes de veto, têm que admitir que o Conselho está a falhar atualmente em muitas crises importantes. Mas as negociações sobre a reforma vão arrastar-se", frisou.
O analista recordou ainda que o segundo e último mandato de cinco anos de Guterres aproxima-se do fim - termina em 2026 - e os candidatos para substituí-lo já estão em campanha.
"Acho que a maioria dos secretários-gerais da ONU acha os seus últimos anos no cargo bem difíceis, pois têm menos capital político. Suspeito que Guterres também esteja preocupado em ter que lidar com outro Governo de Donald Trump", disse, referindo-se ao ex-presidente norte-americano e atual candidato republicano à Casa Branca.
Sobre a UNGA79, Richard Gowan, que é diretor do departamento da ONU no ICG, uma organização não-governamental voltada para a resolução e prevenção de conflitos armados internacionais, anteviu à Lusa que o foco principal desta semana de alto nível serão as guerras em Gaza, Ucrânia e Sudão.
"Claro que muitas outras questões estão na agenda, como a saúde global. Mas depois de um ano de debates amargos sobre Gaza em particular, a história principal será a luta da ONU para manter a paz e a segurança internacionais", advogou.
Durante os discursos no debate geral, em que são esperados dezenas de chefes de Estado, de Governo ou ministros, o especialista acredita que quase todos os líderes se irão referir a Gaza e à necessidade de um cessar-fogo".
"Mas em muitos casos isso será simbólico. Acho que há uma triste perceção de que a ONU não tem poder para acabar com a guerra. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu comparecerá e provavelmente fará um discurso extremamente duro, do qual outros líderes não gostarão", disse.
Além disso, "tenho a certeza de que muitos líderes pedirão uma paz negociada na Ucrânia, mas não vejo essa questão a dominar as discussões, como aconteceu em 2022 ou no ano passado em Nova Iorque", acrescentou Gowan.
Por outro lado, o analista acredita que uma das crises que receberá muita atenção durante a UNGA79 é a guerra no Sudão.
"Os Estados Unidos estão a usar a Assembleia-Geral como plataforma para um grande impulso para um cessar-fogo sudanês, e acho que a maioria dos membros da ONU concorda que a guerra deve ser uma prioridade maior. Também é menos contenciosa geopoliticamente do que Gaza e Ucrânia", observou.
O debate decorrerá de 24 a 28 de setembro, e será retomado no dia 30.
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