Em entrevista à agência Lusa, à margem das Conferências do Estoril, na Nova SBE em Cascais, a advogada de direitos humanos afasta uma solução militar a longo-prazo para o conflito que assola o seu país desde fevereiro de 2022 e alerta que o mundo precisa de "outra qualidade" do sistema internacional: "É a nossa responsabilidade histórica".
Para a diretora de 41 anos da organização ucraniana Centro de Liberdades Civis, laureada com o Prémio Nobel da Paz no ano da invasão russa, apesar do direito à defesa que assiste às autoridades de Kiev, a via da confrontação militar "com as armas que a espécie humana agora tem", pode significar um futuro de "destino zero para todos".
Na fase em que a Ucrânia se encontra, sob ameaça de Moscovo, "é necessário usar a força legítima para restaurar a ordem mundial", mas essa, insiste, é uma solução de curto prazo.
"Temos de dar início a uma reforma fundamental do nosso sistema de paz e segurança, a fim de proporcionar garantias em matéria de direitos humanos e segurança a todos no mundo, independentemente de viverem ou não num país com um forte potencial militar, de fazerem parte de algum bloco ou se têm petróleo e gás", defende.
Nesse sentido, considera que "é muito realista criar já um tribunal especial" e organizar um julgamento, mesmo que à revelia mas com todas as garantias dos direitos das pessoas acusadas, dos responsáveis pela invasão russa e alcançar uma sentença.
Oleksandra Matviichuk sustenta que a "longa história de crimes contra a humanidade" apresenta casos de líderes e regimes que se consideravam intocáveis e enfrentaram um tribunal e que, no caso de uma instância especial para os dirigentes russos, a justiça teria "impacto no presente, não no passado ou no futuro", no conflito ucraniano.
"Os russos pensam que podem fazer o que quiserem porque cometeram crimes na Chechénia, na Moldova, no Mali e na Líbia e nunca foram punidos", observa, mas a rápida abertura de processos judiciais, ainda que lhes possa gerar a dúvida sobre a sua responsabilização, "essa dúvida seria convertida na redução da sua brutalidade".
Tendo em conta que há uma guerra em curso na Ucrânia, essa dúvida poderia ainda "salvar milhares, milhares e milhares de vidas", segundo a oradora das Conferências do Estoril que hoje disse que o Presidente russo, Vladimir Putin, pode não recear a NATO, mas tem medo da liberdade.
"É uma guerra entre dois sistemas, o autoritarismo e a democracia", afirma na entrevista à Lusa, destacando que o atual conflito militar na Ucrânia ultrapassa fronteiras em várias dimensões, como a informativa, a digital e a económica, e "é por isso que a Rússia está efetivamente a trabalhar em todas elas em vários países, e é por isso que Putin só vai parar quando for parado".
Oleksandra Matviichuk conta que, quando pergunta aos seus colegas ativistas russos como pode ajudá-los a enfrentar o autoritarismo e repressão do Kremlin, "eles respondem sempre 'sejam bem sucedidos', porque o sucesso da Ucrânia aumenta a possibilidade de um futuro democrático para eles próprios".
A Ucrânia "provou que as pessoas que lutam pela sua liberdade e pela sua dignidade são mais fortes do que o segundo maior exército do mundo", observa a diretora do centro cívico ucraniano, ao recordar que, nos primeiros dias da invasão, ninguém, nem sequer os aliados de Kiev, esperavam uma resistência tão longa contra um país com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, 140 milhões de habitantes, rico em petróleo e gás e a 11.ª maior economia mundial em 2022.
Para a população da Ucrânia, "não há outra opção" a não ser enfrentar o regime russo, que "diz abertamente que não existe uma nação ucraniana, que não existe uma língua ucraniana, que não existe uma cultura ucraniana", numa guerra existencial: "Se pararmos de lutar, deixamos de ser o que somos", argumenta.
"Há dez anos que documentamos a forma como isto funciona, convertida em práticas horríveis, quando as tropas da Rússia exterminam fisicamente a população local ativa", lamenta a Nobel da Paz, referindo-se a autarcas, padres, jornalistas, escritores, músicos e professores desde o levantamento pró-russo no Donbass, no leste do país em 2014, instigado pelo Kremlin, e da anexação ilegal da Crimeia, a que soma ainda a rescrita do património cultural ucraniano e a deportação de crianças para serem educadas como russas.
"Não sabemos o nosso futuro, mas sabemos com certeza que no presente temos de fazer tudo para o futuro que desejamos para nós e para os nossos filhos", prossegue a ativista, que deixa palavras de gratidão aos aliados de Kiev, pelo apoio ao seu país através do fornecimento de armas e de sanções contra Moscovo, mas também forte críticas.
Ao mesmo tempo que o auxílio ocidental "permitiu à Ucrânia sobreviver", Oleksandra Matviichuk lamenta que tenha decorrido mais de um ano até que os parceiros ocidentais decidissem enviar tanques modernos e mais de dois para chegarem os primeiros caças de combate, avisando que os debates e atrasos dos aliados "resultaram em numerosas mortes" que podiam ter sido evitadas.
Para a diretora do Centro de Liberdades Civis, existe uma grande diferença entre a narrativa de "ajudar a Ucrânia a não falhar" e "ajudar a Ucrânia a ganhar" e até mensurável através do armamento transferido para Kiev ou da gravidade das sanções impostas à Rússia e seus aliados.
"Por isso, temos de estabelecer um objetivo comum com os nossos parceiros internacionais", frisa a ativista e advogada que elenca este como "o principal desafio no momento atual", em que se observa o desrespeito pelas leis e instituições internacionais, mas que não é inédito na história da humanidade.
"A Segunda Guerra Mundial foi um período em que a lei não funcionou e cometeram-se atos terríveis", recorda, mas depois, frisa Oleksandra Matviichuk, as regras internacionais foram restauradas e as Nações Unidas e a União Europeia foram criadas.
"A ideia de que todas as pessoas são iguais nos seus direitos e liberdades tornou-se num humanismo pós-guerra", assinala num registo de otimismo.
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