Eurocéticos tomaram Itália e não haverá governo sem eles

Resultado das eleições em Itália ditou uma estrondosa derrota para os partidos tradicionais (Partido Democrático e Força Itália), ao passo que dois partidos eurocéticos (Movimento 5 Estrelas e Liga) conseguiram arrecadar metade dos votos. Num país fragmentado, o grande desafio é formar governo, sendo que tal não será possível sem contar, pelo menos, com um dos partidos fora do sistema partidário tradicional.

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Pedro Bastos Reis
11/03/2018 08:20 ‧ 11/03/2018 por Pedro Bastos Reis

Mundo

Eleições

Com o descontentamento com os partidos tradicionais, a desconfiança relativamente à União Europeia e os discursos populistas contra os imigrantes a aumentarem na Europa, muitos analistas já decretaram, diversas vezes, o começo do fim do projeto europeu. Talvez por esse motivo, cada nova eleição na Europa seja encarada como mais um teste à resiliência da União, à sua capacidade de resistir (ou adiar?) a tomada do poder por partidos fora do sistema tradicional. Depois do Brexit, Holanda, Áustria, França ou Alemanha foram alguns destes testes. Há precisamente uma semana, no passado dia 4, foi a Itália.

Se no caso holandês ou alemão vimos os partidos tradicionais saírem vencedores, embora enfraquecidos, o caso italiano é bastante diferente. Pela primeira vez no país, o centro-direita e o centro-esquerda foram derrotados e viram emergir dois partidos anti-sistema que conseguirem metade dos votos do povo italiano.

O grande vencedor foi o Movimento 5 Estrelas (M5S), partido que sempre se disse anti-sistema, formado em 2009 por um antigo comediante, Beppe Grillo. Nestes últimos anos, o partido foi mudando o discurso, suavizando algumas questões como a possibilidade de referendar a saída da União Europeia, mas o euroceticismo manteve-se. Agora liderado pelo jovem Luigi di Maio (tem apenas 31 anos), o M5S conseguiu 33% dos votos e dificilmente haverá governo em Itália sem o seu partido.

O segundo grande vencedor foi uma força de extrema-direita, a Liga, antiga Liga do Norte, anti-imigração que quer expulsar os refugiados do país e que cresceu substancialmente (conseguiu perto de 18%), ultrapassando o Força Itália de Silvio Berlusconi (não foi além dos 13%) tornando-se no principal partido de direita no país. O Partido Democrático (centro-esquerda) de Matteo Renzi, no poder, foi o segundo mais votado (perto de 19%), mas a derrota foi iminente. Numa Itália fragmentada, o grande desafio agora é estas forças políticas entenderem-se.

O tema da imigração foi o grande tema da campanha, uma forma de contornar outro grande tema para os italianos, que é o trabalho“Vai ser muito difícil, para já, formar um novo governo, porque não é possível formá-lo sem, pelo menos, a Liga ou o Movimento 5 Estrelas", começa por analisar Goffredo Adinolfi professor de Ciência Política no ISCTE em declarações ao Notícias ao Minuto. “Vão haver tentativas para formar governo mas para já é difícil antever o que vai acontecer”.

Imigração e trabalho

Antes de falar de vencedores e vencidos é necessário perceber como é que Itália chegou a este ponto de incerteza. A juntar à instabilidade económica e à disfunção política, os dois temas fraturantes que marcam a sociedade italiana são a imigração e o trabalho. Foi nestes dois assuntos sensíveis que o M5S e a Liga conseguiram impor-se e derrotar os partidos tradicionais.

"O tema da imigração foi o grande tema da campanha, uma forma de contornar outro grande tema para os italianos, que é o trabalho”, salienta Goffredo Adinolfi, que realça as diferenças entre os dois partidos nesta matéria. A Liga, liderada por Matteo Salvini, expandiu-se pelo país e conseguiu resultados históricos no sul, com uma agenda anti-imigração que explorou o descontentamento do eleitorado relativamente aos refugiados que chegam ao país pelo Mediterrâneo. O M5S, por seu turno, não fecha a porta aos refugiados, mas pede que sejam tomadas medidas para controlar a imigração.

A Força Itália está reduzida a um mínimo histórico e o Partido Democrático está quase nos seus mínimos históricos“A Liga e o M5E têm uma postura diferente, mas defendem a diminuição da taxa de imigração para fechar mais consistentemente as fronteiras”, resume o professor de Ciência Política. Já Manuel Loff, que denuncia o racismo e xenofobia da Liga, considera o discurso do M5S muito próximo do Partido Democrático.

"No que diz respeito à imigração, de tão plural e relativamente descontrolado que é, o M5S nunca se assumiu abertamente xenófobo e racista como Berlusconi ou a Liga mas, em determinados momentos, assumiu o mesmo discurso do PD, que é a ideia de que Itália não aguenta mais a chegada de refugiados do Mediterrâneo sem que a União Europeia assegure eficazmente uma política de redistribuição desses mesmos refugiados", sublinha o historiador e professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Parte do sucesso do M5S prende-se sobretudo com o descontentamento da esquerda e do centro-esquerda, tendo-se assistido a uma transferência de votos, sobretudo do Partido Democrático para Luigi Di Maio.

"Parte dos votos do Partido Democrático saíram para o M5S, porque o Partido Democrático, durante estes últimos cinco anos, não fez reformas ao nível do trabalho, o que não foi bem visto pela esquerda", afirma Goffredo Adinolfi, que, no entanto, não considera o M5S de esquerda. "Do ponto de vista económico definiria o M5S como razoavelmente de direita".

Por seu lado, Manuel Loff discorda e coloca o partido de Luigi Di Maio mais próximo da esquerda do que da direita. "O M5S associa-se a uma crítica das medidas de austeridade e apresentou a ideia do rendimento mínimo para todos os cidadãos. Por outro lado, são favoráveis à manutenção da interrupção voluntária da gravidez, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, aspetos tipicamente liberais que o aproximam mais da esquerda ou do centro-esquerda do que da direita".

A derrota dos partidos tradicionais

Independentemente do posicionamento ideológico do M5S, a verdade é que conseguiu derrotar os partidos tradicionais, impondo uma derrota pesada, sobretudo a Matteo Renzi. A isto acresce o facto da Liga, à direita, ter conseguido ultrapassar o Força Itália de Silvio Berlusconi. Nas palavras de Manuel Loff, assistimos à derrota dos partidos tradicionais.

O primeiro plano de Berlusconi era ficar à frente da Liga e liderar a coligação de centro-direita“A Força Itália está reduzida a um mínimo histórico e o Partido Democrático está quase nos seus mínimos históricos”, sublinha o historiador, considerando que a “alteração de fundo é mais favorável ao M5S do que à Liga”.

No entanto, ao ultrapassar Berlusconi, Salvini marcou uma posição e é agora o líder da direita italiana, colocando o ex-primeiro-ministro italiano numa situação que o próprio não esperava. Impedido de assumir cargos políticos até 2019 devido a uma condenação por evasão fiscal, Berlusconi pretendia controlar a política italiana pelos bastidores. Na sua cabeça, assim como na de Renzi, estaria uma grande coligação entre Força Itália e Partido Democrático.

"O primeiro plano de Berlusconi era ficar à frente da Liga e liderar a coligação de centro-direita. O programa da Força Itália era muito mais compatível com o Partido Democrático do que com a Liga, portanto é possível imaginar que o plano de Berlusconi e de Renzi fosse fazer um governo de grande coligação", analisa Goffredo Adinolfi.

Mas os dois grandes partidos italianos ficaram num vazio. A Força Itália, diz o professor do ISCTE, “está muito dependente de Berlusconi e, para além disso, muitas das medidas do partido estão gastas, enquanto Santini mudou bastante a Liga, transformando-a num partido nacional". Já o Partido Democrático parece estar a ser vítima do que já aconteceu noutros países europeus, com os partidos sociais-democratas a caírem a pique em termos de votos.

“A derrota do Partido Democrático soma-se às terríveis derrotas dos socialistas franceses, dos sociais-democratas na Alemanha, dos socialistas espanhóis, dos socialistas holandeses e, de um caso mais extremo, do PASOK na Grécia. A esquerda italiana está totalmente desorientada e fundamentalmente desmobilizada", constata Manuel Loff.

Combinações possíveis

É neste cenário complexo que os políticos italianos terão de formar governo, um processo negocial que poderá demorar semanas e que, eventualmente, poderá precipitar novas eleições. Tanto o M5S como a Liga já manifestaram a vontade de governar. Falta saber com quem.

Itália é a terceira maior economia da União Europeia, e por isso é grande demais para que Bruxelas se arrisque a aceitar o M5SMatteo Renzi, quando bateu com a porta e apresentou a demissão do Partido Democrático, disse que o o partido “não faz coligações com extremistas”, um recado a Luigi Di Maio. No entanto, dentro do partido, há quem equacione uma coligação com M5S, quiçá na esperança de moderar o partido criado por Beppe Grillo. Em termos programáticos, diz Manuel Loff, Partido Democrático e M5S não estão assim tão distantes, daí que uma coligação entre os dois não fosse assim tão surpreendente.

"Analisando os programas, é mais fácil, de todas as combinações possíveis, uma coligação entre o M5S e o Partido Democrático. Há tensão, seguramente, no campo da política europeia, mas noutras áreas é perfeitamente possível esse acordo, apesar de quem aceitar negociar com o M5S saber que tem de aceitar uma série de alterações no sistema político, o que não agrada aos partidos tradicionais", faz sobressair o professor da Universidade do Porto.

Um outro cenário que tem sido avançado por alguns media italianos e também por Renzi e Berlusconi é o de uma coligação entre M5S e a Liga. No entanto, diz Goffredo Adinolfi, “é difícil” que tal aconteça, "porque há o risco de a Liga ser 'comida' pelo M5E. É muito difícil prever o que pode acontecer no futuro". Nesse sentido, a ter de apostar numa solução governativa, o professor do ISCTE parece mais inclinado para um acordo entre M5S e Partido Democrático.

Há ainda a possibilidade de uma grande coligação de direita, que englobasse também o Irmãos de Itália (teve pouco mais de 4% dos votos), um cenário trágico para os imigrantes e refugiados em Itália, principais alvos destes partidos.

Perante a indefinição, a União Europeia observa e todos os cenários parecem ser preocupantes para Bruxelas. Para que seja formado um novo governo em Itália, a Liga ou M5S terão de estar incluídos. Ou seja, não há como impedir a chegada ao poder de partidos eurocéticos, o que, analisa Manuel Loff, revela um duplo critério das instituições europeias, preocupadas com a chegada ao poder do M5S mas indiferentes perante os partidos de extrema-direita que estão no poder, ou que o influenciam, na Europa.

"Itália é a terceira maior economia da União Europeia, e por isso é grande demais para que Bruxelas se arrisque a aceitar o M5S. Mas gostaria de acrescentar que Bruxelas não está preocupada com o facto de em grande parte dos países europeus a extrema-direita estar no poder com partidos pertencentes ao Partido Popular Europeu. Criou-se um cordão sanitário contra os eurocéticos, mas só os mais à esquerda, porque os mais à direita estão no poder em vários lugares", denuncia.

Das várias combinações possíveis, poucos analistas arriscam numa solução óbvia. Itália está fragmentada, em mutação, e é praticamente impossível prever o desfecho perante os resultados das eleições. Nas próximas semanas não se joga só o futuro de Itália. A Europa terá muitas lições a retirar destas eleições. 

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