"Cadeias são as faculdades da criminalidade. Ninguém sai de lá melhor"

Suzana Garcia, advogada e comentadora de casos judiciais no programa ‘Você na TV!’ da TVI, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

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Patrícia Martins Carvalho e Mariline Direito Rodrigues
29/11/2019 08:30 ‧ 29/11/2019 por Patrícia Martins Carvalho e Mariline Direito Rodrigues

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Suzana Garcia

A sua personalidade forte e crítica é o seu principal traço, pelo menos à primeira vista. Numa entrevista ao Notícias ao Minutoque dividimos em duas partesSuzana Garcia, que ficou conhecida do grande público através da antena da TVI, falou da sua infância em África, onde nasceu.

Foi com ternura que, de lágrimas nos olhos, recordou o seu pai, a pessoa a quem não quer desiludir, apesar de já ter morrido.

Numa conversa descontraída junto à praia - e entre acenos a conhecidos que se cruzavam connosco - Suzana Garcia contou como decidiu ser advogada e as razões que a levaram a mudar o seu rumo profissional. “O mais importante na minha vida é que o meu pai, onde está, olhe para baixo orgulhoso e diga às pessoas que estão à volta dele ‘aquela é a minha filha’", confidenciou. 

Quando é que decidiu ser advogada?

Quando tinha cinco anos. 

E por que escolheu esta profissão?

O meu pai contava-me muitas histórias e uma era a das irmãs Indignação e Coragem que eram filhas da Esperança. Quando havia uma injustiça, a Indignação ficava a ‘ferver’, ficava muito vermelha e eu identificava-me com isso porque sou muito branca e coro com frequência. A irmã Coragem era a que resolvia as situações e ‘metia ordem’ na injustiça. O meu pai dizia-me que na vida temos de ter a capacidade de nos indignarmos com as injustiças que vemos à nossa volta, mas temos, sobretudo, de ter coragem para as mudar. E se não tivermos a capacidade de nos indignarmos e a coragem para mudar as injustiças, então não há esperança. 

Foi assim que chegou à advocacia?

Bom, depois de ouvir esta história lembro-me de perguntar ao meu pai o que é que eu podia fazer para alterar as injustiças. O meu pai, que era progressista e até acho que é por isso que sou feminista – sou feminista, não sou oportunista – dizia-me que eu podia ser o que quisesse: polícia, advogada ou juíza. E um dia, à mesa de jantar, coloquei as mãos em cima da mesa e notifiquei a minha família de que ia ser advogada.

Um dia mais tarde vim a Lisboa passear com o meu pai na Avenida da Liberdade e disse-lhe que um dia ia ter um escritório naquela avenida. E tive! Eu sempre soube que queria ser advogada e ainda bem, porque o curso é dos mais… 

Difíceis?

Não. Difícil é uma licenciatura em astrofísica. Medicina e Direito não são cursos difíceis em termos de complexidade neurológica, são cursos que requerem uma grande capacidade de ‘empinanço’ e memória e memória não é sinónimo de inteligência. Foi uma licenciatura difícil para mim porque não apela ao raciocínio nos dois primeiros anos e o meu cérebro precisa de respirar e respirar é o que o meu pai me ensinou: ter juízo crítico e refletir sobre as coisas. 

Esta resposta vincula-me apenas a mim: quando fazemos Penal a sério, ou não temos bem consciência da implicação das nossas condutas, ou então tornamo-nos pessoas imorais e até quase amoraisHouve algum momento em que se tenha arrependido da profissão que escolheu?

Não, nunca. 

E era o que esperava?

Era e eu escolhi a área que sempre tinha desejado. Quando queremos ser advogados não pensamos em ir para especialidades como Direito Fiscal. Quem escolhe isso são pessoas que não têm vocação para a advocacia, querem dinheiro, fazem uns pareceres e pronto. Eu escolhi o Penal. Fui muito boa advogada criminalista – e ainda hoje sou. Conheço o Código [Penal] todo, mas cheguei a uma fase da minha vida em que comecei a ter muitas dificuldades.

Que tipo de dificuldades?

Nós temos fronteiras morais e quando somos advogados em Penal e defendemos alegados criminosos – que não são assim tão alegados – então as nossas fronteiras vão-se flexibilizando. Um dos primeiros casos que fiz foi em Peniche: um homem que matou a mulher e o amante dela. Fez coisas horríveis à mulher como o cano da caçadeira. Enfim. Lembro-me de ter ido para casa e relativizar e é isso que vamos fazendo: vamos relativizando. 

Pode dizer-se que há uma perda de valores?

Esta resposta vincula-me apenas a mim: quando fazemos Penal a sério, ou não temos bem consciência da implicação das nossas condutas, ou então tornamo-nos pessoas imorais e até quase amorais. Eu não posso, em consciência, colocar um criminoso na rua – e pu-los – sem pensar nas consequências. Eu defendi números 2 e 3 do ranking de traficantes. Quando permito que uma pessoa destas saia da prisão antes de cumprir a pena eu também sou corresponsável por todas as pessoas flageladas pelo rastro da droga e são muitas. E eu comecei a pensar que tinha que fazer uma escolha: ou ia por esta via – e ganha-se muito dinheiro em Penal – ou colocava já um ponto final nisto e seguia outra via porque ainda estava a tempo. 

E quando é que se dá essa mudança?

Em plena crise económica, em 2007/2008. Decidi mudar a minha carreira e fazer Penal a defender as vítimas e não os arguidos e também fazer Direito da Família que é a minha segunda grande área. Foi uma opção muito difícil, porque eu já tinha um escritório na avenida mais cara do país, uma vida diferente e isso teve muitas repercussões económicas na minha vida… foram tempos difíceis, mas que Deus me permitiu ultrapassar. A grande pergunta que me fazia a mim mesma era se o meu pai estaria orgulhoso do que eu estava a fazer e a verdade é que não podia estar. E isso é o mais importante na minha vida: que o meu pai, onde está, olhe para baixo orgulhoso e diga às pessoas que estão à volta dele ‘aquela é a minha filha’.

Lembra-se do primeiro caso que defendeu?

Perfeitamente. Era um nigeriano, pai de 13 filhos, que dizia que era jogador de ténis e que estava ilegal no país. Fui obrigada a defendê-lo porque fui nomeada para uma oficiosa. Consegui que saísse em liberdade e só foi preso à oitava vez que foi apanhado a conduzir sem carta. O senhor doutor juiz deixou-me falar e depois disse que a minha promoção tinha sido muito emocional, mas que ainda não estávamos na fase das alegações finais. Foi uma ótima demonstração da paciência que os juízes às vezes têm. Não o disse para me diminuir, mas sim para me instruir.

A forma como a notícia é dada é muito importante porque tem um impacto na banalização da criminalidade e aí a responsabilidade já é dos media. E quando digo media, digo também dos consumidores, porque vivendo numa sociedade de informação quem é o ‘maestro’ disto tudo é a opinião pública Todos os dias são noticiados casos de violência, alguns até com um certo requinte de perversidade. O que está a acontecer aos valores da sociedade? A Justiça também tem um papel importante nesta questão?

A Justiça tem um papel em tudo, como a Comunicação Social também tem. Sobre se estamos a perder valores, e atendendo ao que são as notícias veiculadas no mundo inteiro, tenho que dar uma resposta com duas vertentes. Por um lado, vivemos cada vez mais num Estado penal e se pensarmos bem nunca tivemos uma sociedade tão segura como a que temos hoje, ao mesmo tempo que temos perceção da insegurança que está a acontecer ao lado.

Mas também temos uma coisa muito boa que pode funcionar muito mal que é a Comunicação Social. Nós hoje temos uma consciencialização diferente e vocês fazem notícia daquilo que antigamente não era notícia. Mas a forma como a notícia é dada é muito importante porque tem um impacto na banalização da criminalidade e aí a responsabilidade já é dos media. E quando digo media, digo também dos consumidores, porque vivendo numa sociedade de informação quem é o ‘maestro’ disto tudo é a opinião pública, não são os jornalistas. 

Que consequências podem advir desta “banalização da criminalidade”?

Nós hoje em dia vivemos numa sociedade em que a violência é cada vez mais banalizada. As crianças estão todas automatizadas porque têm sempre um telemóvel ou um tablet porque vão começar a fazer birra se estiverem a ouvir a conversa dos adultos. Mas tem que ser. Nós temos que perder tempo a empatizar os nossos jovens e crianças. Eles têm muita falta de empatia. 

Quão grave é a falta de empatia?

A falta de empatia numa sociedade é a porta aberta para a crueldade e mediocridade existencial. A falta de empatia pelo outro é o que permite a alguém acossar outra pessoa numa plataforma pública virtual cobardemente; a falta de empatia pelo outro é o que permite a alguém pegar numa arma e matar ou agredir o pai ou a mãe; a falta de empatia pelo outro é a justificação para a maioria dos problemas da sociedade. Não é possível ter seres humanos empáticos quando estão todo o tempo monitorizados pela televisão, pelo telemóvel e pelo iPad

Pode dizer-se que há hoje mais violência do que havia antigamente?

Não acho que haja mais violência hoje, acho é que há uma maior mediatização da violência que tem repercussões no desvalor que vamos dando aos graus de violência que existem. E há uma grande desresponsabilização por parte de alguns órgãos de comunicação social que deviam ter uma resposta mais acintosa por parte dos colegas e dos órgãos de regulação. Por isso é que alguns canais de televisão não se veem em minha casa e o mesmo se aplica a revistas. 

Cada casa é uma casa, cada caldo cultural é um caldo cultural e a mim não me apetece estar a diminuir um pai que acha que de vez em quando uns bons açoites no rabiosque do filho assentam bemA violência entre os jovens é consequência desta falta de empatia?

Claro que sim. Não nos podemos esquecer que os níveis de violência a que as gerações anteriores estavam sujeitas não são os níveis de violência a que os jovens de hoje estão sujeitos. Os filmes que os jovens de há uns anos viam era ‘Música no Coração’ e os de hoje são completamente diferentes. Os pais não tiveram tempo para educar de acordo com aquilo que era o padrão deles, por isso é que eu não gosto que se faça julgamentos tão sumários quando se diz que um pai não deve bater no filho. 

Uma juventude sem freios é uma juventude sem empatia, egocêntrica e narcisista. Um jovem assim é um potencial futuro criminoso Qual é a sua opinião sobre este tema?

Nós sabemos como as coisas são em termos teóricos. Mas cada casa é uma casa, cada caldo cultural é um caldo cultural e a mim não me apetece estar a diminuir um pai que acha que de vez em quando uns bons açoites no rabiosque do filho assentam bem. Há uns anos os pais tinham maior autoridade e incutiam disciplina. Hoje a falta de relacionamento e proximidade que existe entre pais e filhos faz com que mitiguem a sua posição parental e achem que a sua função é serem amigos dos filhos. Não é. Os pais são também amigos dos filhos, mas têm muitas outras funções e a de amigo está para o fim da lista. O que acontece é que há uma grande falta de disciplina incutida pelos pais e isso resulta numa juventude sem freios e uma juventude sem freios é uma juventude sem empatia, egocêntrica e narcisista. Um jovem assim é um potencial futuro criminoso.

Esta falta de autoridade explica as agressões aos professores?

Explica necessariamente as agressões aos professores. Todas as figuras que representam autoridade sofrem consequências dessa erosão educacional. Antigamente costumava dizer-se que os pais educavam e os professores ensinavam. Mas a que horas vão os pais educar quando saem de manhã para trabalhar e chegam a casa ao final do dia? Acha que é em duas horas e pouco que alguém consegue exercer a sua parentalidade de forma adequada? É evidente que não. Essa falta de disciplina e autoridade é o que leva uma aluna a dizer a uma professora que não a pode obrigar a arrumar o equipamento de ginástica, porque a mãe também não a obriga. E assim os professores tornam-se alvos fáceis porque lidam diariamente com aquelas criaturas. 

À função de ensinar soma-se assim a de educar?

Hoje em dia, os professores não só têm de ensinar, como têm de educar, mas eles só deveriam ter de ensinar. E a isto acresce ainda a agravante de que queremos que o professor eduque os nossos filhos, mas sem o mesmo poder que nós, porque não lhe damos a possibilidade de dar um açoite às crianças. E está certo, porque o professor não tem de agredir, mas isto não tem sentido racional nenhum. Se eu acho que a criança também deve ser educada com dois tabefes na cara não percebo por que ordem lógica é que o outro também não pode educar com as mesmas armas. 

As cadeias são as faculdades da criminalidade, uma pessoa entra a saber uma coisa e sai a saber 99

A lei da criminalidade juvenil é a adequada?

Nós temos um regime que considera que até uma certa idade a criança é inimputável. A partir dos 12 e até aos 16 é imputável mas tem uma inimputabilidade penal e então é-lhe aplicado o regime chamado Lei Tutelar Educativa. Em abono da verdade na teoria está bem, porque eu não posso tratar uma criança de 12 anos como se estivesse a tratar um delinquente de 20 ou 40 anos. E não comungo dessas ideias que por aí pululam de achar que a solução está na repressão e no aumento da criminalização de pequena monta. Parece-me bem que dos 12 ao 16 anos se aplique a Lei Tutelar Educativa, já dos 16 aos 21 é aplicado um regime especial a jovens delinquentes.

O que quer isso dizer?

Quer dizer que até aos 21 anos o legislador tenta ao máximo resgatar a pessoa para a sociedade, porque eu sei que se colocar um jovem destes na cadeia… As cadeias são as faculdades da criminalidade, uma pessoa entra a saber uma coisa e sai a saber 99. 

É uma questão de melhorar as políticas de socialização dos reclusos?

Mesmo com as melhores políticas de socialização ninguém sai da cadeia melhor do que aquilo que entrou. As cadeias são um antro de gente abjeta e que é toda inocente. Aliás, as prisões são o território a nível mundial com maior concentração de pessoas inocentes por metro quadrado. 

É preciso pensar a criminalidade juvenil?

Poderíamos pensar sobre esse assunto, embora também diga que não acho que a criminalidade juvenil seja um grande dilema existencial no panorama da criminalidade nacional. Temos criminalidade bem mais grave para discutirmos, pensarmos e alterarmos. E mais: é essa criminalidade dos adultos que influi em comportamentos violentos nos jovens. 

Como por exemplo?

Um miúdo que vive num ambiente de violência doméstica das duas uma: ou se vai identificar com a vítima ou se vai identificar com o agressor. Quando somos muito jovens tendemos a identificar-nos com o agressor, porque percebemos que ao identificarmo-nos com as vítimas ficamos também nós desprotegidos. É por isso que, se se identificam com as vítimas, tendem a não socializar na escola com medo de serem também ali vítimas de violência, e, se se identificam com os agressores vão reagir de uma forma agressiva para com os colegas porque é o padrão que veem em casa e percebem que o agressor acaba por conseguir sempre o que quer. 

Então uma criança vítima de violência doméstica pode vir a ser um potencial agressor?

Não é necessário que venha a ser um agressor, mas é um risco muito grande e já para não falar na repercussão que isso tem em termos académicos e em termos de desenvolvimento pessoal e psicológico, porque uma criança que está a viver numa arena destas está aberta a sofrer stress pós-traumático e eu acho que é inadmissível que a sociedade permita isso.

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