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"Risco da Covid grave é muitíssimo superior ao risco da vacina"

Luciana Ricca Gonçalves, médica do Serviço de Imunohemoterapia do Hospital São João, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"Risco da Covid grave é muitíssimo superior ao risco da vacina"
Notícias ao Minuto

09:05 - 29/03/21 por Filipa Matias Pereira

País Covid-19

O percurso da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford sofreu, recentemente, um volte-face. Eventos tromboembólicos em pessoas a quem tinha sido administrado o imunizante fizeram 'soar os alarmes' e, em 'catadupa', diversos países suspenderam temporariamente a vacina. 

Portugal foi o 19.º país a suspender a administração da vacina da AstraZeneca, mas acabou por ser um dos primeiros a retomá-la depois de o regulador europeu ter dado 'luz verde' e ter reiterado que o fármaco de Oxford é "seguro e eficaz” e que os benefícios ultrapassam os riscos. Após análise dos casos reportados, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, sigla em inglês) concluiu que a vacina não está associada com o aumento do risco geral de evento de tromboembolismo ou coágulos.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Luciana Ricca Gonçalves, médica do Serviço de Imunohemoterapia do Hospital São João, destaca a importância de manter a vacinação contra a Covid-19, já que o risco de ter uma forma grave da doença "é muitíssimo superior ao risco de efeitos adversos da vacina e não só da AstraZeneca, mas de todas as vacinas aprovadas". 

Depois de a vacina da AstraZeneca ter sido suspensa em diversos países, em Portugal inclusive, a EMA considerou que o imunizante é “seguro e eficaz”. Já esperava esta decisão?

A EMA aprovou a vacina de acordo com critérios que estão bem estabelecidos, tanto em relação à eficácia como à segurança. E, portanto, a vacina não estaria a ser distribuída por todos os países se não tivesse havido essa certificação. 

Esta posição só veio demonstrar que a EMA está atenta aos possíveis efeitos adversos que podem ocorrer com a administração de qualquer fármaco, incluindo as vacinas. Todos os fármacos que são aprovados são avaliados de forma contínua ao longo da sua existência, um processo designado por farmacovigilância, que assegura o reporte de potenciais efeitos adversos extremamente raros, dado abranger toda a população e não apenas aquela que foi selecionada no âmbito dos ensaios clínicos.

Os governos europeus que optaram pela suspensão temporária da vacina, perante os efeitos adversos registados, foram precipitados?

Não manifesto opinião sobre decisões governamentais. Foram medidas provavelmente de precaução, mas, de facto, a EMA é a entidade responsável pela análise da eficácia e segurança destes fármacos na UE.  

Importa clarificar que estamos a falar de eventos tromboembólicos e na população geral há uma incidência relativamente elevada destes eventos, nomeadamente o tromboembolismo venoso - tromboses venosas e embolia pulmonar -, que tem uma incidência que ronda os 50 a 150 casos por 100 mil habitantes, ou seja, 500 a 1.500 doentes por milhão de habitante por ano, na Europa. 

Falamos, no fundo, de uma patologia multifatorial que é a terceira causa mais importante de patologia cardiovascular na Europa. Em relação ao que foi relatado relativamente à vacina, não parece haver um aumento do risco de eventos tromboembólicos nestes doentes

E são patologias com vários fatores de risco. 

Sim, estes eventos têm vários fatores de risco. Os problemas cardíacos, respiratórios, o cancro, fatores hereditários, todos eles se correlacionam com um aumento do risco trombótico. Sabemos, por exemplo, no caso das mulheres, que há anticoncecionais combinados e algumas terapêuticas hormonais de substituição prescritas na altura da menopausa que também aumentam o risco trombótico. 

Falamos, no fundo, de uma patologia multifatorial que é a terceira causa mais importante de patologia cardiovascular na Europa. Em relação ao que foi relatado relativamente à vacina, não parece haver um aumento do risco de eventos tromboembólicos nestes doentes. 

Em relação às tromboses venosas cerebrais que foram relatadas, é difícil falar de aumento porque é uma patologia que muitas vezes é subdiagnosticada, os sintomas são variáveis e obriga a exames de imagiologia.

No que se refere aos casos em que doentes apresentaram trombocitopenia (diminuição do número de plaquetas), naquilo que parece ser uma síndrome semelhante à coagulação intravascular disseminada, pode haver hemorragias associadas também a microtrombos, que são situações relativamente raras e que tem várias causas. 

Não podemos afirmar que não há qualquer relação causa-efeito com a vacina, mas também não podemos dizer que existe. O processo de farmacovigilância prosseguirá o seu curso normal e o futuro se encarregará de clarificar esta situação.

O risco da Covid-19 grave é muitíssimo superior ao risco de efeitos adversos da vacina e não só da AstraZeneca, mas de todas as vacinas aprovadas


Vários especialistas têm alertado que os riscos da Covid-19 grave são superiores aos da vacinação. Concorda?

O risco da Covid-19 grave é muitíssimo superior ao risco de efeitos adversos da vacina e não só da AstraZeneca, mas de todas as vacinas aprovadas. A EMA frisou que era muito importante manter a vacinação e nós não nos podemos esquecer disso. A Covid-19, em situações graves, está associada a uma taxa de mortalidade significativa, com internamentos e permanência em cuidados intensivos com uma grave repercussão no nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS). 

Habitualmente, os doentes graves com Covid-19 são aqueles que têm outras comorbilidades e que, por si só, mesmo sem Covid-19, têm mais complicações, nomeadamente estes eventos trombóticos. Portanto, sabemos que os doentes com mais comorbilidades devem ser os primeiros a serem vacinados, mas esta é também a faixa da população que tem maior probabilidade de desenvolver complicações precisamente por essas comorbilidades. Mas é importante passar a mensagem de que a vantagem da vacinação é muito superior ao potencial risco de qualquer vacina. 

Na Alemanha, foram reportados casos de tromboses venosas cerebrais. Face a esses casos, um especialista fala de um aspeto importante. Ele diz que devemos comparar doentes vacinados mais velhos, com comorbilidades e que possam ou não ter tido algum tipo de complicação, com população não vacinada da mesma faixa etária e com comorbilidades semelhantes. Aí vamos perceber qual é a incidência dessas complicações nesses grupos, sendo a única forma, na realidade, de perceber se há ou não algum risco aumentado associado à vacina. 

Desde que Portugal retomou a vacinação com o imunizante da AstraZeneca, começaram a surgir relatos de recusas em receber a vacina. Que esclarecimentos adicionais podem ser dados a estas pessoas para aumentar a confiança?

É importante demonstrar que os mecanismos de aprovação e de vigilância após aprovação estão a funcionar. Acho que foi uma boa iniciativa haver pessoas com notoriedade pública, como os primeiros-ministros francês [Jean Castex] e britânico [Boris Johnson], decidirem fazer a vacina da AstraZeneca um dia após a comunicação da EMA. Isso ajuda a demonstrar junto das populações que há confiança.

Quais os sintomas de ‘alarme’ a que as pessoas vacinadas contra a Covid-19 devem prestar atenção?

Quando as pessoas são vacinadas, devem ser explicados alguns sintomas, assim como aos profissionais de saúde que atendem estes doentes. Por exemplo, em relação às tromboses nas pernas, deve prestar-se atenção ao aparecimento de alguma dor, de inchaço, edema e vermelhidão na perna. 

Em relação à embolia pulmonar, as pessoas devem estar atentas a alguma falta de ar, ao aumento da frequência respiratória, taquicardia, fadiga exagerada e sensação de desmaio. 

Já no que às tromboses venosas cerebrais diz respeito, os sinais de alerta são, quando há uma associação temporal à vacina, as cefaleias (dores de cabeça), que são de difícil controlo com analgésicos. 

Também foi destacado o aparecimento de hemorragias, por isso devemos alertar as pessoas para prestarem atenção ao aparecimento de equimoses e hematomas. No fundo, falamos de alguma reação à vacina que lhes pareça pouco habitual. 

Aliás, aqui, no Hospital, todos recebemos um 'link' para reportarmos potenciais efeitos adversos que tivéssemos tido em relação à vacina.  Isto faz parte, no fundo, da farmacovigilância. Temos de reportar as potenciais reações adversas, sendo que posteriormente se verifica muitas delas não estarem relacionadas com a vacina.

É natural, portanto, que após o ensaio clínico sejam reportados efeitos adversos que não tinham sido registados na amostra da população selecionada? 

Sim, faz parte até porque sabemos que, durante os ensaios clínicos, algumas populações são incluídas num número reduzido. Por exemplo, os doentes com HIV [incluídos no ensaio] foram em número reduzido. E sabemos que as pessoas com mais de 65 anos representaram à volta de 12% no estudo de fase III apresentado aos Reguladores. Apesar disso, alguns países condicionam a utilização desta vacina a indivíduos com mais de 65 anos. Mas esta decisão não tem que ver com mais complicações durante o ensaio clínico. Tem que ver com o número baixo dessas pessoas que foi incluído no ensaio clínico. 

O Centro Hospitalar Universitário de São João foi uma das unidades de saúde mais fustigadas pela pandemia na primeira vaga. Como foi, pela experiência de quem testemunhou a realidade hospitalar, este ano de Covid?

No Serviço de Imunohemoterapia damos apoio a várias situações, mas não estamos na primeira linha. Porém, deu para perceber que temos uma unidade de cuidados intensivos que trabalha com altíssima eficiência e que tem uma capacidade extraordinária de resolver problemas, nomeadamente com a implementação da técnica de ECMO [oxigenação por membrana extracorporal]. A disponibilização desta técnica a um número muito elevado de doentes permitiu, aliás, que o nosso Hospital desse apoio a outros hospitais nacionais.

Neste momento, estamos a tentar que não haja prejuízo para as outras populações porque, realmente, os doentes não são só os Covid. Há uma enorme população que precisa de cuidados de saúde e tentamos sempre dar resposta a essas situações.

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