IPMA. "Temos de estar preparados para fenómenos como um furacão"

O investigador e dirigente na divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), Ricardo Deus, é o entrevistado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

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© Orlando Almeida / Global Imagens

Marta Ferreira
29/07/2022 07:35 ‧ 29/07/2022 por Marta Ferreira

País

Ricardo Deus

Os máximos de temperatura sentidos a meio do mês de julho fizeram soar os alarmes da população, não só em Portugal, mas também um pouco por toda a Europa, onde temperaturas recorde varreram várias cidades

As ondas de calor, cada vez mais frequentes, tornaram-se uma questão ainda mais debatida na sociedade e se uns reivindicam mudanças para travar as alterações climáticas, também há o outro lado da moeda: os que negam as alterações climáticas

O Notícias ao Minuto falou com Ricardo Deus, investigador e dirigente na divisão de Clima e Alterações Climáticas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), sobre a situação atual e o que reserva o futuro, nomeadamente no âmbito do clima. E, sim, a existência de quatro estações parece mesmo ser coisa do passado. Ricardo Deus assume que Portugal passará a viver um clima mais quente e seco em que a primavera e outono estarão "mais disfarçadas". 

O que fazer? Na visão do investigador, adaptação é a palavra-chave nos próximos anos.

"Projeções de cenário futuro apontam exatamente para uma maior frequência, uma maior intensidade e uma maior exposição das ondas de calor"

De que forma se pode explicar a onda de calor que se fez sentir em julho?

As ondas de calor são um fenómeno - se assim podemos chamar - que de alguma forma faz parte da caracterização climática do nosso território continental. Acho que é importante percebermos todos isso. Aquilo que se tem verificado nos últimos anos é uma frequência muito maior deste tipo de fenómeno, o que acaba por torná-lo muito mais marcante e impactante para todos nós e, por isso, é que todos nós estamos um bocadinho mais sensíveis à temática das ondas de calor.

Poderão acontecer com maior frequência nos próximos anos?

Quanto a projeções de cenários de clima futuro, este aumento da frequência e a transformação deste tipo de fenómeno – isto é, serem mais intensos e extensos no território continental, durarem mais tempo – faz com que estes resultados deste cenário futuro encaixem naquilo que estamos agora a experienciar. Isto é, as projeções de cenário futuro apontam exatamente para uma maior frequência, uma maior intensidade, uma maior exposição, portanto, na prática, os cenários de clima futuro estão a ser verificados com aquilo que está a acontecer atualmente.

Existem projeções para o número de vezes que estes fenómenos possam ocorrer e as temperaturas que possam atingir?

O cenário ou aquilo que estamos a verificar é que a temperatura média do nosso território continental tem vindo a aumentar nos últimos anos e, portanto, isto é algo que está a ser verificado. Acontecendo, faz com que os valores médios da temperatura sejam mais elevados e, assim, estaremos mais vulneráveis a que as condições de uma onda de calor se verifiquem. Isto acaba por ser um bocadinho alarmante, tendo em conta que os cenários de calor futuro apontam para um aumento da temperatura média no nosso território e, consequentemente, estes fenómenos extremos também vão acontecer mais vezes. Tudo se conjuga para que passemos a ter mais fenómenos destes a acontecer mais vezes e mais intensos.

 Tudo isto é sinal que as temperaturas máximas vão subir e as temperaturas mínimas também subir

Há uma estimativa de temperaturas máximas que possam ser atingidas, por exemplo?

Quando falamos nestas questões, falamos sempre em termos de valores médios. Não é correto falar em valores absolutos. Falamos em valores médios, portanto, um valor médio da temperatura do continente subir 1,2 graus ou 2 graus já é muito, porque estamos a falar precisamente de um valor médio que incorpora valores mais elevados e mais baixos. Tudo isto é sinal que as temperaturas máximas vão subir e as temperaturas mínimas também subir.

Embora pareça óbvio, é importante que seja explicado. Qual a relação entre as ondas de calor e as alterações climáticas?

Está em linha com aquilo que ao longo das últimas duas ou três décadas se começou a apresentar como cenários de calor futuro. Aquilo que estamos a verificar – temperaturas médias mais elevadas, valores mais baixos de precipitação – tudo isto encaixa nestas projeções. O que quer dizer é que, de alguma forma, aquilo que foi projetado para o clima - não só de Portugal continental, mas a nível mundial também está a acontecer - é que passemos a viver num clima mais quente, com temperatura média mais elevada, e mais seco, aqui em Portugal continental. 

Portanto, consequentemente, maior risco de incêndios?

Claro que o risco de incêndio é um risco que está diretamente ligado, mas não só, com as condições meteorológicas. Ou seja, depende da temperatura do ar, da humidade, do vento, uma série de parâmetros que fazem com que este risco meteorológico de incêndio seja mais elevado. Consequentemente, estes valores serão mais altos com um clima mais quente e mais seco.

Estes fenómenos extremos, como é uma onda de calor, está a acontecer mais vezes e a mudança é precisamente essa: deixou de acontecer pontualmente

No passado mês, houve muitas vozes - no Twitter por exemplo - que negavam que esta fosse uma onda de calor anormal, alegando que no verão há sempre calor. O que responde a estas afirmações?

Há pessoas que são um bocadinho mais céticas em relação à questão das alterações climáticas e mudanças do clima até porque, de facto, a nossa atmosfera é um sistema dinâmico. A história do clima sempre nos apresentou momentos mais quentes e momentos mais frios da nossa atmosfera, do nosso planeta. Esta variabilidade acaba por ser normal.

Aquilo que podemos perceber é que estes fenómenos extremos, como é uma onda de calor, está a acontecer mais vezes e a mudança é precisamente essa: deixou de acontecer pontualmente. Porque, de facto, no passado, aconteceram outros eventos de calor no nosso território continental, alguns deles também bastante intensos e com grandes impactos na nossa sociedade. Houve um verão em 1949 com uma onda bastante intensa, mas chegando ao século XXI, o que verificamos é que temos, por exemplo, oito ou nove ondas de calor muito significativas, isto é, com impacto muito grande na nossa sociedade e nos vários sectores da nossa atividade económica.

Aquilo que merece ser destacado é o aumento da frequência, não é o próprio fenómeno da onda de calor porque, de facto, as ondas de calor sempre aconteceram. A característica de ser mais intensa, com extensão maior, com maior frequência é que é a grande mudança no que diz respeito às ondas de calor.

Quais as consequências, a nível prático, do aumento das temperaturas nos próximos anos?

Vamos estar muito mais vulneráveis a que aconteçam estes fenómenos extremos como as ondas de calor, secas meteorológicas mais intensas e persistentes, períodos de tempo quente também mais persistentes, vamos ter níveis de incêndio meteorológico também mais elevado, vamos ter um país mais seco, portanto, estamos a olhar para condições que, a acontecerem, vão alterar claramente o nosso clima. O que isto vai fazer é com que haja um impacto muito grande em alguns setores de atividade, nomeadamente no setor agrícola, setor pecuário, setor de gestão hídrica, setor energético, porque se vamos viver num clima mais quente, se calhar vamos gastar mais energia para arrefecer as casas.

Há uma série de temáticas relacionadas com a mudança do clima que tem um impacto muito grande na nossa sociedade. Outro setor muito afetado é o setor da saúde. Como percebemos, com esta onda de calor aumentou o número de óbitos de pessoas que não resistiram a estes valores.

Há uma série de consequências ou impactos na nossa sociedade que está diretamente ligado com o clima. É isso que temos de destacar.

A palavra adaptação é aquela que eu acho que é mais aplicável neste momento.Há forma de evitarmos o aumento das temperaturas no futuro?

No imediato, temos de nos adaptar. A palavra adaptação é aquela que eu acho que é mais aplicável neste momento. Como é óbvio, estamos a falar a curto ou médio prazo. A longo prazo, do conhecimento que temos atualmente, temos de mudar a forma de gerar energia, essencialmente. Ao gerar a energia que precisamos, estamos a colocar muito mais carbono na atmosfera, mas isso é uma alteração da forma como estamos socialmente organizados - que é feita a longo prazo.

Mesmo que se termine as emissões ou se reduza para metade, ou para 10% ou para 15%, o impacto dessa redução não se vai imediatamente sentir. Provavelmente só daqui a uma geração ou duas gerações é que teríamos essa verificação da alteração.

Importante agora, na minha opinião, é adaptação. Adaptação é fundamental para continuarmos a viver, de alguma forma, com as condições que todos conhecemos. A questão da gestão hídrica é muito importante, se calhar consumirmos todos um bocadinho menos água, é importante que haja uma gestão de água mais efetiva, não só cada um de nós mas também termos administrativos.

Inevitavelmente, o foco será a água nos próximos anos?

Sim, se olharmos para o nosso território continental, a questão hídrica é de facto [importante]. Com o défice de precipitação que temos vindo a verificar consecutivamente, é um dos maiores desafios que vamos ter pela frente. Mas, apesar de ser o maior desafio, também temos bons indicadores e o que eu quero dizer com isto é que existem já bons exemplos em alguns setores, nomeadamente no setor agrícola. Também alguns dos setores de gestão hídrica são bons exemplos do que é que temos de fazer, portanto, é um sinal muito esperançoso que estas boas práticas se possam propagar.

Que boas práticas destaca?

No setor agrícola, a rega de precisão é um muito bom exemplo. Existem diversas explorações agrícolas que têm investido, ao longo dos últimos anos, neste tipo de tecnologia, que permite uma utilização mais eficiente e assertiva da água. Em termos de gestão hídrica, destaco os investimentos em processos de monitorização das albufeira e barragens, que têm permitido, em tempo quase real, saber não só a quantidade de água disponível, mas também a qualidade dessa mesma água. Esta informação é fundamental para, nas situações de seca neste caso hídrica, gerir e planear a médio longo prazo a gestão do consumo da água.

"[Furacão] é mais um fenómeno extremo que poderá atingir-nos mais vezes

Quanto ao défice de precipitação, nos próximos anos qual é a expectativa? É que haja cada vez menos precipitação ou fenómenos extremos como tempestades ou cheias?

Nesta mudança de clima, o que temos percebido é que temos consecutivamente registado anos com défice de precipitação e este, em que estamos atualmente, é um bom exemplo. Nestas últimas duas ou três décadas, têm acontecido com mais frequência anos com menos chuva do que é normal e isso tem um impacto grande na nossa vida. Quanto à ocorrência de outros fenómenos, como grandes tempestades ou ciclones, também é algo que pode acontecer com mais frequência. Não podemos esquecer que há poucos anos fomos atingidos por um furacão a atingir a nossa região [furacão Leslie em 2018], portanto uma coisa que era perfeitamente pouco ou nada usual. Temos de estar preparados para que outro tipo de fenómenos, nomeadamente um furacão, possam atingir o nosso território. É mais um fenómeno extremo que poderá atingir-nos mais vezes.

As chamadas estações de transição – que são a primavera e outono – estão muito mais disfarçadas

Pode-se afirmar que deixámos de ter as típicas quatro estações como todos conhecíamos?

É uma expressão que é vulgarmente utilizada e todos nós o dizemos: de facto, as chamadas estações de transição – que são a primavera e outono – estão muito mais disfarçadas. Isto é, passamos a ter um período estival de verão muito mais longo do que aqueles três meses que todos classificamos como verão. Isso também é um resultado que foi, mais ou menos, modelado nestes cenários de futuro, em que havia um ‘esbater’ das épocas de transição. Portanto, passamos das tradicionais quatro estações do ano para se calhar duas: uma chuvosa e outra mais seca.

Se descermos um bocadinho na latitude, nomeadamente no continente africano, eles também só têm duas estações do ano: a chuvosa e a seca. Não quer dizer que tenhamos um clima como, por exemplo, os países africanos nesta questão, mas o que vai acontecer é que as nossas estações do ano estarão mais disfarçadas e passaremos a ter um clima mais quente e seco e, portanto, com estações do ano de transição muito mais ténues e menos impactantes.

Estaremos a assistir a uma mudança significativa (e definitiva) do clima em Portugal?

A palavra definitiva é difícil de aplicar neste caso, porque a variabilidade climática acaba por ser uma característica que o clima tem e vai continuar a ter. Apesar de estarmos a olhar para esta tendência de temperatura mais elevada e menos precipitação, vamos ter anos ou meses em que há de chover mais do que o normal e temperaturas mais baixas que o normal. Esta variabilidade irá acontecer na mesma. Agora, o que percebemos é que a tendência aponta para um clima mais quente e, neste caso, mais seco. Será uma característica que teremos de nos adaptar e saber viver neste novo clima.

Leia Também: Onda de calor "bateu uma série de recordes" para julho

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