"Muitos vão ao hospital e não sabem que há farmacêuticos hospitalares"
Patrícia Cavaco, presidente da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares (APFH), é a entrevistada do Vozes ao Minuto.
© Fotógrafo João Rodrigues
País Patrícia Cavaco
Após 30 anos de existência, os farmacêuticos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) estiveram em greve pela primeira vez em outubro e em novembro do ano passado, com o Sindicato Nacional dos Farmacêuticos (SNF) a apontar a não valorização da tabela salarial como um dos principais motivos.
Já este ano, estes profissionais pararam três dias em junho, realizaram greves nacionais a 24 de julho e 19 de setembro e distritais a 5 e 12 de setembro, para exigir um avanço nas negociações com o Governo.
Patrícia Cavaco, presidente da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares (APFH), em conversa com o Notícias ao Minuto, reconhece que "muitos doentes vão ao hospital e não sabem que existe uma farmácia hospitalar e que há farmacêuticos hospitalares".
Considerando "justas" as reivindicações dos farmacêuticos hospitalares, Patrícia Cavaco sublinha que é "importante" que a voz destes profissionais seja ouvida. A presidente da APFH dá conta de que, durante as paralisações, "podem haver constrangimentos" na cedência de medicamentos. "Um doente que vá a ambulatório poderá ter um atraso na cedência da sua terapêutica, poderá ter de esperar mais", esclarece.
Embora acredite que "existe vontade de envergar pela carreira de farmacêutico hospitalar", realça que "é necessário uma maior valorização" tanto por parte do Governo como dos hospitais, alegando que "ainda há algo para fazer".
Os farmacêuticos hospitalares têm tentado mostrar que é necessário mudar algumas coisas nesta profissão
Quais são os grandes desafios que os farmacêuticos hospitalares estão ou têm vindo a enfrentar para terem começado com greves em 2022 e avançado para uma nova greve em setembro deste ano?
Embora a Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares (APFH) não tenha funções de sindicato, mostra-se sempre solidária com os colegas que entendem que devem fazer greve - que têm sido bastantes - até porque a greve é uma das formas de que dispõem todos os trabalhadores.
As greves têm acontecido devido às dificuldades com que se debatem vários colegas nesta profissão, nomeadamente em termos de recursos humanos, de equipamentos essenciais para a atividade, que acaba por ser transversal a todos os profissionais de saúde. Além disso, os profissionais gostam de ser valorizados e uma progressão na carreira seria uma valorização da sua atividade. Não havendo progressão, é um desafio a enfrentar.
A APFH tem acompanhado atentamente o que está a acontecer nesse sentido e mostra-se preocupada. Os farmacêuticos hospitalares têm tentado mostrar que é necessário mudar algumas coisas nesta profissão.
A APFH tem acompanhado o processo negocial com o Ministério da Saúde? E considera que a greve teve expressão ou, por outro lado, passou despercebida?
Penso que a greve terá tido alguma expressão, quer tanto em termos de números quer no sentido de fazer ouvir a voz daqueles que se manifestaram publicamente na Assembleia da República, reivindicando algumas daquelas que consideram ser as necessidades para a valorização do farmacêutico hospitalar.
No entanto, embora o processo negocial esteja a ser feito com o Sindicato Nacional dos Farmacêuticos, tendo sido marcadas novas greves em setembro, sugere que ainda não terão conseguido aquilo que consideram ser o adequado para os farmacêuticos hospitalares, as necessidades que reivindicam.
É importante que a nossa voz seja ouvida
A APFH tem vindo a apoiar a paralisação do SNF, a favor do restabelecimento da carreira farmacêutica na Administração Pública, aspiração que já é reclamada há mais de duas décadas. Considera que é possível chegar a um diálogo entre o sindicato e o Ministério da Saúde para que cheguem a um acordo?
A APFH sempre apoiou e sempre apoiará os colegas que decidam fazer greve para que as suas reivindicações possam ser ouvidas. O restabelecimento da carreira farmacêutica na Administração Pública é uma aspiração há muito esperada, que tem sido sistematicamente adiada e que traz algum descontentamento à profissão.
Os farmacêuticos hospitalares continuam a desempenhar as suas funções com o mesmo zelo e sentido de ética com que sempre foram desempenhadas, mas consideramos que estas são reivindicações justas. O diálogo é e deverá ser sempre a melhor forma de entendimento entre duas partes. É importante que a nossa voz seja ouvida.
Um doente que vá a ambulatório poderá ter um atraso na cedência da sua terapêutica, poderá ter de esperar mais
Em que medida os constrangimentos que afetam a atividade dos profissionais que trabalham nos serviços farmacêuticos hospitalares das unidades do SNS podem ter um impacto real na vida dos doentes?
Os farmacêuticos hospitalares, como qualquer outro profissional que trabalha na área da saúde, também tem serviços mínimos, que são fazer chegar o medicamento ao doente. Portanto os doentes não ficam sem fazer o medicamento. Podem é haver constrangimentos na sua cedência, mas o doente nunca fica sem fazer o seu tratamento.
No caso das greves, depende do que se decrete como sendo os serviços mínimos, mas um doente que vá a ambulatório poderá ter um atraso na cedência da sua terapêutica, poderá ter de esperar mais.
A farmácia hospitalar representa uma das maiores fatias dos hospitais e do Orçamento do Estado. Considera que deveria haver um reforço na quantidade destes profissionais de saúde por unidade hospitalar, uma vez que está sob a sua alçada?
Temos visto e também temos estado atentos à saída de alguns colegas da profissão de farmacêuticos hospitalares e é necessário haver uma reposição desses recursos humanos que vão estando em falta.
As farmácias hospitalares representam, de facto, uma grande parte daquilo que é o bolo orçamental de um hospital portanto precisamos mesmo de recursos humanos que sejam repostos e permitam garantir que todas as nossas atividades - que não são poucas - possam ser cumpridas.
Acho que as pessoas desconhecem o que faz um farmacêutico hospitalar
Quais são realmente as funções que competem a um farmacêutico hospitalar?
O farmacêutico hospitalar está sempre presente quando há um doente e um medicamento. Quer seja nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) quer seja nas Administrações Regionais de Saúde, quer seja mesmo nos hospitais privados.
Aliás, acho que as pessoas desconhecem o que faz um farmacêutico hospitalar. Muitos doentes vão ao hospital e não sabem que existe uma farmácia hospitalar e que há farmacêuticos hospitalares.
Estes profissionais fazem a distribuição de fármacos para doentes oncológicos, produzem as doses unitárias para os doentes internados, fazem a supervisão da preparação da nutrição parenteral associada à neonatologia, de citotóxicos e de fórmulas magistrais associadas à pediatria, participam em comissões técnicas como a Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) - que rege o arsenal terapêutico dos hospitais -, na Comissão de Antibióticos.
Os farmacêuticos hospitalares cedem ainda os medicamentos de ambulatório a determinadas patologias legisladas que são de levantamento exclusivo em farmácia hospitalar, monitorizam o aparecimento de reações adversas à toma de um medicamento e fazem essa notificação às entidades regulamentares, personalizam alguns tratamentos que os doentes fazem nos hospitais - nomeadamente antibióticos -, selecionam a melhor terapêutica para determinado doente.
Estes profissionais estão presentes numa série de atividades que são essenciais. A maior parte das pessoas não sabe sequer que estamos lá e fazemos.
Garantimos que a terapêutica medicamentosa dos doentes, a qualidade, efetividade e segurança dos medicamentos seja assegurada
Qual o papel dos farmacêuticos hospitalares no SNS?
Os farmacêuticos hospitalares desempenham várias atividades regulamentadas pelo decreto-lei n.º 109/2017, de 30 de agosto. Este decreto define o regime legal da carreira especial farmacêutica, bem como os requisitos de habilitação profissional para integração na mesma, aplicando-se a todos os trabalhadores integrados na carreira especial farmacêutica com vínculo de emprego público na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas.
Os serviços farmacêuticos são departamentos com autonomia técnica e científica sujeitos à orientação geral dos órgãos de administração dos hospitais, perante os quais respondem pelos resultados do seu exercício, o que confere ao farmacêutico hospitalar uma responsabilidade acrescida no exercício das suas funções.
Além das atividades de suporte, tais como a seleção, aquisição, gestão de stocks, armazenamento e conservação, reembalagem, preparação/produção e distribuição de medicamentos (a doentes internados) em regime de ambulatório e de Hospital de Dia), desempenhamos também funções clínicas.
Nestas funções clínicas funcionamos em equipa multidisciplinar, trabalhando em conjunto para otimizar e personalizar a terapêutica dos doentes que são seguidos nas nossas instituições hospitalares. Neste sentido, tal como já havia adiantado, integramos comissões técnicas (Comissão de Farmácia e Terapêutica, Comissão de Antibióticos, Comissão de Pensos e Feridas, etc), realizamos consultas farmacêuticas, efetuamos monitorização de farmacovigilância de fármacos, com especial atenção nos medicamentos inovadores, cujo perfil de segurança e efetividade não está ainda bem caracterizado. Providenciamos ainda informações a outros profissionais de saúde e a doentes e promovemos ações de investigação científica e de ensino.
Em suma, garantimos que a terapêutica medicamentosa dos doentes, a qualidade, efetividade e segurança dos medicamentos seja assegurada, salvaguardando que os resultados sejam os esperados quando se usa a tecnologia o medicamento no tratamento dos doentes. Estas atividades apenas são possíveis porque nos encontramos integrados nas equipas de cuidados de saúde.
Embora estas atividades estejam regulamentadas para os farmacêuticos hospitalares do SNS, não podemos esquecer dos colegas que trabalham em instituições privadas e que desempenham as mesmas funções.
Qual seria o impacto de um trabalho feito com pouco rigor e qualidade por parte destes profissionais?
Os farmacêuticos hospitalares defendem sempre, sobretudo, a segurança do doente e têm sempre o doente como fator essencial da atividade. Nunca existirá falta de rigor porque tudo o que é feito, é com rigor e sempre pensando na racionalização do medicamento e na segurança da sua utilização no doente.
Embora haja sempre grandes desafios, é a necessidade de aperfeiçoamento dos conhecimentos nesta profissão um dos maiores. Em termos de conhecimento científico - que também precisamos de acompanhar - todos os dias há novidades tanto em medicamentos, como em indicações. Acho que esse é o grande desafio, a necessidade contínua dos nossos conhecimentos.
Os doentes são cada vez mais complexos
Porque é que a atividade dos farmacêuticos hospitalares sofreu transformações profundas?
A profissão farmacêutica sempre esteve ligada à produção de medicamentos. Este paradigma modificou-se no início dos anos 50, devido a um conjunto de alterações e evoluções tecnológicas, científicas e sociais, tais como a industrialização da produção de medicamentos.
Neste sentido, a prática farmacêutica teve a necessidade de ampliar a sua atividade para além da distribuição dos medicamentos industrializados. A nossa atividade alterou-se para uma atividade centrada no doente e na integração em equipas multidisciplinares.
Desta forma, foi necessário adaptar e aprofundar os nossos conhecimentos, por forma a darmos resposta às necessidades dos nossos doentes. Os doentes são cada vez mais complexos, com múltiplas comorbidades, e os nossos conhecimentos aportam valor nas decisões tomadas em conjunto.
A atividade do farmacêutico hospitalar extravasa o que é normalmente visível para doente, que é a dispensa de medicação.
Como farmacêutica hospitalar e a voz destes profissionais, sente que o Governo os reconhece? E os próprios hospitais?
Acho que é necessário uma maior valorização. Não quer dizer que não nos reconheçam, tanto ao nível governamental como hospitalar, mas acho que tem de haver uma maior valorização das nossas atividades.
Creio nos reconhecem valor mas acho que precisamos de uma ainda maior valorização.
Acho que existe vontade de envergar pela carreira de farmacêutico hospitalar
O farmacêutico hospitalar é visto como o profissional de saúde responsável pelo uso racional de medicamentos na prevenção e tratamento de doenças a nível hospitalar. No entanto, não tem progressão na carreira. Sente que há cada vez menos farmacêuticos a querer seguir este caminho?
Penso que não. Até porque a Residência Farmacêutica começou em 2023 - no início deste ano - e há entre 180 a 190 residentes que estão em várias unidades de saúde do país a fazer um percurso formativo de quatro anos para se tornarem farmacêuticos hospitalares.
Este programa de formação nomeado Residência Farmacêutica é quase equiparado ao internato médico e promove a valorização da nossa carreira. Ao fim dos quatro anos, o farmacêutico que envereda pela Residência Farmacêutica aperfeiçoou os conhecimentos na especialização e será considerado um farmacêutico especialista em farmácia hospitalar.
Esta acabou por ser uma forma de valorização da profissão, daí considerar que o Governo e os hospitais conhecem o nosso trabalho de alguma forma.
Portanto sim, acho que existe vontade de envergar pela carreira de farmacêutico hospitalar.
Embora já muito tenha sido feito, precisamos de uma maior valorização, principalmente na carreira
Embora tenha havido a criação deste programa Residência Farmacêutica, considera que houve melhorias significativas ou ainda há muito por fazer?
Ainda há algo para fazer. De facto este foi um passo em frente na carreira de farmacêutico hospitalar mas há sempre hipótese de melhoria daquilo que já foi criado.
Acho que a valorização da carreira seria uma coisa bastante importante. Embora já muito tenha sido feito, precisamos de uma maior valorização, principalmente na carreira.
Que perspetivas de incentivos pode ter a profissão e como pode ser financiado o seu serviço?
O início de consultas farmacêuticas nos vários serviços farmacêuticos hospitalares pode ser uma das maneiras de financiamento dos serviços que prestamos, através da contratualização, tal como acontece com a contratualização com consultas médicas e de enfermagem.
Esta pode ser uma aposta na valorização e alargamento de um serviço que já se encontra a ser prestado em vários hospitais do país.
Parece-nos que o futuro da profissão se encontra assegurado
Qual considera que é o futuro reservado a esta profissão? Um futuro promissor e risonho ou, que sem incentivos, pode assustar os profissionais que querem integrá-lo?
A APFH continua a acreditar num futuro promissor para os farmacêuticos hospitalares, razão pela qual continua a apostar na formação e aperfeiçoamento dos conhecimentos. Continuamos a ver colegas farmacêuticos a querer entrar na carreira farmacêutica através da Residência Farmacêutica. Parece-nos que o futuro da profissão se encontra assegurado por uma geração de colegas com novas ideias e que querem contribuir para o enaltecimento desta profissão.
Não quero com isto dizer que não seja necessário um incentivo. Um incentivo irá seguramente motivar a manutenção de recursos humanos nos vários hospitais e outras instituições de saúde onde trabalham farmacêuticos, quer seja um incentivo monetário, quer seja numa valorização das nossas atividades.
Já estão em curso grandes desafios para a nossa profissão, nomeadamente com a entrada da Inteligência Artificial no dia a dia. Temos de saber aproveitar esta ferramenta para promover os melhores cuidados de saúde possíveis aos doentes. Penso que a nova geração de farmacêuticos hospitalares poderá trazer um enorme aporte a esta realidade.
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