O antigo primeiro-ministro José Sócrates criticou fortemente os mais recentes desenvolvimentos na Operação Marquês, após o Tribunal da Relação de Lisboa ter decidido levá-lo a tribunal para ser julgado por 22 crimes.
"O acórdão não é de três juízas, mas de três tribunais. Uma juíza é do Tribunal da Relação de Lisboa, outra é da Relação de Guimarães e, finalmente, a juíza relatora é da Relação do Porto. Uma estrambólica linha de competência jurisdicional passa, a partir de agora, a ligar estas três nobres cidades portuguesas. Caso de antologia: um acórdão assinado por três juízas que pertencem a três tribunais diferentes", começou por escrever Sócrates num artigo de opinião publicado na CNN Portugal, esta sexta-feira.
Na mesma missiva, o antigo primeiro-ministro socialista lamentou que "o absurdo e o arbítrio parecem ter definitivamente tomado conta da justiça penal portuguesa" e que "no processo Marquês parece valer tudo".
"Duas das juízas saíram da Relação de Lisboa em setembro do ano passado com perfeita consciência do que está estipulado no artigo 49.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais: 'a transferência dos juízes da Relação não prejudica a sua intervenção nos processos já inscritos em tabela'. Repito, já inscritos em tabela. Não era o caso do recurso do processo Marquês, que só foi colocado em tabela na segunda-feira, dia 22 de janeiro de 2024", argumentou Sócrates.
Por conseguinte, "desde setembro que as senhoras juízas não são juízas da Relação de Lisboa; desde setembro que não têm competência em qualquer processo daquele tribunal; desde setembro que a sua intervenção no processo é um abuso e uma violação da garantia constitucional do juiz natural".
Para o antigo chefe do Governo, "a exigência é simples": "cumprir a lei, anular o acórdão e redistribuir o processo", até porque "a competência para 'exercer a justiça em nome do povo' pertence constitucionalmente aos Tribunais e, neste caso, a decisão sobre o recurso do Ministério Público tem de ser tomada por juízes do tribunal competente, a Relação de Lisboa".
"Se insistirem em manipular, agora com outros métodos, a escolha dos juízes", haverá a certeza de "que querem transformar o processo marquês num processo de exceção", considerou.
"Como nas ditaduras, o Estado parece empenhado em escolher juízes 'ad hoc'. Como nas ditaduras, o Estado parece querer escolher juízes em contravenção", vaticinou Sócrates, citando um despacho do juiz Alfredo Costa, da Relação de Lisboa, em que se lê que "é entendimento unânime a opção dos autos à distribuição [...] em situações semelhantes à dos autos, que apenas possui um adjunto e não tem o segundo adjunto nem relator".
No artigo por si assinado, o antigo primeiro-ministro considera que é exatamente essa "a situação do processo Marquês". "Desde setembro que não tem adjunta nem relatora por motivos de saída de ambas do Tribunal. Assim sendo, a única solução digna, legal e decente é aquela que o senhor juiz tomou no outro processo – remessa dos autos à distribuição. Nada mais, mas também nada menos", pediu.
"O princípio do juiz natural não parece ser muito popular entre os causídicos"
A concluir o artigo de opinião, o antigo primeiro-ministro disse achar "muito revelador" que "a maioria dos advogados não diga nada". "Nada disseram na primeira manipulação, nada dizem na segunda. O princípio do juiz natural não parece ser muito popular entre os causídicos. E, no entanto, ele figura na Constituição. Ainda figura na Constituição", afirmou.
A "questão de início" a ser discutida, disse, prende-se com um ponto em que "a lei é clara": "As juízas que saíram do Tribunal da Relação só podiam intervir em processos daquele tribunal se estes já estivessem inscritos em tabela. O julgamento do recurso não estava inscrito em tabela, logo, as juízas não são competentes. Logo, as juízas não são as juízas naturais do caso".
Isto porque "quanto ao estatuto de exclusividade, que, aliás, foi concedido ilegalmente, não muda nada, só agrava o caso". "A exclusividade não transforma uma juíza do Porto numa juíza de Lisboa. Nem uma juíza de Guimarães numa juíza de Lisboa", defendeu, atacando também a "desculpa" do "princípio da continuidade", que "não se aplica aos juízes que transitaram de um tribunal para outro (a não ser, como vimos, nos casos em que o processo já esteja inscrito em tabela, o que não era o caso)".
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